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12 de jan. de 2006

Blogs do Edgar Rodrigues


Estes são os blogs do nosso confrade Edgar Rodrigues, jornalista e pesquisador histórico que tem um acervo sobre os fatos históricos do Amapá.




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6 de jan. de 2006

MOVIMENTO RUMO E MODERNOS POETAS DO AMAPÁ



A LITERATURA NO AMAPÁ 
NAS DÉCADAS DE 50 E 60



Fac-símile do Jornal Amapá (12 de julho de 1960) que registra o lançamento da antologia em Belém - PA




O pós Segunda Guerra Mundial gerou um contexto cultural efervescente em quase todas as partes do mundo. Os ares de liberdade e os sentimentos de paz embalados


por um período de serenidade política, estimulavam a produção artística e

intelectual. É nesse contexto que arregimentados pelo governo do Território para
compor o primeiro escalão Álvaro da Cunha, Aluizio da Cunha, Alcy Araújo, Arthur
Nery Marinho e Ivo Torres se estabelecem em Macapá. Acostumados às atividades
"cultas" da vida intelectual como o cinema, o teatro, a música, as letras e as
artes plásticas, encontraram uma sociedade emergente ainda adormecida para estes
aspectos. Talvez pressionados pelo obscurantismo e temendo o isolamento e o
ostracismo, tomaram então diversas iniciativas utilizando a própria burocracia
do Estado para fomentar espetáculos e entretenimentos de massa disseminando a
cultura na vida cotidiana dos novos amapaenses. A partir de então surgiram os
ateliês de escultura e pintura, apresentações das mais diversas companhias
teatrais, concertos, círculos folclóricos e as noites lítero-musicais, ao mesmo
tempo em que começavam a surgir os primeiros recitais de poesias onde eram
apresentadas a produção local.
O sociólogo e escritor Fernando Canto confirma que "durante a década de
cinquenta e parte da de sessenta, o que se viu no Amapá no aspecto literário,
foi um esforço sobre-humano dos intelectuais da terra para que os trabalhos das
pessoas de talento fossem projetados além de nossas fronteiras, a fim de receber
críticas e se consolidar no cenário nacional. Poucos conseguiram o objetivo. Do
grupo de burocratas-escritores que ser formou, apenas Alcy Araújo, Álvaro da
Cunha e Ivo Torres tiveram renome."
Há que se incluir também nesse rol, o poeta Arthur Nery Marinho, que figura em
duas grandes enciclopédias brasileiras.
"Não se pode negar os esforços que fizeram os primeiros poetas, escritores e
jornalistas que aqui tentaram dinamizar a cultura e com isso chegando a
influenciar muitos dos que hoje estão numa posição de destaque dentro do Amapá",
diz Fernando Canto.
Logo o movimento extrapolou para os meios de comunicação de massa. Surgem os
órgãos de divulgação cultural, jornais e revistas e programas de rádio. A
primeira iniciativa editorial nesse aspecto foi a revista Latitude Zero fundada
em 1952 por Álvaro da Cunha, José Pereira Costa e Marcílio Viana. Era uma
publicação de vanguarda que nada deixava a dever as outras revistas literárias
do país. Apesar de sua importância histórica teve vida efêmera.
Com a chegada do escritor carioca Ivo Torres em 1957 é lançada uma nova revista
do gênero, a Rumo, que chegou a circular em todo o Brasil e contava com
correspondentes em vários Estados. Considerada uma publicação de qualidade, foi
identificada por críticos literários e renomados autores como um órgão de
difusão cultural dos mais importantes do país. A revista que trazia artigos e
reportagens enfocando os mais importantes movimentos artísticos e culturais do
Amapá, do Brasil e do exterior, inseriu a cultura amapaense no contexto
nacional. Suas páginas recheadas de teatro, música, folclore, sabedoria popular,
eram frequentadas por ícones da época. A Rumo foi uma das revistas do meio
intelectual a dar projeção para diversos escritores locais e modernistas no país
inteiro. O escritor Fernando Sabino, foi um dos entrevistados de Rumo em 1959 em
Minas Gerais, assim como o caricaturista do Rio de Janeiro Appe, uma das
estrelas da revista de informação "O Cruzeiro". Por causa de sua envergadura a
revista Rumo chegou a ter projeção internacional.
"A Rumo conduz e explica o Amapá", chegou a escrever o ensaísta Osório Nunes .
Uma crítica publicada no suplemento literário do jornal "Diário de Minas" em
outubro de 1958, assim se expressou sobre a revista: "Encontramos suas raízes na
Semana de Arte Moderna. A sua vida constitui um resultado de descentralização
cultural que houve a partir daquela data e que cada vez se acentua. Se fôssemos
um Carlos Drumond, Mário de Andrade, um Vinícius de Morais ou Anibal Machado,
nada nos alegraria mais do que nos saber lido lá pelos confins do Brasil, no
Amapá".
Jornal Amapá notícia o lançamento da antologia
Modernos Poetas do Amapá no Rio de janeiro
A promoção do debate levou a revista a criar outros mecanismos de apoio a
produção literária. E assim nasceu a editora Rumo, que viria publicar em 1960 a
antologia Modernos Poetas do Amapá, o livro Quem explorou quem no contrato do
manganês do Amapá, de Álvaro da Cunha (1962) e Autogeografia, livro de poesias e
crônicas de Alcy Araújo (1965). A revista Rumo também deu origem ao Clube de
Arte Rumo, que reunia os poetas, pintores, músicos e artistas de teatro para
discutir o que se fazia no Amapá e no Brasil no campo da literatura, da música e
das artes cênicas e plásticas. Ao mesmo tempo em que promovia concursos de
crônicas e poesias na busca de novos talentos.


OS AUTORES

O primeiros poetas do Amapá, enquanto unidade socialmente e geograficamente
definida, vieram de uma fase revolucionária da arte literária do país – a escola
Modernista. Apesar de todos os cinco escritores terem incluído em sua produção
literária as questões referentes à cultura amazônica e aos costumes locais, Alcy
Araújo e Álvaro da Cunha são citados por vários autores como os dois
representantes com maior contribuição social em suas obras.
"Era uma interpretação geográfica e social do Amapá, observando sempre as
questões do vir a ser, de uma sociedade que estava emergenciando. Era uma
proposta até mesmo radical de esperança. O trabalho deles foi muito importante
para que a gente tivesse entendimento do que é mesmo o Amapá", observa o
sociólogo Fernando Canto.
Embora tivessem origem em sociedades mais velhas, seu problema como indivíduos
não era o de participar da organização de uma nova sociedade, mas o de
ajustar-se a um padrão de vida em grupo que, desde muito tempo, já havia se
cristalizado aqui. A análise da produção literária demonstra que a conduta
social foi totalmente adaptada à forma social existente. São escritores que se
por um lado não produziram obras com um discurso ideológico franco, aberto, por
outro procuraram incorporar, em níveis muito profundos do texto, uma
heterogeneidade cultural, sobretudo elementos das chamadas culturas populares,
indígenas, negras e mestiças.
O fato de estarem inseridos num contexto em que a produção literária surgia em
meio a um contexto cumulativo de funções, uma vez que precisavam cumprir suas
tarefas como burocratas do Estado, resulta em obras pontuadas de solicitações do
cotidiano.
Num tempo em que livros eram praticamente instrumentos de uma pequena elite, o
jornalismo passou a ser utilizado como uma forma de intervenção social. Naquele
momento o jornalismo tinha mais importância do que a literatura porque ajudou a
criar o impacto para despertar a sociedade mexendo com as pessoas. Para haver
literatura era preciso um conjunto de coisas funcionando a um só tempo: crítica
literária, leitores, debate, produção de livros, escolas... como um conjunto de
elementos articulados. Daí a necessidade e a pertinência da revista Rumo,
responsável pela articulação de todo um movimento que se consolidou com a
projeção da obra intelectual do grupo de escritores para além das fronteiras do
Amapá.



Alcy Araújo
Coaracy Barbosa, Álvaro da Cunha e Alcy Araújo


"Um homem totalmente integrado ao seu tempo e que, mesmo insulado no extremo norte do Brasil, conseguiu superar as limitações e as restrições de também servir a governos autoritários e pôde fazer literatura das boas, pois dispunha, é verdade, de farto material humano e uma experiência de vida bastante dolorida.

Da infância sofrida de menino pobre e que desde muito cedo começou a trabalhar ficaram-lhe lembranças que ele carregaria por toda a vida e recordava em muitas passagens da sua obra" (Paulo Tarso Barros).

Nasceu na Vila de Peixe-Boi (PA) em 7 de janeiro de 1924. Em 1953 chegou ao Amapá para assessorar o governador Janary Nunes. Exerceu no Amapá cargos de relevo. Contudo, a mais importante contribuição de Alcy Araújo ao Território deve ser aferida pela sua intensa e constante participação na vida intelectual e artística regional – tanto através da imprensa, do rádio, da televisão, como nos demais instrumentos e instâncias da cultura amapaense.A poesia de Alcy retratava a auto estima e a esperança do povo que habitava "a terra em formação na Latitude Zero". Poderia também ser traduzida como uma
paisagem do cotidiano.


LEGENDA II AO MOMENTO QUE PASSA


Ser desta geração...
Eu e a minha mocidade duvidosa de um quarto de século.
Mocidade que envelheceu porque não pôde
estacionar um minuto sequer
dentro da época.
Já não se pode fazer poesia
porque as praças de piquê, no Mundo,
podem tocar reunir
para atacar e defender a LIBERDADE
simultaneamente.
Ó sensibilidade de Deus,
dai-nos um momento de sossego
que é preciso fazer um verso simples
pra namorada romântica.
O poeta adota outro cais (fragmento)
O poeta aguarda o nascimento
fumando mil cigarros
à porta da maternidade do progresso
Poeta vendo o rio (fragmento)
Pela janela olho o rio
Rio largo barrento
indo para o mar
Rio de todo dia
em minha paisagem exterior
Minha Poesia (fragmento)
Pois aqueles seios amamentara
a caboclinha suja e descalça
que vai com a cuia de açaí
no meio da rua poeirenta!
Cuidado, senhor, para o seu automóvel
não atropelar a menina!
O Poeta Adota Outro Cais (fragmento)
um navio imenso fecundando as entranhas
de outros navios menores,
na cópula pesada do minério.


"Em Autogeografia, livro publicado pós-golpe de l964, é possível detectar todas
as angústias, desencantos e revoltas que sacudiam alma sensível e carinhosa do
poeta. Apesar do forte discurso literário, mesclado de dor, percebe-se
facilmente a presença de ternura: ele pretendia ser "apenas terno", sendo essa
uma das palavras-chave da sua obra", diz o presidente da Associação Amapaense de
Escritores, Paulo Tarso.
Na avaliação de Tarso, Alcy Araújo apesar de viver na Amazônia, foi um poeta que
soube extrapolar as dimensões continentais da região de origem através de um
discurso poético universal. Era um homem consciente, porém, da sua inexorável
condição humana, pois sabia que excessiva pluralidade acabava com a poesia e que
seria um perigo "encontrar milhões de humanidade. Uma é suficiente". Apesar
disso, de vez em quando ele se referia aos discos voadores e, bastante
frequentemente, aos anjos, como se o mundo onde ele habitava não fosse
suficiente para acomodar todos os seus sonhos de poeta.


OBRASAutogeografia - Crônicas e Poemas
Território Federal do Amapá - Monografia
Amapá/68 - Monografia
Amapá - Verde Território da Esperança (Menção honrosa no concurso "Paulo
Maranhão", promovido pela Sudam)
Poemas do Homem do Cais - Poemas
Jardim Clonal – Poemas – Macapá – julho/97
Figura nas seguintes obras:
- Antologia dos Modernos Poetas do Amapá
- Brasil e Brasileiros de Hoje (Enciclopédia)
- Grande Enciclopédia da Amazônia
-Grande Enciclopédia Portuguesa Brasileira (Enciclopédia editada em Lisboa)
- Coletânea Amapaense de Poesia e Crônica- Introdução à Literatura no Pará (
Obra da Academia Paraense de Letras, Editora Cejup - 1995 - Volume V -
Antologia)

Álvaro da Cunha


Dos cinco escritores, Álvaro da Cunha foi provavelmente o que mais retratou o
Amapá e a sociedade de então. Paraense, nascido em Belém em 1923, veio para o
Amapá em 1946, a convite do governador Janary Nunes. Dizia Alcy Araújo que o
poema "Amapacanto" era o atlas poético do Território do Amapá. "O Álvaro era
usuário, amante e intérprete do verde incomum da Latitude Zero", dizia Alcy.
"Vejo no Álvaro, não só quando trabalha a questão da Mãe Luzia, que ele carrega
inúmeras propostas desse vir a ser que seria o Amapá, a questão do minério, do
manganês, a redenção do homem amazônico com uma proposta civilizatória
diferente", diz o sociólogo e escritor Fernando Canto.
A poesia de Álvaro interpretou a esperança que o povo tinha de ver o recém
criado território transformado numa das regiões mais progressistas do norte. A
chegada da Icomi, a exploração do minério de manganês são marcantes na
literatura produzida por Álvaro. A inquietação e o receio do caboclo que ganhava
a vida transportando gente e "encomendas" nas pequenas canoas diante do trem da
Icomi que para ele parecia uma ameaça, também são retratados na poesia de
Álvaro.
Pintura - e ao lado direito, talvez a única fotografia
conhecida de Mães Luzia nos anos 40

Mãe Luzia


Velha, enrugada, cabelos de algodão,
fim de existência atribulada, cuja
apoteose é um rol de roupa suja
e a aspereza das barras de sabão.
Mãe Luzia! Mãe Preta! Um coração
que através dos milagres de ternura
da mais rudimentar puericultura
foi o primeiro doutor da região.
Quantas vezes, à luz da lamparina,
na pobreza do catre ou da esteira,
os braços rebentando de canseira,
Mãe Luzia era toda a medicina.
Na quietude humílima do rosto
sulcado de veredas tortuosas,
há um clamor profundo de desgosto
e o silêncio das vidas dolorosas.
Oh, brônzea estátua da maternidade:
ao te encontrar curvada e seminua,
vejo o folclore antigo da cidade
na paisagem ancestral da minha rua.


Amapacanto 
(fragmentos)
O Brasil não sabe nem
o quanto é grande
O rio Amapá pequeno"
Mas eu sei
Amapá
nós dois sabemos
todos os rios que somos e vivemos
Há de apurar também
de que violência
cúpida
provem
que página exemplar
de resistência
abrange
na história do povo
amapaense
o inglório marco
francês
do Cabo Orange
O Trem (fragmento)
" Lá vem o trem
Coisa que nunca se viu,
coisa nova no Amapá..."
"Esse trem é muito feio,
esse trem é discunformi,
esse trem tem um olho inorme,
esse trem vai me matá."

OBRAS
Pássaro de chumbo – 1951
Quem explorou quem no contrato do manganês do Amapá – 1962
Amapacanto
Figura nas seguintes obras:
Antologia Modernos Poetas do Amapá
Brasil e Brasileiros de Hoje
Grande Enciclopédia da Amazônia

Arthur Néry Marinho





Nasceu no Pará em 1923. Chegou ao Amapá em 1946. Figura na Antologia Modernos
Poetas do Amapá, na Enciclopédia Brasil e Brasileiros de Hoje e na Grande
Enciclopédia da Amazônia.
A poesia de Arthur Marinho mostra hábitos e costumes dos moradores de Macapá no
início da era Território. No poema "Praça Antiga", fala das "peladas" de futebol
que aconteciam na praça da matriz e que só terminavam "quando já dormia o sol";
a barraca da Santa armada na velha praça durante as festividades religiosas e a
banda de Mestre Oscar se apresentando no coreto também são mostradas através da
poesia de Marinho.

Praça Antiga 
(fragmento)
"Da igreja, o velho coreto
eu avisto, neste ensejo.
Do mestre Oscar vejo a Banda
E lá na banda eu me vejo".
Marabaixo (fragmento)
"O marabaixo (...) traz no tambor a voz rouca do tempo da escravidão"
Paisagem Amazônica
Para escrever
meu revoltado verso,
jamais dei volta ao mundo,
meu Senhor!
Vim pelas margens dos igarapés,
onde o sorriso
é doentio e triste
e a ignorância
há séculos persiste
e é pálida e mirrada
a própria flor.



OBRA
Sermão de Mágoa – 1993

Figura nas seguintes obras

Antologia Modernos Poetas do Amapá

Enciclopédia Brasil e Brasileiros de Hoje
Grande Enciclopédia da Amazônia
Coletânea Amapaense de Poesia e Crônica

Aluízio da Cunha



O mais jovem poeta dos cinco, nasceu em 1933 no Pará. Foi um dos primeiros a vir
para o Amapá: 1950. Sua poesia pouco fala no Amapá, mas sua grande importância
vem do fato de, ao lado dos outros quatro, ter feito, como diz Fernando Canto,
um esforço sobre-humano para projetar a cultura amapaense.

NÃO ME PEÇAS, MARIA

Não me peças, Maria,
um poema de amor,
profundamente musicado pelas rimas.
Não me peças, Maria,
um poema de amor.
Olha, Maria,
os jatos perturbaram
a melodia nascente
da primeira canção deste poeta.

OBRA
Lâmina d´água (ainda inédita)
Figura na seguinte obra:
Antologia Modernos Poetas do Amapá

Ivo Torres
Ivo Torres no Rio de Janeiro


Coube ao escritor Ivo Torres, poeta concretista, iniciar a inserção do Amapá no
cenário nacional, através da revista Rumo, ao mesmo tempo em que despertava na
sociedade amapaense o gosto pelas artes, especialmente pela literatura, através
de programas na Rádio Difusora de Macapá, de suplementos culturais no jornal
Amapá (hoje Diário Oficial do Estado) e coluna literária no jornal O Liberal.
Com Alcy Araújo, Álvaro da Cunha, Aluízio da Cunha, Amaury Farias e Arthur Nery
Marinho, Ivo Torres promoveu, através do Clube de Arte Rumo e da Sociedade
Artística de Macapá, concursos de poesias e crônicas, espetáculos de dança e de
teatro, recitais de poesia e reuniões literárias.
Ivo Torres nasceu no Rio de Janeiro em 20 de março de 1931. Veio para o Amapá
aos 26 anos, em 1957, para assessorar o governo a convite do deputado Coaracy
Nunes. Representando o Amapá em concurso nacional de poesia promovido pelo
jornal Diário de Minas em 1958 conquistou o primeiro prêmio.
Foi Ivo quem conseguiu aglutinar os intelectuais amapaenses e levar a arte para
a sociedade que se formava no recém-criado Território Federal do Amapá. Hoje,
aos 68 anos, morando no Rio de Janeiro, Ivo lamenta que o Amapá não tenha
progredido tanto culturalmente como se previa no início do Território.

POEMA DO LOUCO

Caminha o louco
O céu do louco tem cor
permanente.
A alma do louco acoita
canções, que muitos cantam,
sem conhecer.
O louco não gosta de flores.
Aliás, nunca viu flores
genuínas.
Nem mulheres.
Nem meninos.
Nem nunca foi menino.
Não tem casa.
Não tem leito.
Não tem relógio.
Só tem a rua.
A rua branca
e sincera do seu mundo.
Neste momento, o louco chora,
porque lhe disseram que há
loucos que se curam.


OBRAS
Poemas pro Anjo – 1960
Cascafruto – 1964
Encadernação do Pasmo – 1974
Cromo/Somos – 1978
Trono do Amor – 1983
O Administrado do Amor – 1994
A Cor/Dando - 22/06/99
Figura nas seguintes obras
Antologia Modernos Poetas do Amapá
Poetas do Jardim
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Mais informações no blog http://www.alcinea.com/

(Pesquisa e texto de:
Alcinéa Cavalcante, Alcilene Cavalcante,
Beto Lacerda, Gilberto Ubaiara e Tanha Silva)

CONTOS DE CÉSAR BERNARDO DE SOUZA

CALCINHA FURADA
Autor: César Bernardo

A ansiedade era o único ponto em comum entre Gonzaga e Cristal, um sentimento embaraçoso que ambos tentavam administrar horas antes do início da reunião mensal ordinária que se realizaria no Salão Oval da Cooperativa Central dos Produtores de Leite do Vale do Caiapó. Na manhã daquele dia se definiria a permanência ou não de Gonzaga no posto de direção que ocupava na organização e se Cristal conseguiria o emprego tão esperado e necessário, na Divisão Especial de Produtos Dietéticos.
Por conta dessa tão grande ansiedade, ambos passaram acordados uma noite
nervosa, calorenta o suficiente para fazer-lhes subir a adrenalina para muito
além do suportável. Como se estivessem comandados pelos impulsos eletrônicos de um controle remoto, cada qual buscou ruas para caminhar sem rumos definidos. Cansados das caminhadas, foram se refestelar na janela dos seus apartamentos querendo espiar a madrugada chegar com algum bom sentimento novo e findar com a ansiedade que já os mergulhava numa espécie de solidão compartilhada.
Cristal não tinha uma janela aberta para os poucos encantos da pequena cidade. Seus olhos, como que tentando escapar do vento frio que descia da montanha, varrendo para a sarjeta papeis miúdos e folhas secas que queriam atapetar toda superfície da rua, só podiam ir até as paredes descascadas das velhas carcaças dos prédios em frente. A rua das Escravas, comprida e estreita, morta nas madrugadas, parecia mover-se debaixo dos pés.
Debruçada devagar sobre o batente largo da janela de duas folhas, as pernas já adormecidas ao embalo do seu silêncio mais profundo, Cristal deixava repassar em sua mente o filme em preto e branco da grande tragédia da sua longa vida medida em exatos vinte e seis anos, quatro meses, dois dias e mais as seis horas que a consumiam daquela maneira desde os primeiros minutos daquele dia.
Muitas vezes - e poucas horas entregues às lembranças, ela reviu as pernas macérrimas que um dia se desnudaram bruscamente diante dela, dando forma a uma das mais violentas e bestiais atitudes que um homem é capaz de praticar contra uma mulher. Ela que, atraída por uma possibilidade de empregar-se, terminou estuprada e manchada pela bestialidade humana.
Depois de tanto tempo, ainda sem entender direito como se viu encurralada entre a surpresa e a barbaridade, não conhecia uma forma de perdão para aquele indivíduo e nem sabia de onde tirara tanta força para suportar a vida até ali.
Por causa da dor e da vergonha, Cristal gravou no fundo de sua memória a imagem das pernas secas e do par de botas com todos aqueles detalhes que bordavam as laterais dos canos altos, até quase aos joelhos. Dali em diante, dominada pela impotência, decidiu que teria a vingança como a única meta da sua vida e a tragédia como o seu maior segredo.
Gonzaga, como que querendo carícias da brisa matutina, abriu de vez as duas folhas da janela grande debruçando-se sobre os seus remorsos mais fortes. O que lhe vinha à mente com mais força, desde há muito tempo, era a imagem da calcinha que lhe ficara como testemunho do gozo bestial que conseguira num dia distante, quando subjugou cruelmente uma jovem mulher que tanta excitação lhe causara.
Lembrava-se bem de uma calcinha marrom de bordas brancas, com um orifício centro frontal grande o suficiente para deixar à vista boa parte da região púbica vaginal, como ele jamais tinha visto, razão pela qual a trazia consigo depois de tanto tempo. Suas lembranças inconfessáveis misturavam-se com a certeza da impunidade. O anonimato em que se julgava convenientemente mergulhado fazia-o pensar que tudo corria a favor dos seus planos de poder na CCPLVC.
Chegou, finalmente, o momento da reunião tão esperada. Na distribuição das pessoas em seus assentos, o acaso colocou Gonzaga e Cristal frente a frente, separados pela descomunal largura da mesa oval que dava nome ao salão retangular. Não sabiam exatamente o que um significava para o outro.
Cristal mostrava-se mais contida, estava informada de que a reunião seria longa, se estenderia muito em razão dos discursos que se sucederiam a partir do Secretário Geral até o Presidente, estando entre os quais seis vice-primeiros-presidentes e três subdiretores que, ainda bem, teriam direito a um máximo de três minutos de pronunciamento, sem réplica.
Quanto a Gonzaga, parecia tratar-se de uma pedra. Nada se poderia perceber ocorrendo em seu íntimo. Para ele seria mais uma reunião de rotina que viria consolidar ainda mais a posição de mando que ocupava na empresa há mais de seis anos. O futuro da hora seguinte não lhe deu nenhum aviso.
Num dado momento, reunião em andamento, foi ao chão a folha de pauta através da qual Cristal acompanhava os acontecimentos com a devida atenção.
Discretamente afastou um pouco a cadeira que ocupava e abaixou-se devagar para recolher o papel que lhe caíra quase ao pé. Foi quando, atraídos pelo destino implacável, seus olhos foram pousar direto nas botas de couro bordadas nos canos altos que calçavam os pés e escondiam as pernas secas do sujeito em frente, do outro lado da mesa oval. Teve a certeza de ter encontrado o que buscava: seu algoz. Não tremeu um só músculo do corpo e nem lhe traiu qualquer nervo. Apenas deixou que as lembranças amargas que trazia da vida dominassem por mais um segundo, cobrando-lhe o compromisso que tinha com a vingança. Ao mesmo tempo que via as botas e recolhia o papel do chão, veio-lhe a decisão de que a sua vingança não se adiaria mais um minuto sequer. Retomou a posição no assento e esperou.
Gonzaga, sem o aviso dos minutos seguintes, também foi ao chão por um motivo qualquer, com um gesto passou imperceptível e sem a mínima importância para Cristal. Abaixado, avistou em frente o par de pernas abertas mostrando ao fundo, lá no fundo, boa parte da região púbica vaginal através do orifício central de uma calcinha marrom de bordas brancas, exatamente igual à que de uns anos para cá levava no bolso e na consciência. Não se enervou nem tremeu qualquer músculo do seu corpo esquelético; apenas excitou-se incontrolavelmente à vista daquelas pernas da mulher que estavam em seu caminho pela segunda vez em busca de emprego.
Recomposto à mesa, deixou seu olhar cruzar com o de Cristal, a dona da calcinha furada. Corria a língua de um canto a outro da boca lambendo os lábios com a intenção de ser obsceno. Cristal recebeu a "carícia" com fingido prazer enquanto fazia a sua arma passar do interior da bolsa para a mão esquerda. Não deixou que seu olhar passasse a Gonzaga o último aviso.
Sob a mesa, Cristal cuidou da mira por muito tempo, quase imóvel. Gastou nisso quase quinze segundos, queria ter a certeza de que quando atirasse colocaria a bala bem entre os dois testículos, sem no entanto desejar que o infame morresse de imediato. Também não queria que ele perdesse a fala por causa da dor que lhe adviria com o furor da bala calibre 38, reservada a ele desde o dia do estupro. No seu entender Gonzaga era uma besta em pele humana sem qualquer merecimento e que, portanto, tinha que uivar de dor quando a força total da sua vingança o atingisse da forma planejada. Quanto mais gritasse mais diminuiria nas entranhas de Cristal o sangramento, a vergonha e o nojo.
Então, assustador, ecoou o tiro seco e certeiro, tanto mais porque apanhou ereto o pênis criminoso, desejoso de mais sevícias hediondas. Enquanto durou a eternidade dos dois ou três primeiros segundos que se seguiram, Gonzaga pareceu apenas assustado como os demais presentes. Não percebera ainda o dreno aberto até o reto e o sangue que lhe empapava as calças à altura do quadril.
Mesmo dominado pelo espanto e pela dor lancinante, Gonzaga ainda viveu os segundos suficientes para perceber que o projétil lhe destruíra quase todo o pênis, dilacerara inteiramente os dois testículos e seguira arruinando uma infinidade de delicados vasos sangüíneos, nervos e músculos, de forma irremediável. Certo de que chegava ao fim golpeado pela mão pesada da vingança implacável que lhe oferecia a um só tempo realidade e dor insuportáveis, aí uivou como a besta que era, repetiu o uivo mas não se mexeu mais, nem os olhos nem os dedos. Foi tombando devagar até bater no colo da morte.
- Essa desgraçada matou a nossa surpresa, ela sabia que o Dr. Gonzaga seria escolhido o novo presidente da Cooperativa Central dos Produtores de Leite do Vale do Caiapó - apontou-a berrando o descontrolado presidente que saía.
-Ela, esta maldita, atirou de propósito no piru dele. Infame, no piru dele não devia - acorreu aos berros um tal vice-presidente, apossando-se da mesma arma, com que disparou uma bala certeira na cabeça de Cristal.
Depois de se aproximar o máximo possível do que sobrou da face da morta,
ainda brandindo a arma, ele esclareceu:
- Ele era o meu homem, sua vaca.
Quando tudo voltou ao controle dos menos exaltados, foram encontradas as duas calcinhas, uma no bolso do Gonzaga bem perto do que sobrou do pênis e outra no corpo de Cristal, deixando escapar pelo orifício estranho uma mecha de pentelhos muito negros. Aí, as explicações já não eram mais necessárias: foram crimes passionais.

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O CONVENCIMENTO

O homem passou ao largo do terreno desocupado que se situava muito bem em relação aos melhores endereços da cidade. As certezas que lhe ocorrem são a do abandono e a de que invadiria aquele pedaço de terra para proveito seu e da sua família numerosa.
Adiante desceu do ônibus, retornou uns duzentos metros e se deu a melhor examinar o objeto das suas recentes intenções, demorando-se uns dez ou quinze minutos nessa tarefa. Primeiro caminhou devagar na parte frontal do terreno que chegava até o meio fio lateral direito da estrada asfaltada, com o que, na verdade mediu-o contando as passadas regulares, cada uma contando cerca de noventa centímetros. Também avaliou o barulho dos carros passando a todo instante sempre em alta velocidade.
Atento para não perder a conta foi à linha de fundo do terreno marcando em voz alta as passadas, ao mesmo tempo em que memorizava os pontos e a posição da tubulação de água encanada que aflorava de quando em vez. Avaliava a distribuição da vizinhança da direita e avançava; chegando ao fundo deteve-se um pouco mais para medir com os olhos a imensidão da área, fez contas mentais e concluiu que toda extensão do terreno chegaria facilmente a dois hectares de terra nua.
A seguir tomou um punhado de terra em suas mãos, esboroou-a primeiro e depois deixou vazar por entre os dedos como se fosse uma criança brincando de fazer poeira ao vento. Outra vez se abaixou para tomar novo punhado em suas mãos, cuspiu-a seguidamente, amassou-a até torná-la uma bolinha de barro, que seguiu moldando e amassando entre os dedos. Daí, pôs-se a fazer mesuras com essa bolinha de barro amassado como se quisesse jogá-la ao ar com gestos ensaiados, exasperando-se à medida que não conseguia fazê-la despregar-se da palma da mão com safanões cadenciados.
Com a ajuda dos dedos desfez-se da bolinha de terra atirando-a a pequena distância. Depois a pisoteou até transformá-la numa lâmina que se colou à sola do calçado lhe colocando no rosto um sorriso largo. Caminhou devagar para fora da área e sem olhar para trás desapareceu entre os demais usuários da estrada.
O “teste” da poeira e depois o da bolinha de barro pegajoso tinha indicado terra muito boa para a agricultura, esse conhecimento ele trazia como cultura ancestral infalível. Era plantar e colher. Convencido dessa forma foi-se o tal homem.
Dias depois surgiu do nada uma invasão bem ali, como se fora uma variável cotidiana desse fenômeno da expansão urbana. A aparência de pobreza é a marca comum nas pessoas que formam esses pelotões de invasores urbanos, em contraste com o grau de organização e força institucional que as invasões urbanas apresentam.
Em cada uma delas existe comando, mas não se percebe a hierarquia entre os líderes, embora seja visível o apoio logístico e doutrinário recebido. Esses líderes animam a resistência, o apoio logístico garante-lhes a longevidade no posto, a doutrinação coloca trechos constitucionais lavrados da legislação específica na boca de cada um dos invasores. Daí em diante o ato de invadir terras urbanas passa a ser um movimento.
O tal homem era muito ágil e sábio, pois no dia seguinte já exibia a sua casa pronta e instalada ao fundo do terreno, com o quintal já pontilhado aqui e ali por coqueiros, bananeiras, laranjeiras e limoeiros, árvores de adorno, no geral todas já no porte de arvoretas de metro e meio. O sol ainda não estava alto e ele já lavrava a terra nas entrelinhas do plantio permanente, com o fito de ali espalhar alfaces, cebolinha, coentro, feijão de corda e batata- doce.
Aos outros seus companheiros coube tarefa quase igual, em lotes que eram menores que o seu, formando um conjunto de aspecto rural lembrando um milagre irrefutável porque ao final daquele mesmo período agrícola já sairia dali grande volume de frutas, legumes, verduras e ovos, frangos, patos e leitões. No dia anterior tudo lá era baldio, um retrato heriveltiano
[1] do abandono programado e combinado com a especulação imobiliária urbano palaciana. Tão de repente quanto o surgimento dos invasores brotou a polícia, não se sabe de onde exatamente surgiu aquela centena de soldados estranhamente desarmados.
O comandante da soldadesca entrou sozinho na área, dirigiu-se ao líder dos invasores - o tal homem - e falaram-se por uns quatro ou cinco minutos. Não gesticularam forte e nem alteraram o tom da voz; olhavam especialmente atentos para um enorme caminhão que manobrava para posicionar-se estrategicamente num ponto ao fundo da área invadida, quase junto à parede da casa recém construída .
Estabelecido o entendimento entre ambos, o comandante pediu o megafone e ergueu o polegar da mão esquerda mostrando-o à tropa que imediatamente se movimentou cercando literalmente toda a área. O polegar erguido era um código: duas colunas se formaram de braços dados, dispondo fileiras de soldados frente a frente a pessoas no interior da invasão e populares que se aglomeravam ao derredor. Assim, bunda a bunda, costa a costa a soldadesca desarmada pôde ver a cara de espanto dos populares, quando gentilmente o próprio líder dos invasores empunhou o megafone e ordenou que todos os seus liderados se recolhessem ao interior dos seus barracos e permanecessem lá com os seus aparelhos de televisão ligados em qualquer canal.
Estrategicamente o comandante empurrou devagar o líder em direção ao seu próprio barraco para que também ele cumprisse a ordem. Estudadamente fingiu esquecer de resgatar o megafone de suas mãos, dirigindo-se a passos ensaiados da cadência militar ao caminhão tipo baú, pintado nas cores da corporação e estrategicamente ocupado por policiais militares devidamente identificados pelo fardamento que usavam.
Acionados por comandos eletrônicos autorizados e ordenados pelo comandante da operação, foram surgindo no teto e nas laterais do veículo instrumentos especiais de uso em filmagens e transmissões televisivas. Em segundos, em todas as telas dos aparelhos de televisão dos invasores e da vizinhança num raio de até quinhentos metros, estavam as imagens mostrando o massacre de agricultores sem-terra ocorrido recentemente no Norte do país. Detalhes do massacre iam passando lentamente: ora com um policial militar atirando friamente contra os lavradores, ora com lavradores caindo mortos ao chão, ora mães, esposas e filhos chorando desesperadamente sobre corpos caídos debaixo de insistente tiroteio sobrecabeça. Depois de exatos trinta minutos de exibição as imagens desapareceram das telas, o caminhão recolheu os seus tentáculos eletrônicos, o cerco policial se desfez e o silêncio ficou na área da invasão até a noite.
No dia seguinte, quando a cidade reacordou para a rotina urbana, na mesma área nada e nem ninguém se viu. Tudo era exatamente igual ao que foi há três dias antes: o que se via eram buracos, como covas, que receberam os pés direitos dos barracos e as culturas “permanentes”, com as quais aqueles homens e mulheres toscos pretenderam oferecer benfeitorias à nova “propriedade”. Além dos buracos (como covas no chão), abertos à espera de cadáveres, também ficou alhures num ponto qualquer da área o megafone do comandante.
Que destino tomou o tal homem, os seus companheiros e o comandante policial nunca foi possível precisar. O certo é que no endereço daquela invasão moram hoje políticos importantes, pastores evangélicos, oficiais militares e muitos, muitos homens de negócios bem sucedidos.
Lá mingúem sabe dessa história de invasão e desocupação, literalmente ninguém. Por isso lhe contei este conto.

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César Bernardo de Souza é mineiro de Volta Grande e nasceu a 15/01/1952, mas é radicado no Amapá desde 1974 onde atua como funcionário público e articulista. Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro licenciou-se em ciências agrícolas Em 1971 começou a escrever Posse das Árvores, que seu primeiro e único livro de poemas. Depois disso enveredou pelos caminhos da prosa de ficção e escreveu O Plantador de Cercas, Filhos da Vingança, Mestre Açaizeiro, Assembléia dos Peixes e Doutor das Calçadas, além de outros contos curtos da linha infanto-juvenil de uma série que ele batizou de “Para ler no ônibus” - todos aguardando a publicação. A partir de 1995 César Bernardo foi convidado a colaborar com artigos e crônicas para diversos jornais da capital (Diário do Amapá, Diário Zerão, Jornal da Cidade e Diário Marco Zero), além de publicar freqüentemente seus textos no informativo eletrônico Ana Express.

.........................[1] Herivelto Maciel é um artista plástico bastante conhecido no Amapá, que usa resinas de açaí e de outros vegetais na composição de suas obras.

César e sua esposa Consolação no Teatro das Bacabeiras

IVAN CARLO E AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS






Livro analisa como história em quadrinhos utilizou a teoria do caos
Gian Danton

 

O que a teoria do caos e uma história em quadrinhos de super-heróis têm em comum? Muito, de acordo com o novo livro lançado pela Marca de Fantasia, Watchmen e a teoria do caos, de autoria de Gian Danton.
O livro analisa como o escritor inglês Alan Moore usou os conceitos da teoria do caos e da geometria fractal para elaborar a minissérie Watchmen. Moore estrutura sua obra no chamado efeito borboleta, segundo o qual uma borboleta batendo suas asas na muralha da China pode provocar uma tempestade em Nova York. Da mesma forma, o surgimento de super-heróis provocaria grande mudança no mundo, com efeitos que vão da reeleição de Nixon ao recrudescimento da Guerra Fria.
Também a geometria fractal serve de inspiração para a história na criação de imagens auto-semelhantes.
O livro também analisa como Moore usa a história para criticar a visão clássica de ciência e defende uma visão sistêmica, próxima das idéias de Edgar Morin.
Considerado por muitos o capítulo mais importante do livro, “A Complexidade em escala” analisa, página a página, uma das partes de Watchmen e mostra como a discussão sobre a teoria do caos é trazida para as ciências humanas, assim como a necessidade da ciência abandonar sua visão positivista, que trata as pessoas não como sujeitos, mas como objetos.
Gian Danton é o pseudônimo do professor universitário Ivan Carlo Andrade de Oliveira, mestre em comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Gian também é roteirista de quadrinhos, tendo publicado em diversas editoras nacionais e estrangeiras e ganhado diversos prêmios.
O livro pode ser adquirido através do site da editora:

http://www.marcadefantasia.com.br ou nas principais livrarias de Macapá.

5 de jan. de 2006

CONTO, BIOGRAFIA E FOTOS DE HÉLIO PENNAFORT

Nesta foto, Hélio Pennafort (o carequinha ao fundo) toma banho num dos rios do Amapá.












O MERUOCA DO AMAPÁ

O bate-papo começou logo após o destrinchamento do aticó, tarefa realizada com a ajuda de duas garrafas de vinho tinto, ao natural. A noite estava morna com uns fiapos de nuvens sendo empurradas pelo cla­rão prateado da Lua (parece coisa de seresteiro). Ah, ia esquecendo de avisar aos desavisados: aticó é a parte mais nobre da nobilíssima gurijuba. Quando cortado por experientes pescadores, fica tão fino que chega à trans­parência. Pode ser assado pelo sol no toldo da canoa. E se come assim mesmo. Cozinhar um aticó, por exemplo, é sesquipedal ignorância culiná­ria. Mancada imperdoável. Seria a mesma coisa que você botar o filé para cozinhar com o feijão. Fica sem graça. Mas como ia dizendo, o bate-papo naquela noite morna começou após o rango. Onde estávamos? Num simpá­tico botequim, nos arredores da cidade do Amapá, para onde tínhamos ido, a fim de colher uma matéria sobre um pouco da vida do Meruoca, que vo­cês verão daqui a pouco. Naquele momento, o nosso grupo era uma suruba interiorana. Estavam ali aporemense, sucurijuense, juncalense, amaparino e oiapoquense.
Começou-se enaltecendo os chamados atributos físicos das ga­rotas do Amapá. Por sinal, duas delas participavam da roda em torno da mesa e ficaram, malaguetamente, ruborizadas quando Francisco (o do Aporema) disse que lá para as suas bandas as mulheres - criadas com leite de búfala - cresciam generosas nas protuberâncias e alegres no espírito. Isso, garantiu, sem falar no caquiado que magistralmente sabem executar.
Terminada a galhofada após outras minuciosas descrições (e indiscrições) do Francisco, alguém lembrou um episódio ocorrido, há tem­pos, envolvendo duas figuras bastante conhecidas na cidade. Ary Vieira trabalhava como radiotelegrafista, possuía uma bicicleta motorizada e al­gumas tarefas de roça. Devido às suas características - baixo, gordinho, ativo, sério - deram-lhe o apelido de Barão das Sete Mangueiras. Ricarte Maia, funcionário público, trabalhava nesse tempo no setor de obras da prefeitura. Tipo gozador, costumava percorrer a cidade montado no Pitéu, cavalo obediente que sabia de cor o rumo de todos os bares e não se abor­recia em esperar o dono tomar as suas talagadas cavalares. Pois bem, esses dois protagonizaram um acidente de trânsito nunca dantes acontecido na cidade e, por isso, bastante comentado. Testemunha ocular me disse que o negócio foi mais ou menos assim:
Quando o bairro das Sete Mangueiras - onde fica o campo de futebol - recebia os primeiros torcedores para uma partida entre Vera Cruz e Fronteira, numa tarde calorenta de domingo, Ary Vieira regressava, tran­qüilamente, da sua roça, trazendo dois sacos de farinha amarrados com ci­pó titica na garupa da bicimoto. Quase ao mesmo tempo, num bar não muito distante, Ricarte tomava a saideira e montava no Pitéu, para também ir ver o jogo no Sete Mangueiras. E bastou uma chicotada para que o fogo­so cavalo pegasse corda e saísse à toda, levando o irrequieto Roy Rogers do Araparizal, que acenava com um chapéu de couro para os admiradores de suas proezas eqüestres. Aproximando-se do campo, avistou o Barão que vinha em sentido contrário e quis tirar um “fino”. Nunca esperava, entre­tanto, que o Pitéu fosse desobedecê-lo na hora H. Resultado: o cavalo se chocou com a bicimoto, deu duas espetaculares cambalhotas, machucou a perna do “nobre”, levantou de novo, apanhou o ariado cavaleiro e relin­chou. Ofendido em seus domínios por um plebeu qualquer, o Barão das Sete Mangueiras,, após quase sair para a porrada com o Ricarte, procurou o delegado de polícia e registrou a queixa, exigindo reparos aos danos cau­sados pelo Pitéu. O delegado, por sua vez, disse que a única dificuldade seria a de proceder ao necessário laudo pericial, “pois é a primeira vez que em minha delegacia se registra uma colisão eqüino-motora”.


DE BUBUIA

Outro lance que animou a conversa foi contado pelo represen­tante do Sucuriju naquele grupo etílico-gozador. E o Orivaldo - parece esse o nome do cara - à medida que narrava o episódio, empostava a voz e enfrescalhava os gestos de modo a ironizar a turma do Amapá, que o ou­via atentamente.
Contou que, anos atrás, durante uma festa de arraial da santa padroeira da sua vila, chegou uma canoa cheia de gente do Amapá. Foram recebidos com a hospitalidade própria dos sucurijuenses e começaram a circular pelas passarelas - Sucuriju é igual Afuá, as ruas são de tábuas -, provando um caranguejo ali, um pirarucu acolá, entremeados, logicamente, com doses de vaqueiro da boa cachaça do Igarapé-Mirim.
Quando a noite chegou, na hora da novena, uns quinze deles já estavam mais para lá do que pra cá. Dois já haviam caído da ponte e suja­do a roupa da missa. Mesmo assim, foram para a capela e ainda ajudaram nos cânticos, incomodando os verdadeiros fiéis, que tiveram de suportar destoantes vozes pastosas e um enorme fedor de cachaça.
Terminada a reza, chegou a hora das brincadeiras do arraial. O leiloeiro começou a apregoar o produto arrecadado pela igreja, a aparelha­gem de som aumentou o volume e teve início aquele vaivém de gente pela estreita área das barraquinhas.
A certa altura, a turma do Amapá, que só andava em grupo, começou a dar em cima das garotas do Sucuriju, na expectativa de uma conquista fácil que tornasse a noite mais agradável e ... quem sabe? Acontece que a maneira de paquerar dos amaparinos era demais ostensiva para os brios sucurijuenses. Em vez de uma abordagem discreta, um bor­dejo de conversa, um olhar convidativo, o que fizeram foi logo passar o braço por cima do ombro, abraçar na marra e houve até beliscões na bun­da. Aí não deu outra. A turma do Sucuriju reagiu e reagiu para valer. Fize­ram um círculo em torno dos amaparinos e foram empurrando para a beira do rio aos gritos de “voltem para a canoa!”, “vão embora daqui!”. O dia­bo é que a maré estava seca e a canoa não podia sair. E, ainda por cima, estava fundeada bem longe e não havia nenhuma ubá por perto. “Não seja por isso” - comandou o líder dos sucurijuenses - “podem cair n’água e fi­quem de molho até a hora da maré. E ai daquele que se meter a besta e querer voltar pra terra. Vai levar muita porrada!”
Orivaldo garante que o quadro foi engraçado. Por quase duas horas ficaram de bubuia e, quando a maré chegou trazendo a canoa para perto, quatro deles estavam tão encriquilhados que quase nem podiam esticar a perna. Foi preciso o calor do fogareiro de bordo. E, no arraial, a festa continuava cada vez mais animada.



AS CANOAS DO MERUOCA

O primeiro a enaltecer a figura do Meruoca é o Jocelyn Collares, ex-prefeito do município. “Cansei de andar nas canoas do Meruoca quando era menino. Era como a gente chegava aqui na cidade, vindo da Ba­se. E afirmo a você que Meruoca foi uma das figuras mais populares, tra­balhadoras e estimadas que já passaram aqui pelo Amapá.”
Jocelyn tem razão. Todo mundo em Amapá, de meia idade para cima, lembra-se do Meruoca, principalmente das suas tiradas folclóricas. Ele escrevia palavrão na falca das suas canoas e quando alguém chegava no porto pedindo para ir à cidade, virava a cabeça como que apontando pa­ra o igarapé e avisava: “A única que tenho agora é a Penteiúda, pega ela”.
Meruoca chegou ao Amapá em 1915, tangido do Ceará por pe­quenas desavenças. Lá, armou uma casa na beira do igarapé que hoje leva o seu nome e começou a plantar e a criar. Siáudio Assunção Lemos convi­veu com ele: “Conheci o Meruoca rapando osso no Ceará. Era um homem extraordinário. Trabalhador como ele só. Chegou aqui e se deu bem, como, aliás, se deram todos os nordestinos, porque esta terra é acolhedora”. Siáudio fala que Meruoca quebrou uma espécie de tabu que existia no Amapá. “Ele desenvolveu muito a agricultura e incentivou o caboclo a plantar. Aqui existia uma superstição que dizia que quem plantava coco não comia coco, quem plantava manga não comia manga. Mas ele veio de uma terra como o Ceará, onde quem não trabalha morre de fome, e chegou aqui entusiasma­do. Aí o pessoal foi vendo o Meruoca plantar o cajueiro, a mangueira e começou a plantar também”.
“Eu sou da Serra do Meruoca, sou homem que não monta em cavalo alazão do pé direito branco e nem dobro a esquina quando vejo o inimigo” - costumava dizer esse nordestino sempre lembrado como o tipo do cara boa praça. “A gente chegava na casa do Meruoca e não tinha mais vontade de sair. Além do dedo de prosa, ele tinha sempre um peixinho assado na brasa, uma farinhad’água bem torradinha, uma paçoca de castanha de caju” – garante Siáudio, que cansou de passar por lá.
Hoje o porto do Meruoca é atravessado por uma ponte da i irada Amapá/Base Aérea. Os serviços que prestou aos antigos moradores da então vila do Espírito Santo, porém, não foram e acredito que iam, serão esquecidos. É uma pena que ninguém teve a idéia de guardar as canoinhas que transportavam a turma para a cidade. Com palavrão e tudo.


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Hélio, Neuza do Carmo e governador Anibal Barcellos 


HÉLIO GUARANY DE SOUZA PENNAFORT


Nasceu no município amapaense de Oiapoque no dia 21 de janeiro de 1938, filho de Rocque de Souza Pennafort e Cesarlina Guarany Pennafort e faleceu em São Paulo no dia 19 de fevereiro de 2001 em decorrência de problemas respiratórios. Em 1958 já editava em sua terra natal o jornal Vaga-lume, totalmente confeccionado em máquina de escrever e papel manilha, numa tiragem de 20 exemplares. Dois anos depois começa a colaborar com jornais da capital e desde essa época nunca mais abandonou o jornalismo. Quando veio para Macapá começou a trabalhar na Rádio Difusora e, logo depois, ingressou na Rádio Educadora, emissora pertencente à Prelazia. Foi intenso o seu trabalho naquela época, onde redigia e produzia vários programas, chegando a a criar uma mini novela denominada Um Pedaço de Vida, que também dirigiu. Hélio também colaborava com o jornal Voz Católica, onde publicava semanalmente uma coluna com reportagens, principalmente realizadas no interior, onde sempre esteve presente no contato direto com o caboclo amapaense, que conhece tão bem e soube imortalizar através de suas obras e do imenso acervo fotográfico que possui. Em 1973 estendeu suas atividades jornalísticas passando a publicar reportagens no jornal A Província do Pará. Além disso, teve trabalhos seus publicados no Jornal do Brasil e no Jornal da Tarde. Com o advento da televisão, Hélio Pennafort foi um dos primeiros repórteres da TV Amapá e também redigia o Jornal do Amapá, telejornal da emissora que até hoje continua no ar. Ao lado de suas atividades jornalísticas, Hélio também fez carreira no serviço público do ex-Território, onde ingressou em 1957, como radiotelegrafista em Vila Velha do Cassiporé, sendo posteriormente transferido para Oiapoque, onde permaneceu até 1964, época em que foi transferido para Macapá. Nesse mesmo ano foi designado para exercer o cargo de prefeito do município de Calçoene, onde ficou até 1966. De 1973 em diante começou a trabalhar no Palácio do Setentrião onde exerceu os cargos de assessor de relações públicas, assessor para assuntos de turismo, assessor de imprensa, subchefe e chefe de gabinete do governador. Por vários anos foi membro do Conselho de Cultura, é membro da Associação Amapaense de Escritores- APES e da Academia Amapaense de Letras e recebeu vários títulos e homenagens, como o Diploma de Honra ao Mérito e o título de Cidadão de Macapá outorgados pela Câmara de Vereadores. O Comando Militar da Amazônia também lhe deu o título de Colaborador Emérito do Exército. Obras publicadas: Microreportagem. Macapá, Imprensa Oficial: 1982; Um Pedaço Fotopoético do Amapá (l983); Entrevista ao Leitor (sd); Estórias do Amapá (1984) Os Heróis da Ribanceira (1986); Amapaisagens (1992); Barcellos - Síntese de dois Governos (1994). Seus livros abordam aspectos sócio-culturais do povo amapaense, bem como procuram descrever as belezas naturais da região, além do registro bem-humorado dos “causos” e da vida do caboclo.)

Texto de Paulo Tarso Barros





Hélio sendo entrevistado pelo repórter Marco Antônio ao lado
do então presidente da Fundecap João Milhomen
(Biblioteca Pública - 1998- arquivo Paulo Tarso)


Hélio e Arnaldo Niskier

4 CONTOS DE ELÍUDE VIANA



Elíude Viana

INSÍDIAS DA CURIOSIDADE



Ela telefonou-me e pediu que eu descesse. Saímos no seu carro. Dirigia agitada, mas não ousei fazer-lhe qualquer pergunta. Entramos num hotel barato. Solta essa pasta aí mesmo no chão, porra! Ela gritou sem dar-me às costas, enquanto girava a chave na fechadura. Obedeci para diminuir-lhe o nervosismo. Miserável... Que tipo de homem tu és, hein? Pérfido, doente, nojento. Pressionou o dedo na minha testa e me alfinetou o peito com o silenciador da pistola. Empurrou-me para trás. A cama recebeu-me sem reclamar do meu peso. Ela movimentava-se para um lado e outro tal qual o pêndulo de um relógio descompassado. Passava a mão nos cabelos, grunhia. Covarde, covarde, biltre, ela é uma cadela, sim, mas não sei dizer se o que sinto é raiva... Ultimamente ela andava cabisbaixa... Talvez fosse dissimulação ou talvez lhe pesasse a culpa. Em tempo algum havia reparado que possuía belos pés. Grandes, alvos, de unhas miudinhas. Os seios, sacudidos pela respiração entrecortada, pareceram-me maiores. Naquele quarto de motel – o ato de ser levado ali, à força, excitava-me, apesar da má circunstância – ela afigurava-se-me sedutora e sobrelevada. Diz algo cafajeste, diz, te explica! Não, não te explica não, pra quê? se eu vi, por uma maldita sorte, de longe, quando vocês iam saindo de casa, da NOSSA CASA! Ah, merda de nossa casa! Ela também mora lá! Que cena bestial, vocês se beijando furtivamente! Eu quis a morte naquela hora! Havíamos acertado que eu iria levar Nora ao médico, pela manhã. Sabendo que estávamos sozinhos, adentrei seu quarto. Foi irresistível vê-la em roupas íntimas; sempre fizera questão de escondê-las de mim. a possuí ali mesmo, no chão. à saída, na garagem, eu a beijara. Meu primeiro contato com Nora à luz do sol. Que susto quando os vi, o calafrio me subindo dos pés à cabeça... Quase me descontrolo. Instintivamente, entrei logo depois no quarto dela, um lenço de papel largado no chão, nele restos de sêmen, teeeeu esperma, seu animal! Naquele quarto imundo eu senti o cheiro agressivo da sacanagem de vocês! De que maneira a seduziste, hein? Calhorda, ela tem mais que o dobro da tua idade – o dobro... Rapidamente olhou-se no espelho para certificar-se da sua jovialidade, da sua beleza gritante, comparando-se a outra, porventura. Era bastante atraente. O quadril redondo estava exato, nada lhe faltando ou sobrando. Horas de academia e massagens para manter-se intacta. Não foram poucas as vezes em que percebi homens excitados a cobiçarem suas coxas rijas, bronzeadas. Uma fêmea que sabia administrar seus feromônios. Gostava muito de si. Não cria que tenha desejado morrer. Por que isso comigo, por quê? A voz, apesar de meio embargada pela ira, sequer denotava tremor. Puxou um banco do bar, sentou-se diante de mim. Tão viril, tu sempre me quiseste a qualquer instante que eu desejasse... Às vezes até me surpreendias... e isso aqui sempre foi todo teu – mostrou-me o sexo, apertando-o com a mão sobre a calcinha. O que lhe argumentar, se meu prazer era menos intenso do que eu demonstrava, se depois de nossas relações eu me masturbava olhando as fotos de Nora, as quais escondia no forro do banheiro, sob o banco do carro, nos lugares mais inusitados onde supunha que faríamos amor? Jamais o gozo que obtinha com Luiza me bastava. Meu orgasmo ultrapassava os limites sensuais e tantas, tantas vezes recorri à imagem de Nora. Mais do que isso - berrou - Eu sempre fui sincera, porra, apesar dos machos que me comiam com os olhos, dos telefonemas obscenos até de amigos nossos... é, de amigos, o Lucinho me constrangeu inúmeras vezes; na tua última viagem “quero te comer” ele sussurou-me ao telefone, “que essa amizade com o Guto vá pra puta que pariu, faço o que tu quiseres!” Foi por esse motivo que me esquivei dele, que evitei falar com ele depois, passei a recusar sua presença em casa. Ah, se ela imaginasse que eu nem teria me importado. Desconheço fidelidade e não sou possessivo, nunca a cobrei, sou diferente. A idéia de ser traído fazia tanto sentido para mim quanto sentir ciúmes vendo-a ser penetrada por outros, quando praticávamos troca de casais. Vou A-CA-BAR contigo, safado, depois comigo, sucumbo à vergonha de conviver comigo mesma e com ela... Mortos ou vivos, as pessoas conhecerão o porquê da nossa separação. Imobilizou-se um segundo, pensante. Saberão, sim, da tua anomalia, não existem segredos se o tempo nos trai, revelando-os. Retomou o frenesi da pistola, a qual parecia extensão de sua mão. Deveria matá-la também, deveria tê-la trazido para cá e a colocado na tua frente, despi-la, oferecer-te seu corpo. Meu deus, é insuportável até... até de imaginar tua boca no sexo dela, creio que vomitaria. E colocou a mão na boca como se estivesse a segurar o frêmito do vômito. Urrou. Levantou-se e me deu um tapa no rosto. o impacto foi forte. Minha cabeça bordejou. Não reagi. Nada em mim doía. A estranheza dos fatos devia estar doendo-lhe mais. Lentamente voltou ao banco e me cravou os olhos como se quisesse atravessar-me o crânio. Queria entender a traição e balançava a cabeça para os lados. Quando? Como começou? Insistiu. Intenção de dar-lhe explicação nenhuma em mim havia. Nem a visão da arma, a mirar-me sem descanso, intimidava-me. Ignorava receio, tampouco arrependimento, apenas certa indisposição de narrar-lhe que tudo iniciara muito tempo antes, antes dela aparecer em minha vida, antes de Nora, antes de eu tornar-me adulto. Indolência até para lhe insinuar que, se ela aceitasse a situação com Nora, manteríamos sigilo e a vida seguiria bem entre nós. Perda de tempo. Somente ela vai ficar sabendo o motivo... Somente ela, espero... sussurrou os pensamentos sem me olhar. Não consigo odiá-la, confessou-me. Mas, nenhum resquício de bons sentimentos tenho; sinto ojeriza, repugna-me só de imaginar que a envolveste, que ela te engoliu o membro. Sobrou-me um sentimento estranho, que chego a pensar ser piedade da infeliz, ou de mim. Prostituto! Infeliz mesmo sou eu eu eu! Qual seria a reação dela se eu a xingasse de puta, será que me encararia depois que eu a acusasse de ter trepado contigo, meu marido? Para diminuir a mágoa, para pagar a desonra, para desultrajar-me só a tua morte. Riu, um riso quase confinado, apontando-me o dedo em riste. A tua morte, sim. A ti, porque me destroçaste, nos destroçaste e a ela também, eu abomino. Lançou um olhar redondo pelo quarto. Imaginei que buscava platéia. Recua, ordenou. Vai para a cabeceira, me fita bem, agora. Abriu a blusa, a saia, autoritariamente subiu na cama. Pode contemplar o que jogaste fora por causa de... de... um monturo de pelancas, por causa de um corpo semimorto, varicoso. Sacudiu a cabeleira arremessando-me ao nariz um cheiro de lavanda. Lembrei da minha dama, mansa, temerosa senhora. Aquela, sem quase viço no corpo, de musculatura flácida e de pele afinada pelos anos, que tanto me davam tesura; aquela que, deitada ao meu lado, parecia esconder-se, semicoberta pelo lençol, insegura por causa da beleza jovial que lhe fugira. que, contudo, ao me amar sobrepujava-se, conduzindo-me tal um filho dileto, cujo aprendizado dependia dela. Aquela que me consumia todos os fluidos, me arrebatava. Nela eu gozava, gozava inteiramente, até o fim, até me restar somente o desejo de voltar, abrigar-me em sua vagina novamente, exaurir-me e me recarregar. Essa vontade me alentava agora. Luiza se abaixara, dobrando os joelhos, ficando perto de mim. Ainda me repetiu a pergunta: Por quê? Diz uma mentira que me caiba na cabeça... eu os amava, aos dois... que canalhice... desabafou, pela primeira vez lacrimejante. Mas não titubeou. Apontou-me a arma e disparou. No travesseiro. Milésimos de segundos antes, como se eu fosse outra bala, colocara-me ao seu lado. Apertei-lhe o braço e o voltei contra si. Desfechei no seu peito, por meio de sua mão, um projétil certeiro. tudo tão célere que nenhuma dor lhe afligiu, seus olhos me disseram isto. abertos, pareciam perplexos ante a rapidez do meu movimento, mas sem incômodo físico. Detestava sofrer. Inconscientemente almejava o que fiz. Nós dois havíamos querido aquele meu gesto. as angústias envelhecem a alma, idem o corpo. e muitas mulheres, iguais à Luiza, mais que a perda súbita da vida, sentem pânico ao pensar na morte progressiva da velhice. Desse tipo não é Nora, meiga Nora, terna sogra, quase mãe, para quem volto assim que limpar os vestígios da minha presença neste quarto, assim que sair sorrateiramente a pé, assim que regressar, de táxi, ao meu trabalho, assim que receber a triste notícia do suicídio de Luiza, e puser o luto da nossa viuvez familiar.










ANTES QUE O DIA DEVOLVA O MEDO

Elíude Viana






O homem parecia dormir. Mas era apenas um corpo sem vida. Estava caído entre as pernas do rapaz. Eu, à frente dos dois, na quase-escuridão, assemelhava-me a uma vela bruxuleante, que a muito custo permanecia acesa. Momentaneamente pensei no que havia restado daquele homem. Não no seu cadáver na sala. No que imaginava ser sua vida antes do poder, dos filhos e da mulher desaparecida. Se teria planejado ser o que foi, se teria imaginado morrer assim. A morte não responde as dúvidas, refleti; ela as deixa órfãs, para sempre.



Simultaneamente perguntei ao outro se aquela morte o mudaria; o que faria da vida depois; de que jeito iria esquecer. O que recebi como resposta foi um olhar seco e um comando para ajudá-lo a retirar o morto da casa, colocá-lo na camionete e despejá-lo num açude raso, bem distante. Como podia ser tão frio, resmunguei. Menina, falou-me, rispidamente, tudo o que eu quero agora é sepultar nossos problemas, entendeu? Para que ficar pensando – arrematou, menos agressivo –, conjeturando coisas estranhas para o futuro? Enquanto falava, enrolava o corpo no lençol roto, que não encobria totalmente as pernas. Fixando, por segundos, o olhar no cadáver, sussurrou – Difícil é esquecer o passado.



Da minha memória apagaram-se os motivos daquele crime. Diante da morte consumada o antes perdera o significado. Medo... Vingança... Equívoco... Agressão... Revide... O meu temor respirava com alarido, o suor eu não conseguia controlar. Notei a bainha da calça azul desfeita. Acocorei-me. O que fazes sentada aí? Apanha o outro lado, me ajuda logo. Não me mexi. Naquele instante, eu era a garota que levara uma surra desconhecendo o motivo e que, depois das sevícias, encolhera-se no escuro do quarto, apavorada, tremendo sem chorar. Ou a mulher cujo algoz bêbado espancara e violentara. Eu era a dor.



A parte do corpo que estava suspensa nas mãos do outro foi largada. Pareceu-me um saco de feijão, atirado num silo qualquer por braçais cansados. Pude distinguir na sua voz uma ternura autoritária e, ao mesmo tempo, sincera. Já acabou, menina... Vem, vamos findar essa história antes que a claridade nos denuncie. Levantou meu rosto e lá depositou um desajeitado beijo de encorajamento. Conduziu minhas mãos aos tornozelos descobertos e me disse para segurá-los com resistência. Olhei-o através da penumbra. Apesar da ossatura saliente, por ter passado dias faminto, sob um sol impiedoso, o outro me recordava o sansão cego e determinado da fábula bíblica. Aquiesci com um mutismo obediente, repassando minhas forças derradeiras àquela empreitada. O flagelo que se repete, se repete, se repete, em vez de ativar o desejo de morrer, incita a coragem. Éramos adultos, apesar da pouca idade; crianças, apesar da brutalidade. Gente pronta. Prontos para partir, antes que o sol devolvesse-nos o medo.



A vida ao esvair-se dos membros enrijece-os, esfria-os. Toda a carne e todos os ossos viram fardo pesado e inútil. De nada mais valia ao homem o vigor dos músculos brutos. Se houvesse lamentação de alguém ele ainda viveria por mais uns dias nas lembranças. Passando os anos, contudo, não lhe restaria nem o sobrenome. Ninguém, de mais nada, tomaria conhecimento. Se dependesse de minha piedade ou da consciência resoluta do meu irmão, o pai, para toda a eternidade, jamais teria uma história de remorso para ser contada.




 
Maria,
A dor agora me é imanente, indissociável. Cá estou eu, entre meus dentes, mastigando angústias no prato do sol que aos poucos janta esta madrugada. Angústia tem vários sinônimos: é secura de escuro, é rachadura fresca, é esgoto famélico que nos engole repentinamente. Tem sabor de terra azeda, cozida ao sol. Vazio no estômago, quando a fome de respostas, embora saciada, não nos satisfaz. Quase não tenho chão, te digo. Estou etérea, aérea, porém impotente para voar. Na cabeça somente pensamentos de chumbo.
Quando as dúvidas afligiram-me, meu grande desejo foi que as imagens tivessem ficado retidas no espelho, Maria, para eu analisar os fatos. Assim, poderia obter provas da suspeita de que outra pessoa esteve no interior do nosso carro – assumindo meu lugar, ou protagonizando o papel de namorada, perdido por mim no teatro dos anos. Que se utilizara, sim, do espelho no protetor de sol do carona, o qual encontrei abaixado, fora da posição em que eu o deixara. Sentada ao volante, ficava imaginando-o cumprir um ritual de meses ou anos... São esses pontapés primeiros, intrigantes, que nos desencadeiam a dor da ansiedade, a curiosidade de querer saber mais e mais.
Antes da celeuma total dos meus nervos, eu filosofava: todos têm o direito de se envolver com alguém, sem compromisso. Isto é mais do que permitido pelas leis naturais – é quase exigido. Foi a sociedade, com preceitos moralizadores, que forjou uma estrada de relacionamentos indissolúveis e retos, instigando, assim, o exercício dos desvios. Desvios masculinos, tão-somente. E quanto aos meus desejos? Porque mulher também tem, Maria, vontades iguais e, às vezes, até maiores. As instituições é que não lhe são condescendentes. Teorizei muito, amiga, antes de deparar-me com o óbvio: quando fome, medo, traição, berram na nossa pele, a razão cicia, fala pouco.
Certa tarde, um céu cinzento jogava seu hálito frio de encontro à vidraça da janela, embaçando-a. O som do telefone dele aqueceu o ambiente. Com desculpas improvisadas, avisou que iria sair. A vontade que tive foi impedir-lhe a partida jogando no seu rosto, de chofre, minha desconfiança. “- Minha intuição não falha! Mentiroso! “- Intuição é falta de inteligência, de siso”, ele teria devolvido e dado de ombros. Eu estaria a partir de então com o passional cinqüentão prevenido e sem remorsos. Se é que estes existem. Natural foi posar de crédula em sua mise en scène de marido atarefado para evitar suspeitas. Retornou após três horas e quinze minutos – exatas. Recebi-o com um beijo arreliado, na intenção de provar o gosto dela. Meu pensamento encheu-se de imagens sensuais, distorcidas, e eu a odiei intensamente. Transferir a irascibilidade à terceira pessoa é praxe em infidelidade conjugal, Maria. A tendência é abonar as faltas do parceiro.
Nas tardes seguintes isolava-me num porto, observando borboletas empurradas por espirros de ar, a passear seus cios em busca do acasalamento. Só os insetos são criaturas alegres. Não constroem lares e nem têm tempo de vida suficiente para envelhecer e serem substituídos. A juventude ninfal de minha adversária implicava uma querela desleal com meus quarenta e cinco anos de vida – e vinte de casulo nupcial. Imaginava-a possuir o biótipo longilíneo de quem ainda nem parira. Como, Maria? Como matar a crueldade desses amores que se crisalidam nas carcaças da relação antiga?
Numa manhã, decidida pela certeza, não fui ao escritório. Na ausência dele escavei gavetas, bolsos de paletó e pastas comerciais aparentemente estéreis desses assuntos. A sofreguidão dos dedos contrastava com a cautela; esmiuçar sem desarrumar; concentrar-me na procura, atenta a quaisquer ruídos estranhos interferentes na cumplicidade do silêncio. Foi quando as indicações chegaram-me às mãos. Entre notas fiscais achei cartões de mau gosto, com frases imbecis “Você é a pessoa mais importante do mundo. Eu te amo. A. D. 23.04.96”. Muitos outros... 97, 98... Anos! E, atualíssimo, um bilhete em papel decorado dizendo “a aula termina mais cedo na sexta, às nove, nove e meia. No pátio do colégio, vai ter uma exposição de fotos. Me apanha? Beijo. 25.02.99”. Coraçõezinhos, nuvens e citações de Paulo Coelho arrematavam o recado. Exposição... Colégio Vicentino.
É estranho o que te vou revelar, mas naquele instante senti pena da garota. Não sei bem explicar. Muita amabilidade existia onde eu esperava sensualidade, argúcia. Senti-me menos infeliz por perceber falta de ladinice à criatura – uma grande falha, caso ela tencionasse tê-lo definitivamente. Aumentou-me a curiosidade aquele gostar do tipo amor-adolescente-infantilóide. A competição pareceu-me menos difícil.
Noite da véspera, extensa e incômoda. Posso jurar-te que dormindo ele sorria. Fui à sacada. Em pouco mais de três horas, dezoito cigarros ajudaram-me a traçar o plano da descoberta.
Saí do velho cais rumo à conclusão dos meus projetos. Desapareci a tarde inteira. Nem passei em casa para evitar que ele pedisse o carro. Assumi o seu lugar a poucos metros da porta do colégio, num trecho semi-iluminado onde poderia ter o automóvel visto sem, no entanto, ser identificada. Minha expectativa era de que, vendo o chevrollet familiar, a garota se aproximasse. Queria muitíssimo ver, perto dos meus, os olhos que não encontrara no espelho retrovisor; fazê-los sentir a força de viver que se concentra num ser ameaçado por uma doença letal.
Muitos alunos agrupavam-se na escada à hora da saída. Leva deles, como pássaros soltos de gaiolas, arrulhavam conversas ininteligíveis. Duas moças foram se aproximando do carro. Meu peito disparou ao reparar que a menina de 14 ou 15 anos observava-me atentamente (ou tentava adivinhar-me pelo pára-brisa) vindo em direção ao veículo. Era, meu Deus, uma ninfeta com idade de nossa filha! Andar chamativo numa calça justa, caminhar seguro. Sorriu. Passou sem fazer menção de parar. Expirei longamente o desconforto.
Nada mais parecia mover-se no tempo, exceto as esponjas escuras no céu, sugando estrelas e criando tônus. Muitos caminhavam em sentido oposto ao meu, porque a parada de ônibus estava adiante. Quase dez horas. Iniciou um chuvisco e os ajuntamentos começaram a se dispersar. Um grupo deslocou-se em minha direção, Maria. Duas moças, que me pareciam familiares, uma senhora e uma criança vinham na frente de um garoto que, ainda lento, seguia atrás. A chuva desceu em negritude. Os cinco correram. O moço retardatário, por causa do aguaceiro, também acelerou. Veloz. Com a cabeça baixa, abriu rapidamente a porta do carro jogando-se ao meu lado. Respirava ofegantemente, mas sorria.



RAIZ DE ANO NOVO


Elíude Viana

“A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima.
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.“. Hilda Hilst.

Caminhando a poucos metros das laterais dos muros baixos, observo nas plantas o viço, fruto do incipiente inverno; o cheiro da terra lavada esfrega-se em minhas narinas. Natal é passado, graças a Chrónos. Avesso à bondade dezembrina dos homens e ao mercantilismo vestido de papai noel, sou menos um na estatística dos que cultuam esse folclore. Em mim, a melancolia plantada na alma produz sua flor inexplicável. Um jasmineiro enche a tarde de odores brancos, enquanto exalo amargura.
Mudará o ano: seis dias faltam para atravessar-nos a esperança por dias melhores, a despeito do caos visível. Lembro de nós dois. Do meu desejo de passarmos juntos – e unidos – o fim do ano. O receio de término é um fel no cerne da minha língua. Por mais que eu o cuspa, não logro livrar-me dele. À frente, rodas apressadas transportam metade da poça à saia da senhora a caminho da missa vespertina. O susto me desperta das divagações lamentosas. Deixo o sol de inverno arder-me no rosto e sigo, pisando em falso na estreiteza da perplexidade.
Empurro a porta da sala. Rangem as malcuidadas dobradiças avisando-lhe que estou em casa. Ouço um “olá” pálido, saído do escritório. Vejo suas costas aprumadas, imóveis se não chegassem ao braço destro os ziguezagues da caneta. De um lado da escrivaninha ruma de provas a corrigir, do outro, a garrafa com chocolate – forte e meio amargo – provavelmente pela metade. O cabelo suspenso por um grampo de metal expõe o pescoço claro, lisinho, como se estivesse à espera de meu toque. Não me aproximo. Seus afazeres de mestra diligente recusar-me-iam, com provas de exaustão, exercícios de desculpas, como de fato já o fizeram em inúmeras tentativas. O rechaço torna-se-me mais agressivo dado ao seu distanciamento cortês no arrefecimento de nossa relação, oito anos depois.
Os móveis negros, revestidos pelo descaso, têm nódoas e pontos mofados. Esgueiro-me pelo espaço da sala, circunscrito a cinco metros quadrados ocupados. Tudo muito pequeno e farto de livros, de discos antigos e silêncio. Ando farto de tudo. A foto dela sem sorriso, exposta no bar, também me revela isso. Inversamente aos primeiros anos, quando as aquisições iniciais provocavam-nos comemorações efusivas. O apartamento ficou do jeito que a encantava. A olhava com enternecimento, e feliz com sua vivacidade e bom humor – contrastantes ao meu jeito introspectivo de ser. Naquela época, absorvido por um sentimento desmesurado, desisti de todos meus casos, antigos e futuros, sob protestos dos amigos. Nem de amigos precisei mais.
Em volta, as paredes abafam-me; espalham-me seu escuro, sufocam-me. Pastas empilhadas em cima da mesa, das cadeiras, empurram-me para fora, competem comigo por espaço. Hesito em afastá-las do caminho. São austeras, têm corpos musculosos de papéis. Condenam-me a presença e o meu olhar enviesado a elas. No canto, a rede de sisal. Parada. Será o segundo fim de ano sem celebração a dois, sem festa particular. E houve muitas.
Não sei precisar em qual data amarrotou-se a lisura do seu encanto por mim. Ocorrera na época em que ela entupiu as parcas horas de folga com aulas extras? Ou quando minhas conversas, sem liames com as suas, desataram no desentendimento? Conseqüências, puras conseqüências. Evidenciou-se quando eu, ao procurar carinho, achara sua pele fria, esquiva. Creio que levitava a alma ao menor contato do meu corpo. O que a conduzira à estação dos toques repelentes? Suspeitava de qual seria a resposta, por isso nunca lhe perguntara. Casais com mais de cinco anos de teto agarram-se, como caramujos, no limo do companheirismo, nas paredes do patrimônio construído. A custo aturam-se, dizem. O amor esmaece a partir do quarto... O desastroso é quando o desamor é unilateral.
Como efeito da maré de desprezo, ancorou-me um barco de despeito e ira. Ao pretender que visse minha importância, a ofendia desbragadamente e mais agravava a agonia do sentimento moribundo. O revide chegava-me em forma de olhares de repulsa, apatia pelo meu desatino, e abandono da discussão. O mutismo contrastava com seu cantarolar, o chalrar de outrora. As olheiras, acentuadas, se justificariam na estafa do excessivo trabalho, se não fossem um disfarce para ocultar o incômodo de minha companhia. O lugar que ocupava na cama estava invariavelmente frio. Conservava-se atarefada até alta madrugada, esperando que o sono me vencesse o desejo. Flagelava-se. Minha insistência fingia não entender que a cama não compartilhada era o seu manifesto ao amor repelido.
Mas a rejeição, gradual, estimulou meu desespero. Suspeitava de amores clandestinos a exaurirem sua paixão por mim. Quis me vingar. Retornei aos bares, às conversas frugais dos velhos amigos e novas amigas. Demorava a voltar do trabalho e, ao retornar, enunciava desculpas inverossímeis, por mais que ela não perguntasse. Deixava souvenir de motéis em lugares óbvios; afastava-me para atender às chamadas telefônicas. Ansiava por uma reação vulcânica. Qual nada. Tampouco eu discutia. Questionar, para quê? Desconcertante, extremamente desconfortável, seria escutar não gosto mais de ti, tenho-te asco. Ter ásperas verdades friccionadas no rosto.
Vasculhando seus papéis deparei-me com um poema escrito à mão: não servem às paixões imperiosas o sal que entornamos dos olhos quando a ausência tem a mesma temporalidade das bolhas de sabão.Primeiro, lamentei a inata incapacidade poética que jamais me possibilitou, sequer, de preencher um cartão de aniversário com dizeres pessoais. Interpretando a mensagem, porém, invadiu-me o ciúme cabal, homocêntrico. Atingiu-me o âmago e se propagou às pontas dos dedos. Fiquei impassível. Retirei o papel dentre os demais e o coloquei visível, amparado numa das divisórias da escrivaninha. Quis que ela visse que eu o havia lido. Não o retirou da posição, nem se manifestou a respeito.
O ruído das folhas e o vai-e-vem da esferográfica são os únicos sinais de vida que me chegam aos ouvidos. Impelido pela nostalgia, vou ao quarto. Agacho-me, encosto-me à parede e as suas ranhuras. A tinta deixa-me marcas na camisa, que sairão. O que me mancha por dentro, talvez. A cama, inóspita, encara-me como a um estranho (ou por que lhe sou bastante conhecido?). Fora nela que eu, tantas vezes, desorientado pelas nossas discussões, abafava as lágrimas, desmentindo a antinatural – e propalada – aridez dos homens.
Há objetos estranhos ao quarto. A bandeja sobre o criado-mudo, a tesoura de podadura sobre a penteadeira e a filmadora no assoalho, ao lado do guarda-roupa, até denotariam desleixo na arrumação se fosse outra mulher que morasse nesta casa. Eu as leio como provas declaradas de seu desânimo para com nossa vida.
De cima da cômoda apanho a tesoura, comprada para servir ao jardim de inverno, que não vingou. Empunho-a com vigor (estremece-me sabê-la ter o poder de vivificar plantas por meio de talhos profundos). O mal cortado pela raiz, penso no adágio. Algo estava me sendo insinuado: raiz, semanticamente, pode significar final e também começo. Os pensamentos sobem-me efervescentes e energizam meus membros. O fim e o recomeço pesam alguns gramas em minhas mãos. Encosto a tesoura em meu rosto; dou alguns passos. À frente dos olhos, instantaneamente, surge-me o escritório. Ela inerte. O pescoço oferecendo-se à poda. Um golpe azul, lâmina sobre a alvura... A tinta vermelha das correções escorre pelos meus dedos. O espírito se dilata, libertando-me das frustrações dos últimos anos.
Minha face estremece ao encosto do metal frio. Abro os olhos, desperto. Escancaro a janela para o início da noite. Sobre a cômoda, largo a tesoura e o fardo anoso. O vento, encorpado, que agora carrega a chuva, instiga-me necessidades verdes, arbóreas – espaço sem vasos. E sem raízes. Desse esmaecido jardim conjugal preciso, tão-somente, de algumas mudas de roupas.
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Elíude Viana considera-se paraense e amapaense, pois entregou e recebeu de Macapá quase a metade de sua existência. Atualmente, seu nome é um dos mais importantes da nova geração de poetas.
Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Amapá e é acadêmica do curso de Psicologia da Facukdade IMMES. Tem dois livros de poesia publicados – Vestes da Alma e Das páginas arrancadas –; cinco livros infantis com temática folclórica regional – A pescada e o tralhoto, A cachoeira que geme, O trono tarumã; O cipó-de-fogo e A pedra do rio -; quatro livros didáticos com temática ambiental – O pescado que nos sustenta: como garantir sua defesa, O lado cinza das queimadas, Água, seiva da terra: por que conservar os rios, Meio ambiente: as mudanças que fazem a diferença –; e dois livros institucionais – Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) e sua aplicabilidade no sul do Amapá, PEGA: Programa Estadual de Gestão Ambiental.

Contatos com a autora: eliudeviana@gmail.com


Paulo Tarso, Luly Rojanski, Pedro Paulo e Elíude Viana
Sarau na Confraria Tucuju (2008)

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Elíude Viana