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5 de jan. de 2006

4 CONTOS DE ELÍUDE VIANA



Elíude Viana

INSÍDIAS DA CURIOSIDADE



Ela telefonou-me e pediu que eu descesse. Saímos no seu carro. Dirigia agitada, mas não ousei fazer-lhe qualquer pergunta. Entramos num hotel barato. Solta essa pasta aí mesmo no chão, porra! Ela gritou sem dar-me às costas, enquanto girava a chave na fechadura. Obedeci para diminuir-lhe o nervosismo. Miserável... Que tipo de homem tu és, hein? Pérfido, doente, nojento. Pressionou o dedo na minha testa e me alfinetou o peito com o silenciador da pistola. Empurrou-me para trás. A cama recebeu-me sem reclamar do meu peso. Ela movimentava-se para um lado e outro tal qual o pêndulo de um relógio descompassado. Passava a mão nos cabelos, grunhia. Covarde, covarde, biltre, ela é uma cadela, sim, mas não sei dizer se o que sinto é raiva... Ultimamente ela andava cabisbaixa... Talvez fosse dissimulação ou talvez lhe pesasse a culpa. Em tempo algum havia reparado que possuía belos pés. Grandes, alvos, de unhas miudinhas. Os seios, sacudidos pela respiração entrecortada, pareceram-me maiores. Naquele quarto de motel – o ato de ser levado ali, à força, excitava-me, apesar da má circunstância – ela afigurava-se-me sedutora e sobrelevada. Diz algo cafajeste, diz, te explica! Não, não te explica não, pra quê? se eu vi, por uma maldita sorte, de longe, quando vocês iam saindo de casa, da NOSSA CASA! Ah, merda de nossa casa! Ela também mora lá! Que cena bestial, vocês se beijando furtivamente! Eu quis a morte naquela hora! Havíamos acertado que eu iria levar Nora ao médico, pela manhã. Sabendo que estávamos sozinhos, adentrei seu quarto. Foi irresistível vê-la em roupas íntimas; sempre fizera questão de escondê-las de mim. a possuí ali mesmo, no chão. à saída, na garagem, eu a beijara. Meu primeiro contato com Nora à luz do sol. Que susto quando os vi, o calafrio me subindo dos pés à cabeça... Quase me descontrolo. Instintivamente, entrei logo depois no quarto dela, um lenço de papel largado no chão, nele restos de sêmen, teeeeu esperma, seu animal! Naquele quarto imundo eu senti o cheiro agressivo da sacanagem de vocês! De que maneira a seduziste, hein? Calhorda, ela tem mais que o dobro da tua idade – o dobro... Rapidamente olhou-se no espelho para certificar-se da sua jovialidade, da sua beleza gritante, comparando-se a outra, porventura. Era bastante atraente. O quadril redondo estava exato, nada lhe faltando ou sobrando. Horas de academia e massagens para manter-se intacta. Não foram poucas as vezes em que percebi homens excitados a cobiçarem suas coxas rijas, bronzeadas. Uma fêmea que sabia administrar seus feromônios. Gostava muito de si. Não cria que tenha desejado morrer. Por que isso comigo, por quê? A voz, apesar de meio embargada pela ira, sequer denotava tremor. Puxou um banco do bar, sentou-se diante de mim. Tão viril, tu sempre me quiseste a qualquer instante que eu desejasse... Às vezes até me surpreendias... e isso aqui sempre foi todo teu – mostrou-me o sexo, apertando-o com a mão sobre a calcinha. O que lhe argumentar, se meu prazer era menos intenso do que eu demonstrava, se depois de nossas relações eu me masturbava olhando as fotos de Nora, as quais escondia no forro do banheiro, sob o banco do carro, nos lugares mais inusitados onde supunha que faríamos amor? Jamais o gozo que obtinha com Luiza me bastava. Meu orgasmo ultrapassava os limites sensuais e tantas, tantas vezes recorri à imagem de Nora. Mais do que isso - berrou - Eu sempre fui sincera, porra, apesar dos machos que me comiam com os olhos, dos telefonemas obscenos até de amigos nossos... é, de amigos, o Lucinho me constrangeu inúmeras vezes; na tua última viagem “quero te comer” ele sussurou-me ao telefone, “que essa amizade com o Guto vá pra puta que pariu, faço o que tu quiseres!” Foi por esse motivo que me esquivei dele, que evitei falar com ele depois, passei a recusar sua presença em casa. Ah, se ela imaginasse que eu nem teria me importado. Desconheço fidelidade e não sou possessivo, nunca a cobrei, sou diferente. A idéia de ser traído fazia tanto sentido para mim quanto sentir ciúmes vendo-a ser penetrada por outros, quando praticávamos troca de casais. Vou A-CA-BAR contigo, safado, depois comigo, sucumbo à vergonha de conviver comigo mesma e com ela... Mortos ou vivos, as pessoas conhecerão o porquê da nossa separação. Imobilizou-se um segundo, pensante. Saberão, sim, da tua anomalia, não existem segredos se o tempo nos trai, revelando-os. Retomou o frenesi da pistola, a qual parecia extensão de sua mão. Deveria matá-la também, deveria tê-la trazido para cá e a colocado na tua frente, despi-la, oferecer-te seu corpo. Meu deus, é insuportável até... até de imaginar tua boca no sexo dela, creio que vomitaria. E colocou a mão na boca como se estivesse a segurar o frêmito do vômito. Urrou. Levantou-se e me deu um tapa no rosto. o impacto foi forte. Minha cabeça bordejou. Não reagi. Nada em mim doía. A estranheza dos fatos devia estar doendo-lhe mais. Lentamente voltou ao banco e me cravou os olhos como se quisesse atravessar-me o crânio. Queria entender a traição e balançava a cabeça para os lados. Quando? Como começou? Insistiu. Intenção de dar-lhe explicação nenhuma em mim havia. Nem a visão da arma, a mirar-me sem descanso, intimidava-me. Ignorava receio, tampouco arrependimento, apenas certa indisposição de narrar-lhe que tudo iniciara muito tempo antes, antes dela aparecer em minha vida, antes de Nora, antes de eu tornar-me adulto. Indolência até para lhe insinuar que, se ela aceitasse a situação com Nora, manteríamos sigilo e a vida seguiria bem entre nós. Perda de tempo. Somente ela vai ficar sabendo o motivo... Somente ela, espero... sussurrou os pensamentos sem me olhar. Não consigo odiá-la, confessou-me. Mas, nenhum resquício de bons sentimentos tenho; sinto ojeriza, repugna-me só de imaginar que a envolveste, que ela te engoliu o membro. Sobrou-me um sentimento estranho, que chego a pensar ser piedade da infeliz, ou de mim. Prostituto! Infeliz mesmo sou eu eu eu! Qual seria a reação dela se eu a xingasse de puta, será que me encararia depois que eu a acusasse de ter trepado contigo, meu marido? Para diminuir a mágoa, para pagar a desonra, para desultrajar-me só a tua morte. Riu, um riso quase confinado, apontando-me o dedo em riste. A tua morte, sim. A ti, porque me destroçaste, nos destroçaste e a ela também, eu abomino. Lançou um olhar redondo pelo quarto. Imaginei que buscava platéia. Recua, ordenou. Vai para a cabeceira, me fita bem, agora. Abriu a blusa, a saia, autoritariamente subiu na cama. Pode contemplar o que jogaste fora por causa de... de... um monturo de pelancas, por causa de um corpo semimorto, varicoso. Sacudiu a cabeleira arremessando-me ao nariz um cheiro de lavanda. Lembrei da minha dama, mansa, temerosa senhora. Aquela, sem quase viço no corpo, de musculatura flácida e de pele afinada pelos anos, que tanto me davam tesura; aquela que, deitada ao meu lado, parecia esconder-se, semicoberta pelo lençol, insegura por causa da beleza jovial que lhe fugira. que, contudo, ao me amar sobrepujava-se, conduzindo-me tal um filho dileto, cujo aprendizado dependia dela. Aquela que me consumia todos os fluidos, me arrebatava. Nela eu gozava, gozava inteiramente, até o fim, até me restar somente o desejo de voltar, abrigar-me em sua vagina novamente, exaurir-me e me recarregar. Essa vontade me alentava agora. Luiza se abaixara, dobrando os joelhos, ficando perto de mim. Ainda me repetiu a pergunta: Por quê? Diz uma mentira que me caiba na cabeça... eu os amava, aos dois... que canalhice... desabafou, pela primeira vez lacrimejante. Mas não titubeou. Apontou-me a arma e disparou. No travesseiro. Milésimos de segundos antes, como se eu fosse outra bala, colocara-me ao seu lado. Apertei-lhe o braço e o voltei contra si. Desfechei no seu peito, por meio de sua mão, um projétil certeiro. tudo tão célere que nenhuma dor lhe afligiu, seus olhos me disseram isto. abertos, pareciam perplexos ante a rapidez do meu movimento, mas sem incômodo físico. Detestava sofrer. Inconscientemente almejava o que fiz. Nós dois havíamos querido aquele meu gesto. as angústias envelhecem a alma, idem o corpo. e muitas mulheres, iguais à Luiza, mais que a perda súbita da vida, sentem pânico ao pensar na morte progressiva da velhice. Desse tipo não é Nora, meiga Nora, terna sogra, quase mãe, para quem volto assim que limpar os vestígios da minha presença neste quarto, assim que sair sorrateiramente a pé, assim que regressar, de táxi, ao meu trabalho, assim que receber a triste notícia do suicídio de Luiza, e puser o luto da nossa viuvez familiar.










ANTES QUE O DIA DEVOLVA O MEDO

Elíude Viana






O homem parecia dormir. Mas era apenas um corpo sem vida. Estava caído entre as pernas do rapaz. Eu, à frente dos dois, na quase-escuridão, assemelhava-me a uma vela bruxuleante, que a muito custo permanecia acesa. Momentaneamente pensei no que havia restado daquele homem. Não no seu cadáver na sala. No que imaginava ser sua vida antes do poder, dos filhos e da mulher desaparecida. Se teria planejado ser o que foi, se teria imaginado morrer assim. A morte não responde as dúvidas, refleti; ela as deixa órfãs, para sempre.



Simultaneamente perguntei ao outro se aquela morte o mudaria; o que faria da vida depois; de que jeito iria esquecer. O que recebi como resposta foi um olhar seco e um comando para ajudá-lo a retirar o morto da casa, colocá-lo na camionete e despejá-lo num açude raso, bem distante. Como podia ser tão frio, resmunguei. Menina, falou-me, rispidamente, tudo o que eu quero agora é sepultar nossos problemas, entendeu? Para que ficar pensando – arrematou, menos agressivo –, conjeturando coisas estranhas para o futuro? Enquanto falava, enrolava o corpo no lençol roto, que não encobria totalmente as pernas. Fixando, por segundos, o olhar no cadáver, sussurrou – Difícil é esquecer o passado.



Da minha memória apagaram-se os motivos daquele crime. Diante da morte consumada o antes perdera o significado. Medo... Vingança... Equívoco... Agressão... Revide... O meu temor respirava com alarido, o suor eu não conseguia controlar. Notei a bainha da calça azul desfeita. Acocorei-me. O que fazes sentada aí? Apanha o outro lado, me ajuda logo. Não me mexi. Naquele instante, eu era a garota que levara uma surra desconhecendo o motivo e que, depois das sevícias, encolhera-se no escuro do quarto, apavorada, tremendo sem chorar. Ou a mulher cujo algoz bêbado espancara e violentara. Eu era a dor.



A parte do corpo que estava suspensa nas mãos do outro foi largada. Pareceu-me um saco de feijão, atirado num silo qualquer por braçais cansados. Pude distinguir na sua voz uma ternura autoritária e, ao mesmo tempo, sincera. Já acabou, menina... Vem, vamos findar essa história antes que a claridade nos denuncie. Levantou meu rosto e lá depositou um desajeitado beijo de encorajamento. Conduziu minhas mãos aos tornozelos descobertos e me disse para segurá-los com resistência. Olhei-o através da penumbra. Apesar da ossatura saliente, por ter passado dias faminto, sob um sol impiedoso, o outro me recordava o sansão cego e determinado da fábula bíblica. Aquiesci com um mutismo obediente, repassando minhas forças derradeiras àquela empreitada. O flagelo que se repete, se repete, se repete, em vez de ativar o desejo de morrer, incita a coragem. Éramos adultos, apesar da pouca idade; crianças, apesar da brutalidade. Gente pronta. Prontos para partir, antes que o sol devolvesse-nos o medo.



A vida ao esvair-se dos membros enrijece-os, esfria-os. Toda a carne e todos os ossos viram fardo pesado e inútil. De nada mais valia ao homem o vigor dos músculos brutos. Se houvesse lamentação de alguém ele ainda viveria por mais uns dias nas lembranças. Passando os anos, contudo, não lhe restaria nem o sobrenome. Ninguém, de mais nada, tomaria conhecimento. Se dependesse de minha piedade ou da consciência resoluta do meu irmão, o pai, para toda a eternidade, jamais teria uma história de remorso para ser contada.




 
Maria,
A dor agora me é imanente, indissociável. Cá estou eu, entre meus dentes, mastigando angústias no prato do sol que aos poucos janta esta madrugada. Angústia tem vários sinônimos: é secura de escuro, é rachadura fresca, é esgoto famélico que nos engole repentinamente. Tem sabor de terra azeda, cozida ao sol. Vazio no estômago, quando a fome de respostas, embora saciada, não nos satisfaz. Quase não tenho chão, te digo. Estou etérea, aérea, porém impotente para voar. Na cabeça somente pensamentos de chumbo.
Quando as dúvidas afligiram-me, meu grande desejo foi que as imagens tivessem ficado retidas no espelho, Maria, para eu analisar os fatos. Assim, poderia obter provas da suspeita de que outra pessoa esteve no interior do nosso carro – assumindo meu lugar, ou protagonizando o papel de namorada, perdido por mim no teatro dos anos. Que se utilizara, sim, do espelho no protetor de sol do carona, o qual encontrei abaixado, fora da posição em que eu o deixara. Sentada ao volante, ficava imaginando-o cumprir um ritual de meses ou anos... São esses pontapés primeiros, intrigantes, que nos desencadeiam a dor da ansiedade, a curiosidade de querer saber mais e mais.
Antes da celeuma total dos meus nervos, eu filosofava: todos têm o direito de se envolver com alguém, sem compromisso. Isto é mais do que permitido pelas leis naturais – é quase exigido. Foi a sociedade, com preceitos moralizadores, que forjou uma estrada de relacionamentos indissolúveis e retos, instigando, assim, o exercício dos desvios. Desvios masculinos, tão-somente. E quanto aos meus desejos? Porque mulher também tem, Maria, vontades iguais e, às vezes, até maiores. As instituições é que não lhe são condescendentes. Teorizei muito, amiga, antes de deparar-me com o óbvio: quando fome, medo, traição, berram na nossa pele, a razão cicia, fala pouco.
Certa tarde, um céu cinzento jogava seu hálito frio de encontro à vidraça da janela, embaçando-a. O som do telefone dele aqueceu o ambiente. Com desculpas improvisadas, avisou que iria sair. A vontade que tive foi impedir-lhe a partida jogando no seu rosto, de chofre, minha desconfiança. “- Minha intuição não falha! Mentiroso! “- Intuição é falta de inteligência, de siso”, ele teria devolvido e dado de ombros. Eu estaria a partir de então com o passional cinqüentão prevenido e sem remorsos. Se é que estes existem. Natural foi posar de crédula em sua mise en scène de marido atarefado para evitar suspeitas. Retornou após três horas e quinze minutos – exatas. Recebi-o com um beijo arreliado, na intenção de provar o gosto dela. Meu pensamento encheu-se de imagens sensuais, distorcidas, e eu a odiei intensamente. Transferir a irascibilidade à terceira pessoa é praxe em infidelidade conjugal, Maria. A tendência é abonar as faltas do parceiro.
Nas tardes seguintes isolava-me num porto, observando borboletas empurradas por espirros de ar, a passear seus cios em busca do acasalamento. Só os insetos são criaturas alegres. Não constroem lares e nem têm tempo de vida suficiente para envelhecer e serem substituídos. A juventude ninfal de minha adversária implicava uma querela desleal com meus quarenta e cinco anos de vida – e vinte de casulo nupcial. Imaginava-a possuir o biótipo longilíneo de quem ainda nem parira. Como, Maria? Como matar a crueldade desses amores que se crisalidam nas carcaças da relação antiga?
Numa manhã, decidida pela certeza, não fui ao escritório. Na ausência dele escavei gavetas, bolsos de paletó e pastas comerciais aparentemente estéreis desses assuntos. A sofreguidão dos dedos contrastava com a cautela; esmiuçar sem desarrumar; concentrar-me na procura, atenta a quaisquer ruídos estranhos interferentes na cumplicidade do silêncio. Foi quando as indicações chegaram-me às mãos. Entre notas fiscais achei cartões de mau gosto, com frases imbecis “Você é a pessoa mais importante do mundo. Eu te amo. A. D. 23.04.96”. Muitos outros... 97, 98... Anos! E, atualíssimo, um bilhete em papel decorado dizendo “a aula termina mais cedo na sexta, às nove, nove e meia. No pátio do colégio, vai ter uma exposição de fotos. Me apanha? Beijo. 25.02.99”. Coraçõezinhos, nuvens e citações de Paulo Coelho arrematavam o recado. Exposição... Colégio Vicentino.
É estranho o que te vou revelar, mas naquele instante senti pena da garota. Não sei bem explicar. Muita amabilidade existia onde eu esperava sensualidade, argúcia. Senti-me menos infeliz por perceber falta de ladinice à criatura – uma grande falha, caso ela tencionasse tê-lo definitivamente. Aumentou-me a curiosidade aquele gostar do tipo amor-adolescente-infantilóide. A competição pareceu-me menos difícil.
Noite da véspera, extensa e incômoda. Posso jurar-te que dormindo ele sorria. Fui à sacada. Em pouco mais de três horas, dezoito cigarros ajudaram-me a traçar o plano da descoberta.
Saí do velho cais rumo à conclusão dos meus projetos. Desapareci a tarde inteira. Nem passei em casa para evitar que ele pedisse o carro. Assumi o seu lugar a poucos metros da porta do colégio, num trecho semi-iluminado onde poderia ter o automóvel visto sem, no entanto, ser identificada. Minha expectativa era de que, vendo o chevrollet familiar, a garota se aproximasse. Queria muitíssimo ver, perto dos meus, os olhos que não encontrara no espelho retrovisor; fazê-los sentir a força de viver que se concentra num ser ameaçado por uma doença letal.
Muitos alunos agrupavam-se na escada à hora da saída. Leva deles, como pássaros soltos de gaiolas, arrulhavam conversas ininteligíveis. Duas moças foram se aproximando do carro. Meu peito disparou ao reparar que a menina de 14 ou 15 anos observava-me atentamente (ou tentava adivinhar-me pelo pára-brisa) vindo em direção ao veículo. Era, meu Deus, uma ninfeta com idade de nossa filha! Andar chamativo numa calça justa, caminhar seguro. Sorriu. Passou sem fazer menção de parar. Expirei longamente o desconforto.
Nada mais parecia mover-se no tempo, exceto as esponjas escuras no céu, sugando estrelas e criando tônus. Muitos caminhavam em sentido oposto ao meu, porque a parada de ônibus estava adiante. Quase dez horas. Iniciou um chuvisco e os ajuntamentos começaram a se dispersar. Um grupo deslocou-se em minha direção, Maria. Duas moças, que me pareciam familiares, uma senhora e uma criança vinham na frente de um garoto que, ainda lento, seguia atrás. A chuva desceu em negritude. Os cinco correram. O moço retardatário, por causa do aguaceiro, também acelerou. Veloz. Com a cabeça baixa, abriu rapidamente a porta do carro jogando-se ao meu lado. Respirava ofegantemente, mas sorria.



RAIZ DE ANO NOVO


Elíude Viana

“A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima.
Olho d’água, bebida. A vida é líquida.“. Hilda Hilst.

Caminhando a poucos metros das laterais dos muros baixos, observo nas plantas o viço, fruto do incipiente inverno; o cheiro da terra lavada esfrega-se em minhas narinas. Natal é passado, graças a Chrónos. Avesso à bondade dezembrina dos homens e ao mercantilismo vestido de papai noel, sou menos um na estatística dos que cultuam esse folclore. Em mim, a melancolia plantada na alma produz sua flor inexplicável. Um jasmineiro enche a tarde de odores brancos, enquanto exalo amargura.
Mudará o ano: seis dias faltam para atravessar-nos a esperança por dias melhores, a despeito do caos visível. Lembro de nós dois. Do meu desejo de passarmos juntos – e unidos – o fim do ano. O receio de término é um fel no cerne da minha língua. Por mais que eu o cuspa, não logro livrar-me dele. À frente, rodas apressadas transportam metade da poça à saia da senhora a caminho da missa vespertina. O susto me desperta das divagações lamentosas. Deixo o sol de inverno arder-me no rosto e sigo, pisando em falso na estreiteza da perplexidade.
Empurro a porta da sala. Rangem as malcuidadas dobradiças avisando-lhe que estou em casa. Ouço um “olá” pálido, saído do escritório. Vejo suas costas aprumadas, imóveis se não chegassem ao braço destro os ziguezagues da caneta. De um lado da escrivaninha ruma de provas a corrigir, do outro, a garrafa com chocolate – forte e meio amargo – provavelmente pela metade. O cabelo suspenso por um grampo de metal expõe o pescoço claro, lisinho, como se estivesse à espera de meu toque. Não me aproximo. Seus afazeres de mestra diligente recusar-me-iam, com provas de exaustão, exercícios de desculpas, como de fato já o fizeram em inúmeras tentativas. O rechaço torna-se-me mais agressivo dado ao seu distanciamento cortês no arrefecimento de nossa relação, oito anos depois.
Os móveis negros, revestidos pelo descaso, têm nódoas e pontos mofados. Esgueiro-me pelo espaço da sala, circunscrito a cinco metros quadrados ocupados. Tudo muito pequeno e farto de livros, de discos antigos e silêncio. Ando farto de tudo. A foto dela sem sorriso, exposta no bar, também me revela isso. Inversamente aos primeiros anos, quando as aquisições iniciais provocavam-nos comemorações efusivas. O apartamento ficou do jeito que a encantava. A olhava com enternecimento, e feliz com sua vivacidade e bom humor – contrastantes ao meu jeito introspectivo de ser. Naquela época, absorvido por um sentimento desmesurado, desisti de todos meus casos, antigos e futuros, sob protestos dos amigos. Nem de amigos precisei mais.
Em volta, as paredes abafam-me; espalham-me seu escuro, sufocam-me. Pastas empilhadas em cima da mesa, das cadeiras, empurram-me para fora, competem comigo por espaço. Hesito em afastá-las do caminho. São austeras, têm corpos musculosos de papéis. Condenam-me a presença e o meu olhar enviesado a elas. No canto, a rede de sisal. Parada. Será o segundo fim de ano sem celebração a dois, sem festa particular. E houve muitas.
Não sei precisar em qual data amarrotou-se a lisura do seu encanto por mim. Ocorrera na época em que ela entupiu as parcas horas de folga com aulas extras? Ou quando minhas conversas, sem liames com as suas, desataram no desentendimento? Conseqüências, puras conseqüências. Evidenciou-se quando eu, ao procurar carinho, achara sua pele fria, esquiva. Creio que levitava a alma ao menor contato do meu corpo. O que a conduzira à estação dos toques repelentes? Suspeitava de qual seria a resposta, por isso nunca lhe perguntara. Casais com mais de cinco anos de teto agarram-se, como caramujos, no limo do companheirismo, nas paredes do patrimônio construído. A custo aturam-se, dizem. O amor esmaece a partir do quarto... O desastroso é quando o desamor é unilateral.
Como efeito da maré de desprezo, ancorou-me um barco de despeito e ira. Ao pretender que visse minha importância, a ofendia desbragadamente e mais agravava a agonia do sentimento moribundo. O revide chegava-me em forma de olhares de repulsa, apatia pelo meu desatino, e abandono da discussão. O mutismo contrastava com seu cantarolar, o chalrar de outrora. As olheiras, acentuadas, se justificariam na estafa do excessivo trabalho, se não fossem um disfarce para ocultar o incômodo de minha companhia. O lugar que ocupava na cama estava invariavelmente frio. Conservava-se atarefada até alta madrugada, esperando que o sono me vencesse o desejo. Flagelava-se. Minha insistência fingia não entender que a cama não compartilhada era o seu manifesto ao amor repelido.
Mas a rejeição, gradual, estimulou meu desespero. Suspeitava de amores clandestinos a exaurirem sua paixão por mim. Quis me vingar. Retornei aos bares, às conversas frugais dos velhos amigos e novas amigas. Demorava a voltar do trabalho e, ao retornar, enunciava desculpas inverossímeis, por mais que ela não perguntasse. Deixava souvenir de motéis em lugares óbvios; afastava-me para atender às chamadas telefônicas. Ansiava por uma reação vulcânica. Qual nada. Tampouco eu discutia. Questionar, para quê? Desconcertante, extremamente desconfortável, seria escutar não gosto mais de ti, tenho-te asco. Ter ásperas verdades friccionadas no rosto.
Vasculhando seus papéis deparei-me com um poema escrito à mão: não servem às paixões imperiosas o sal que entornamos dos olhos quando a ausência tem a mesma temporalidade das bolhas de sabão.Primeiro, lamentei a inata incapacidade poética que jamais me possibilitou, sequer, de preencher um cartão de aniversário com dizeres pessoais. Interpretando a mensagem, porém, invadiu-me o ciúme cabal, homocêntrico. Atingiu-me o âmago e se propagou às pontas dos dedos. Fiquei impassível. Retirei o papel dentre os demais e o coloquei visível, amparado numa das divisórias da escrivaninha. Quis que ela visse que eu o havia lido. Não o retirou da posição, nem se manifestou a respeito.
O ruído das folhas e o vai-e-vem da esferográfica são os únicos sinais de vida que me chegam aos ouvidos. Impelido pela nostalgia, vou ao quarto. Agacho-me, encosto-me à parede e as suas ranhuras. A tinta deixa-me marcas na camisa, que sairão. O que me mancha por dentro, talvez. A cama, inóspita, encara-me como a um estranho (ou por que lhe sou bastante conhecido?). Fora nela que eu, tantas vezes, desorientado pelas nossas discussões, abafava as lágrimas, desmentindo a antinatural – e propalada – aridez dos homens.
Há objetos estranhos ao quarto. A bandeja sobre o criado-mudo, a tesoura de podadura sobre a penteadeira e a filmadora no assoalho, ao lado do guarda-roupa, até denotariam desleixo na arrumação se fosse outra mulher que morasse nesta casa. Eu as leio como provas declaradas de seu desânimo para com nossa vida.
De cima da cômoda apanho a tesoura, comprada para servir ao jardim de inverno, que não vingou. Empunho-a com vigor (estremece-me sabê-la ter o poder de vivificar plantas por meio de talhos profundos). O mal cortado pela raiz, penso no adágio. Algo estava me sendo insinuado: raiz, semanticamente, pode significar final e também começo. Os pensamentos sobem-me efervescentes e energizam meus membros. O fim e o recomeço pesam alguns gramas em minhas mãos. Encosto a tesoura em meu rosto; dou alguns passos. À frente dos olhos, instantaneamente, surge-me o escritório. Ela inerte. O pescoço oferecendo-se à poda. Um golpe azul, lâmina sobre a alvura... A tinta vermelha das correções escorre pelos meus dedos. O espírito se dilata, libertando-me das frustrações dos últimos anos.
Minha face estremece ao encosto do metal frio. Abro os olhos, desperto. Escancaro a janela para o início da noite. Sobre a cômoda, largo a tesoura e o fardo anoso. O vento, encorpado, que agora carrega a chuva, instiga-me necessidades verdes, arbóreas – espaço sem vasos. E sem raízes. Desse esmaecido jardim conjugal preciso, tão-somente, de algumas mudas de roupas.
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Elíude Viana considera-se paraense e amapaense, pois entregou e recebeu de Macapá quase a metade de sua existência. Atualmente, seu nome é um dos mais importantes da nova geração de poetas.
Formou-se em Letras pela Universidade Federal do Amapá e é acadêmica do curso de Psicologia da Facukdade IMMES. Tem dois livros de poesia publicados – Vestes da Alma e Das páginas arrancadas –; cinco livros infantis com temática folclórica regional – A pescada e o tralhoto, A cachoeira que geme, O trono tarumã; O cipó-de-fogo e A pedra do rio -; quatro livros didáticos com temática ambiental – O pescado que nos sustenta: como garantir sua defesa, O lado cinza das queimadas, Água, seiva da terra: por que conservar os rios, Meio ambiente: as mudanças que fazem a diferença –; e dois livros institucionais – Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) e sua aplicabilidade no sul do Amapá, PEGA: Programa Estadual de Gestão Ambiental.

Contatos com a autora: eliudeviana@gmail.com


Paulo Tarso, Luly Rojanski, Pedro Paulo e Elíude Viana
Sarau na Confraria Tucuju (2008)

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Elíude Viana

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