Autor: César Bernardo
A ansiedade era o único ponto em comum entre Gonzaga e Cristal, um sentimento embaraçoso que ambos tentavam administrar horas antes do início da reunião mensal ordinária que se realizaria no Salão Oval da Cooperativa Central dos Produtores de Leite do Vale do Caiapó. Na manhã daquele dia se definiria a permanência ou não de Gonzaga no posto de direção que ocupava na organização e se Cristal conseguiria o emprego tão esperado e necessário, na Divisão Especial de Produtos Dietéticos.
Por conta dessa tão grande ansiedade, ambos passaram acordados uma noite
nervosa, calorenta o suficiente para fazer-lhes subir a adrenalina para muito
além do suportável. Como se estivessem comandados pelos impulsos eletrônicos de um controle remoto, cada qual buscou ruas para caminhar sem rumos definidos. Cansados das caminhadas, foram se refestelar na janela dos seus apartamentos querendo espiar a madrugada chegar com algum bom sentimento novo e findar com a ansiedade que já os mergulhava numa espécie de solidão compartilhada.
Cristal não tinha uma janela aberta para os poucos encantos da pequena cidade. Seus olhos, como que tentando escapar do vento frio que descia da montanha, varrendo para a sarjeta papeis miúdos e folhas secas que queriam atapetar toda superfície da rua, só podiam ir até as paredes descascadas das velhas carcaças dos prédios em frente. A rua das Escravas, comprida e estreita, morta nas madrugadas, parecia mover-se debaixo dos pés.
Debruçada devagar sobre o batente largo da janela de duas folhas, as pernas já adormecidas ao embalo do seu silêncio mais profundo, Cristal deixava repassar em sua mente o filme em preto e branco da grande tragédia da sua longa vida medida em exatos vinte e seis anos, quatro meses, dois dias e mais as seis horas que a consumiam daquela maneira desde os primeiros minutos daquele dia.
Muitas vezes - e poucas horas entregues às lembranças, ela reviu as pernas macérrimas que um dia se desnudaram bruscamente diante dela, dando forma a uma das mais violentas e bestiais atitudes que um homem é capaz de praticar contra uma mulher. Ela que, atraída por uma possibilidade de empregar-se, terminou estuprada e manchada pela bestialidade humana.
Depois de tanto tempo, ainda sem entender direito como se viu encurralada entre a surpresa e a barbaridade, não conhecia uma forma de perdão para aquele indivíduo e nem sabia de onde tirara tanta força para suportar a vida até ali.
Por causa da dor e da vergonha, Cristal gravou no fundo de sua memória a imagem das pernas secas e do par de botas com todos aqueles detalhes que bordavam as laterais dos canos altos, até quase aos joelhos. Dali em diante, dominada pela impotência, decidiu que teria a vingança como a única meta da sua vida e a tragédia como o seu maior segredo.
Gonzaga, como que querendo carícias da brisa matutina, abriu de vez as duas folhas da janela grande debruçando-se sobre os seus remorsos mais fortes. O que lhe vinha à mente com mais força, desde há muito tempo, era a imagem da calcinha que lhe ficara como testemunho do gozo bestial que conseguira num dia distante, quando subjugou cruelmente uma jovem mulher que tanta excitação lhe causara.
Lembrava-se bem de uma calcinha marrom de bordas brancas, com um orifício centro frontal grande o suficiente para deixar à vista boa parte da região púbica vaginal, como ele jamais tinha visto, razão pela qual a trazia consigo depois de tanto tempo. Suas lembranças inconfessáveis misturavam-se com a certeza da impunidade. O anonimato em que se julgava convenientemente mergulhado fazia-o pensar que tudo corria a favor dos seus planos de poder na CCPLVC.
Chegou, finalmente, o momento da reunião tão esperada. Na distribuição das pessoas em seus assentos, o acaso colocou Gonzaga e Cristal frente a frente, separados pela descomunal largura da mesa oval que dava nome ao salão retangular. Não sabiam exatamente o que um significava para o outro.
Cristal mostrava-se mais contida, estava informada de que a reunião seria longa, se estenderia muito em razão dos discursos que se sucederiam a partir do Secretário Geral até o Presidente, estando entre os quais seis vice-primeiros-presidentes e três subdiretores que, ainda bem, teriam direito a um máximo de três minutos de pronunciamento, sem réplica.
Quanto a Gonzaga, parecia tratar-se de uma pedra. Nada se poderia perceber ocorrendo em seu íntimo. Para ele seria mais uma reunião de rotina que viria consolidar ainda mais a posição de mando que ocupava na empresa há mais de seis anos. O futuro da hora seguinte não lhe deu nenhum aviso.
Num dado momento, reunião em andamento, foi ao chão a folha de pauta através da qual Cristal acompanhava os acontecimentos com a devida atenção.
Discretamente afastou um pouco a cadeira que ocupava e abaixou-se devagar para recolher o papel que lhe caíra quase ao pé. Foi quando, atraídos pelo destino implacável, seus olhos foram pousar direto nas botas de couro bordadas nos canos altos que calçavam os pés e escondiam as pernas secas do sujeito em frente, do outro lado da mesa oval. Teve a certeza de ter encontrado o que buscava: seu algoz. Não tremeu um só músculo do corpo e nem lhe traiu qualquer nervo. Apenas deixou que as lembranças amargas que trazia da vida dominassem por mais um segundo, cobrando-lhe o compromisso que tinha com a vingança. Ao mesmo tempo que via as botas e recolhia o papel do chão, veio-lhe a decisão de que a sua vingança não se adiaria mais um minuto sequer. Retomou a posição no assento e esperou.
Gonzaga, sem o aviso dos minutos seguintes, também foi ao chão por um motivo qualquer, com um gesto passou imperceptível e sem a mínima importância para Cristal. Abaixado, avistou em frente o par de pernas abertas mostrando ao fundo, lá no fundo, boa parte da região púbica vaginal através do orifício central de uma calcinha marrom de bordas brancas, exatamente igual à que de uns anos para cá levava no bolso e na consciência. Não se enervou nem tremeu qualquer músculo do seu corpo esquelético; apenas excitou-se incontrolavelmente à vista daquelas pernas da mulher que estavam em seu caminho pela segunda vez em busca de emprego.
Recomposto à mesa, deixou seu olhar cruzar com o de Cristal, a dona da calcinha furada. Corria a língua de um canto a outro da boca lambendo os lábios com a intenção de ser obsceno. Cristal recebeu a "carícia" com fingido prazer enquanto fazia a sua arma passar do interior da bolsa para a mão esquerda. Não deixou que seu olhar passasse a Gonzaga o último aviso.
Sob a mesa, Cristal cuidou da mira por muito tempo, quase imóvel. Gastou nisso quase quinze segundos, queria ter a certeza de que quando atirasse colocaria a bala bem entre os dois testículos, sem no entanto desejar que o infame morresse de imediato. Também não queria que ele perdesse a fala por causa da dor que lhe adviria com o furor da bala calibre 38, reservada a ele desde o dia do estupro. No seu entender Gonzaga era uma besta em pele humana sem qualquer merecimento e que, portanto, tinha que uivar de dor quando a força total da sua vingança o atingisse da forma planejada. Quanto mais gritasse mais diminuiria nas entranhas de Cristal o sangramento, a vergonha e o nojo.
Então, assustador, ecoou o tiro seco e certeiro, tanto mais porque apanhou ereto o pênis criminoso, desejoso de mais sevícias hediondas. Enquanto durou a eternidade dos dois ou três primeiros segundos que se seguiram, Gonzaga pareceu apenas assustado como os demais presentes. Não percebera ainda o dreno aberto até o reto e o sangue que lhe empapava as calças à altura do quadril.
Mesmo dominado pelo espanto e pela dor lancinante, Gonzaga ainda viveu os segundos suficientes para perceber que o projétil lhe destruíra quase todo o pênis, dilacerara inteiramente os dois testículos e seguira arruinando uma infinidade de delicados vasos sangüíneos, nervos e músculos, de forma irremediável. Certo de que chegava ao fim golpeado pela mão pesada da vingança implacável que lhe oferecia a um só tempo realidade e dor insuportáveis, aí uivou como a besta que era, repetiu o uivo mas não se mexeu mais, nem os olhos nem os dedos. Foi tombando devagar até bater no colo da morte.
- Essa desgraçada matou a nossa surpresa, ela sabia que o Dr. Gonzaga seria escolhido o novo presidente da Cooperativa Central dos Produtores de Leite do Vale do Caiapó - apontou-a berrando o descontrolado presidente que saía.
-Ela, esta maldita, atirou de propósito no piru dele. Infame, no piru dele não devia - acorreu aos berros um tal vice-presidente, apossando-se da mesma arma, com que disparou uma bala certeira na cabeça de Cristal.
Depois de se aproximar o máximo possível do que sobrou da face da morta,
ainda brandindo a arma, ele esclareceu:
- Ele era o meu homem, sua vaca.
Quando tudo voltou ao controle dos menos exaltados, foram encontradas as duas calcinhas, uma no bolso do Gonzaga bem perto do que sobrou do pênis e outra no corpo de Cristal, deixando escapar pelo orifício estranho uma mecha de pentelhos muito negros. Aí, as explicações já não eram mais necessárias: foram crimes passionais.
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O CONVENCIMENTO
O homem passou ao largo do terreno desocupado que se situava muito bem em relação aos melhores endereços da cidade. As certezas que lhe ocorrem são a do abandono e a de que invadiria aquele pedaço de terra para proveito seu e da sua família numerosa.
Adiante desceu do ônibus, retornou uns duzentos metros e se deu a melhor examinar o objeto das suas recentes intenções, demorando-se uns dez ou quinze minutos nessa tarefa. Primeiro caminhou devagar na parte frontal do terreno que chegava até o meio fio lateral direito da estrada asfaltada, com o que, na verdade mediu-o contando as passadas regulares, cada uma contando cerca de noventa centímetros. Também avaliou o barulho dos carros passando a todo instante sempre em alta velocidade.
Atento para não perder a conta foi à linha de fundo do terreno marcando em voz alta as passadas, ao mesmo tempo em que memorizava os pontos e a posição da tubulação de água encanada que aflorava de quando em vez. Avaliava a distribuição da vizinhança da direita e avançava; chegando ao fundo deteve-se um pouco mais para medir com os olhos a imensidão da área, fez contas mentais e concluiu que toda extensão do terreno chegaria facilmente a dois hectares de terra nua.
A seguir tomou um punhado de terra em suas mãos, esboroou-a primeiro e depois deixou vazar por entre os dedos como se fosse uma criança brincando de fazer poeira ao vento. Outra vez se abaixou para tomar novo punhado em suas mãos, cuspiu-a seguidamente, amassou-a até torná-la uma bolinha de barro, que seguiu moldando e amassando entre os dedos. Daí, pôs-se a fazer mesuras com essa bolinha de barro amassado como se quisesse jogá-la ao ar com gestos ensaiados, exasperando-se à medida que não conseguia fazê-la despregar-se da palma da mão com safanões cadenciados.
Com a ajuda dos dedos desfez-se da bolinha de terra atirando-a a pequena distância. Depois a pisoteou até transformá-la numa lâmina que se colou à sola do calçado lhe colocando no rosto um sorriso largo. Caminhou devagar para fora da área e sem olhar para trás desapareceu entre os demais usuários da estrada.
O “teste” da poeira e depois o da bolinha de barro pegajoso tinha indicado terra muito boa para a agricultura, esse conhecimento ele trazia como cultura ancestral infalível. Era plantar e colher. Convencido dessa forma foi-se o tal homem.
Dias depois surgiu do nada uma invasão bem ali, como se fora uma variável cotidiana desse fenômeno da expansão urbana. A aparência de pobreza é a marca comum nas pessoas que formam esses pelotões de invasores urbanos, em contraste com o grau de organização e força institucional que as invasões urbanas apresentam.
Em cada uma delas existe comando, mas não se percebe a hierarquia entre os líderes, embora seja visível o apoio logístico e doutrinário recebido. Esses líderes animam a resistência, o apoio logístico garante-lhes a longevidade no posto, a doutrinação coloca trechos constitucionais lavrados da legislação específica na boca de cada um dos invasores. Daí em diante o ato de invadir terras urbanas passa a ser um movimento.
O tal homem era muito ágil e sábio, pois no dia seguinte já exibia a sua casa pronta e instalada ao fundo do terreno, com o quintal já pontilhado aqui e ali por coqueiros, bananeiras, laranjeiras e limoeiros, árvores de adorno, no geral todas já no porte de arvoretas de metro e meio. O sol ainda não estava alto e ele já lavrava a terra nas entrelinhas do plantio permanente, com o fito de ali espalhar alfaces, cebolinha, coentro, feijão de corda e batata- doce.
Aos outros seus companheiros coube tarefa quase igual, em lotes que eram menores que o seu, formando um conjunto de aspecto rural lembrando um milagre irrefutável porque ao final daquele mesmo período agrícola já sairia dali grande volume de frutas, legumes, verduras e ovos, frangos, patos e leitões. No dia anterior tudo lá era baldio, um retrato heriveltiano[1] do abandono programado e combinado com a especulação imobiliária urbano palaciana. Tão de repente quanto o surgimento dos invasores brotou a polícia, não se sabe de onde exatamente surgiu aquela centena de soldados estranhamente desarmados.
O comandante da soldadesca entrou sozinho na área, dirigiu-se ao líder dos invasores - o tal homem - e falaram-se por uns quatro ou cinco minutos. Não gesticularam forte e nem alteraram o tom da voz; olhavam especialmente atentos para um enorme caminhão que manobrava para posicionar-se estrategicamente num ponto ao fundo da área invadida, quase junto à parede da casa recém construída .
Estabelecido o entendimento entre ambos, o comandante pediu o megafone e ergueu o polegar da mão esquerda mostrando-o à tropa que imediatamente se movimentou cercando literalmente toda a área. O polegar erguido era um código: duas colunas se formaram de braços dados, dispondo fileiras de soldados frente a frente a pessoas no interior da invasão e populares que se aglomeravam ao derredor. Assim, bunda a bunda, costa a costa a soldadesca desarmada pôde ver a cara de espanto dos populares, quando gentilmente o próprio líder dos invasores empunhou o megafone e ordenou que todos os seus liderados se recolhessem ao interior dos seus barracos e permanecessem lá com os seus aparelhos de televisão ligados em qualquer canal.
Estrategicamente o comandante empurrou devagar o líder em direção ao seu próprio barraco para que também ele cumprisse a ordem. Estudadamente fingiu esquecer de resgatar o megafone de suas mãos, dirigindo-se a passos ensaiados da cadência militar ao caminhão tipo baú, pintado nas cores da corporação e estrategicamente ocupado por policiais militares devidamente identificados pelo fardamento que usavam.
Acionados por comandos eletrônicos autorizados e ordenados pelo comandante da operação, foram surgindo no teto e nas laterais do veículo instrumentos especiais de uso em filmagens e transmissões televisivas. Em segundos, em todas as telas dos aparelhos de televisão dos invasores e da vizinhança num raio de até quinhentos metros, estavam as imagens mostrando o massacre de agricultores sem-terra ocorrido recentemente no Norte do país. Detalhes do massacre iam passando lentamente: ora com um policial militar atirando friamente contra os lavradores, ora com lavradores caindo mortos ao chão, ora mães, esposas e filhos chorando desesperadamente sobre corpos caídos debaixo de insistente tiroteio sobrecabeça. Depois de exatos trinta minutos de exibição as imagens desapareceram das telas, o caminhão recolheu os seus tentáculos eletrônicos, o cerco policial se desfez e o silêncio ficou na área da invasão até a noite.
No dia seguinte, quando a cidade reacordou para a rotina urbana, na mesma área nada e nem ninguém se viu. Tudo era exatamente igual ao que foi há três dias antes: o que se via eram buracos, como covas, que receberam os pés direitos dos barracos e as culturas “permanentes”, com as quais aqueles homens e mulheres toscos pretenderam oferecer benfeitorias à nova “propriedade”. Além dos buracos (como covas no chão), abertos à espera de cadáveres, também ficou alhures num ponto qualquer da área o megafone do comandante.
Que destino tomou o tal homem, os seus companheiros e o comandante policial nunca foi possível precisar. O certo é que no endereço daquela invasão moram hoje políticos importantes, pastores evangélicos, oficiais militares e muitos, muitos homens de negócios bem sucedidos.
Lá mingúem sabe dessa história de invasão e desocupação, literalmente ninguém. Por isso lhe contei este conto.
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César Bernardo de Souza é mineiro de Volta Grande e nasceu a 15/01/1952, mas é radicado no Amapá desde 1974 onde atua como funcionário público e articulista. Na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro licenciou-se em ciências agrícolas Em 1971 começou a escrever Posse das Árvores, que seu primeiro e único livro de poemas. Depois disso enveredou pelos caminhos da prosa de ficção e escreveu O Plantador de Cercas, Filhos da Vingança, Mestre Açaizeiro, Assembléia dos Peixes e Doutor das Calçadas, além de outros contos curtos da linha infanto-juvenil de uma série que ele batizou de “Para ler no ônibus” - todos aguardando a publicação. A partir de 1995 César Bernardo foi convidado a colaborar com artigos e crônicas para diversos jornais da capital (Diário do Amapá, Diário Zerão, Jornal da Cidade e Diário Marco Zero), além de publicar freqüentemente seus textos no informativo eletrônico Ana Express.
.........................[1] Herivelto Maciel é um artista plástico bastante conhecido no Amapá, que usa resinas de açaí e de outros vegetais na composição de suas obras.
César e sua esposa Consolação no Teatro das Bacabeiras
2 comentários:
Muito interessabte a ciação do APES para estimular o aumento da produção literaria local e revelar novos talentos.Mas a minha dúvida é a seguinte, de que forma vocês estimulam os autores amapaenses? O governo estadual ajuda
finançeiramente nas divulgações de lançamento? Como ocorre isso, explique melhor, por favor?
Muito interessabte a ciação do APES para estimular o aumento da produção literaria local e revelar novos talentos.Mas a minha dúvida é a seguinte, de que forma vocês estimulam os autores amapaenses? O governo estadual ajuda
finançeiramente nas divulgações de lançamento? Como ocorre isso, explique melhor, por favor?
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