O MERUOCA DO AMAPÁ
O bate-papo começou logo após o destrinchamento do aticó, tarefa realizada com a ajuda de duas garrafas de vinho tinto, ao natural. A noite estava morna com uns fiapos de nuvens sendo empurradas pelo clarão prateado da Lua (parece coisa de seresteiro). Ah, ia esquecendo de avisar aos desavisados: aticó é a parte mais nobre da nobilíssima gurijuba. Quando cortado por experientes pescadores, fica tão fino que chega à transparência. Pode ser assado pelo sol no toldo da canoa. E se come assim mesmo. Cozinhar um aticó, por exemplo, é sesquipedal ignorância culinária. Mancada imperdoável. Seria a mesma coisa que você botar o filé para cozinhar com o feijão. Fica sem graça. Mas como ia dizendo, o bate-papo naquela noite morna começou após o rango. Onde estávamos? Num simpático botequim, nos arredores da cidade do Amapá, para onde tínhamos ido, a fim de colher uma matéria sobre um pouco da vida do Meruoca, que vocês verão daqui a pouco. Naquele momento, o nosso grupo era uma suruba interiorana. Estavam ali aporemense, sucurijuense, juncalense, amaparino e oiapoquense.
Começou-se enaltecendo os chamados atributos físicos das garotas do Amapá. Por sinal, duas delas participavam da roda em torno da mesa e ficaram, malaguetamente, ruborizadas quando Francisco (o do Aporema) disse que lá para as suas bandas as mulheres - criadas com leite de búfala - cresciam generosas nas protuberâncias e alegres no espírito. Isso, garantiu, sem falar no caquiado que magistralmente sabem executar.
Terminada a galhofada após outras minuciosas descrições (e indiscrições) do Francisco, alguém lembrou um episódio ocorrido, há tempos, envolvendo duas figuras bastante conhecidas na cidade. Ary Vieira trabalhava como radiotelegrafista, possuía uma bicicleta motorizada e algumas tarefas de roça. Devido às suas características - baixo, gordinho, ativo, sério - deram-lhe o apelido de Barão das Sete Mangueiras. Ricarte Maia, funcionário público, trabalhava nesse tempo no setor de obras da prefeitura. Tipo gozador, costumava percorrer a cidade montado no Pitéu, cavalo obediente que sabia de cor o rumo de todos os bares e não se aborrecia em esperar o dono tomar as suas talagadas cavalares. Pois bem, esses dois protagonizaram um acidente de trânsito nunca dantes acontecido na cidade e, por isso, bastante comentado. Testemunha ocular me disse que o negócio foi mais ou menos assim:
Quando o bairro das Sete Mangueiras - onde fica o campo de futebol - recebia os primeiros torcedores para uma partida entre Vera Cruz e Fronteira, numa tarde calorenta de domingo, Ary Vieira regressava, tranqüilamente, da sua roça, trazendo dois sacos de farinha amarrados com cipó titica na garupa da bicimoto. Quase ao mesmo tempo, num bar não muito distante, Ricarte tomava a saideira e montava no Pitéu, para também ir ver o jogo no Sete Mangueiras. E bastou uma chicotada para que o fogoso cavalo pegasse corda e saísse à toda, levando o irrequieto Roy Rogers do Araparizal, que acenava com um chapéu de couro para os admiradores de suas proezas eqüestres. Aproximando-se do campo, avistou o Barão que vinha em sentido contrário e quis tirar um “fino”. Nunca esperava, entretanto, que o Pitéu fosse desobedecê-lo na hora H. Resultado: o cavalo se chocou com a bicimoto, deu duas espetaculares cambalhotas, machucou a perna do “nobre”, levantou de novo, apanhou o ariado cavaleiro e relinchou. Ofendido em seus domínios por um plebeu qualquer, o Barão das Sete Mangueiras,, após quase sair para a porrada com o Ricarte, procurou o delegado de polícia e registrou a queixa, exigindo reparos aos danos causados pelo Pitéu. O delegado, por sua vez, disse que a única dificuldade seria a de proceder ao necessário laudo pericial, “pois é a primeira vez que em minha delegacia se registra uma colisão eqüino-motora”.
DE BUBUIA
Outro lance que animou a conversa foi contado pelo representante do Sucuriju naquele grupo etílico-gozador. E o Orivaldo - parece esse o nome do cara - à medida que narrava o episódio, empostava a voz e enfrescalhava os gestos de modo a ironizar a turma do Amapá, que o ouvia atentamente.
Contou que, anos atrás, durante uma festa de arraial da santa padroeira da sua vila, chegou uma canoa cheia de gente do Amapá. Foram recebidos com a hospitalidade própria dos sucurijuenses e começaram a circular pelas passarelas - Sucuriju é igual Afuá, as ruas são de tábuas -, provando um caranguejo ali, um pirarucu acolá, entremeados, logicamente, com doses de vaqueiro da boa cachaça do Igarapé-Mirim.
Quando a noite chegou, na hora da novena, uns quinze deles já estavam mais para lá do que pra cá. Dois já haviam caído da ponte e sujado a roupa da missa. Mesmo assim, foram para a capela e ainda ajudaram nos cânticos, incomodando os verdadeiros fiéis, que tiveram de suportar destoantes vozes pastosas e um enorme fedor de cachaça.
Terminada a reza, chegou a hora das brincadeiras do arraial. O leiloeiro começou a apregoar o produto arrecadado pela igreja, a aparelhagem de som aumentou o volume e teve início aquele vaivém de gente pela estreita área das barraquinhas.
A certa altura, a turma do Amapá, que só andava em grupo, começou a dar em cima das garotas do Sucuriju, na expectativa de uma conquista fácil que tornasse a noite mais agradável e ... quem sabe? Acontece que a maneira de paquerar dos amaparinos era demais ostensiva para os brios sucurijuenses. Em vez de uma abordagem discreta, um bordejo de conversa, um olhar convidativo, o que fizeram foi logo passar o braço por cima do ombro, abraçar na marra e houve até beliscões na bunda. Aí não deu outra. A turma do Sucuriju reagiu e reagiu para valer. Fizeram um círculo em torno dos amaparinos e foram empurrando para a beira do rio aos gritos de “voltem para a canoa!”, “vão embora daqui!”. O diabo é que a maré estava seca e a canoa não podia sair. E, ainda por cima, estava fundeada bem longe e não havia nenhuma ubá por perto. “Não seja por isso” - comandou o líder dos sucurijuenses - “podem cair n’água e fiquem de molho até a hora da maré. E ai daquele que se meter a besta e querer voltar pra terra. Vai levar muita porrada!”
Orivaldo garante que o quadro foi engraçado. Por quase duas horas ficaram de bubuia e, quando a maré chegou trazendo a canoa para perto, quatro deles estavam tão encriquilhados que quase nem podiam esticar a perna. Foi preciso o calor do fogareiro de bordo. E, no arraial, a festa continuava cada vez mais animada.
AS CANOAS DO MERUOCA
O primeiro a enaltecer a figura do Meruoca é o Jocelyn Collares, ex-prefeito do município. “Cansei de andar nas canoas do Meruoca quando era menino. Era como a gente chegava aqui na cidade, vindo da Base. E afirmo a você que Meruoca foi uma das figuras mais populares, trabalhadoras e estimadas que já passaram aqui pelo Amapá.”
Jocelyn tem razão. Todo mundo em Amapá, de meia idade para cima, lembra-se do Meruoca, principalmente das suas tiradas folclóricas. Ele escrevia palavrão na falca das suas canoas e quando alguém chegava no porto pedindo para ir à cidade, virava a cabeça como que apontando para o igarapé e avisava: “A única que tenho agora é a Penteiúda, pega ela”.
Meruoca chegou ao Amapá em 1915, tangido do Ceará por pequenas desavenças. Lá, armou uma casa na beira do igarapé que hoje leva o seu nome e começou a plantar e a criar. Siáudio Assunção Lemos conviveu com ele: “Conheci o Meruoca rapando osso no Ceará. Era um homem extraordinário. Trabalhador como ele só. Chegou aqui e se deu bem, como, aliás, se deram todos os nordestinos, porque esta terra é acolhedora”. Siáudio fala que Meruoca quebrou uma espécie de tabu que existia no Amapá. “Ele desenvolveu muito a agricultura e incentivou o caboclo a plantar. Aqui existia uma superstição que dizia que quem plantava coco não comia coco, quem plantava manga não comia manga. Mas ele veio de uma terra como o Ceará, onde quem não trabalha morre de fome, e chegou aqui entusiasmado. Aí o pessoal foi vendo o Meruoca plantar o cajueiro, a mangueira e começou a plantar também”.
“Eu sou da Serra do Meruoca, sou homem que não monta em cavalo alazão do pé direito branco e nem dobro a esquina quando vejo o inimigo” - costumava dizer esse nordestino sempre lembrado como o tipo do cara boa praça. “A gente chegava na casa do Meruoca e não tinha mais vontade de sair. Além do dedo de prosa, ele tinha sempre um peixinho assado na brasa, uma farinhad’água bem torradinha, uma paçoca de castanha de caju” – garante Siáudio, que cansou de passar por lá.
Hoje o porto do Meruoca é atravessado por uma ponte da i irada Amapá/Base Aérea. Os serviços que prestou aos antigos moradores da então vila do Espírito Santo, porém, não foram e acredito que iam, serão esquecidos. É uma pena que ninguém teve a idéia de guardar as canoinhas que transportavam a turma para a cidade. Com palavrão e tudo.
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Hélio, Neuza do Carmo e governador Anibal Barcellos
HÉLIO GUARANY DE SOUZA PENNAFORT
Nasceu no município amapaense de Oiapoque no dia 21 de janeiro de 1938, filho de Rocque de Souza Pennafort e Cesarlina Guarany Pennafort e faleceu em São Paulo no dia 19 de fevereiro de 2001 em decorrência de problemas respiratórios. Em 1958 já editava em sua terra natal o jornal Vaga-lume, totalmente confeccionado em máquina de escrever e papel manilha, numa tiragem de 20 exemplares. Dois anos depois começa a colaborar com jornais da capital e desde essa época nunca mais abandonou o jornalismo. Quando veio para Macapá começou a trabalhar na Rádio Difusora e, logo depois, ingressou na Rádio Educadora, emissora pertencente à Prelazia. Foi intenso o seu trabalho naquela época, onde redigia e produzia vários programas, chegando a a criar uma mini novela denominada Um Pedaço de Vida, que também dirigiu. Hélio também colaborava com o jornal Voz Católica, onde publicava semanalmente uma coluna com reportagens, principalmente realizadas no interior, onde sempre esteve presente no contato direto com o caboclo amapaense, que conhece tão bem e soube imortalizar através de suas obras e do imenso acervo fotográfico que possui. Em 1973 estendeu suas atividades jornalísticas passando a publicar reportagens no jornal A Província do Pará. Além disso, teve trabalhos seus publicados no Jornal do Brasil e no Jornal da Tarde. Com o advento da televisão, Hélio Pennafort foi um dos primeiros repórteres da TV Amapá e também redigia o Jornal do Amapá, telejornal da emissora que até hoje continua no ar. Ao lado de suas atividades jornalísticas, Hélio também fez carreira no serviço público do ex-Território, onde ingressou em 1957, como radiotelegrafista em Vila Velha do Cassiporé, sendo posteriormente transferido para Oiapoque, onde permaneceu até 1964, época em que foi transferido para Macapá. Nesse mesmo ano foi designado para exercer o cargo de prefeito do município de Calçoene, onde ficou até 1966. De 1973 em diante começou a trabalhar no Palácio do Setentrião onde exerceu os cargos de assessor de relações públicas, assessor para assuntos de turismo, assessor de imprensa, subchefe e chefe de gabinete do governador. Por vários anos foi membro do Conselho de Cultura, é membro da Associação Amapaense de Escritores- APES e da Academia Amapaense de Letras e recebeu vários títulos e homenagens, como o Diploma de Honra ao Mérito e o título de Cidadão de Macapá outorgados pela Câmara de Vereadores. O Comando Militar da Amazônia também lhe deu o título de Colaborador Emérito do Exército. Obras publicadas: Microreportagem. Macapá, Imprensa Oficial: 1982; Um Pedaço Fotopoético do Amapá (l983); Entrevista ao Leitor (sd); Estórias do Amapá (1984) Os Heróis da Ribanceira (1986); Amapaisagens (1992); Barcellos - Síntese de dois Governos (1994). Seus livros abordam aspectos sócio-culturais do povo amapaense, bem como procuram descrever as belezas naturais da região, além do registro bem-humorado dos “causos” e da vida do caboclo.)
Texto de Paulo Tarso Barros
Hélio sendo entrevistado pelo repórter Marco Antônio ao lado
do então presidente da Fundecap João Milhomen
(Biblioteca Pública - 1998- arquivo Paulo Tarso)
Hélio e Arnaldo Niskier
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