Pesquisar este blog

5 de jan. de 2006

CONTOS DE PEDRO PAULO MATOS RIBEIRO

INQUIETUDE

Pedro Paulo Matos Ribeiro

Aquela situação não podia perdurar mais. Algo tinha que ser resolvido.Arrumou seus pertences na mochila surrada que tinha o logotipo da empresaque acabara de demiti-lo. Ainda não era o momento apropriado para sedesfazer dela.
Entrou um pouco esbaforido na sala da administração. Nunca se sentiraà vontade ali e não seria agora diferente. Em cada mesa um olhar quedespertava uma mistura de curiosidade e consternação. Sentou-se meio semjeito na cadeira da moça que era encarregada do setor de pessoal. Elefacilmente percebeu o sorriso amarelo da funcionária, como se dissesse: "Desculpa, nós não temos culpa pelo que aconteceu". Retrucou, também empensamento ;"Não faz mal. Eu também não", embora não soubesse o que issosignificasse. Nervosa, ela entregou-lhe todos os documentos que eleacumulara naqueles anos todos na empresa. Fez um maço com tudo aquilo ecolocou na mochila. A funcionária fez-lhe adentrar o gabinete do chefe ondefoi secamente cumprimentado e elogiado pela conduta durante seu tempo naempresa.
Saindo o mais rápido que pôde não deu tempo aos colegas de lheshomenagear, evitando passar pela copa onde lhe aguardava uma sonoradespedida.
Atravessou o escritório sem olhar para as mesas dos outrosfuncionários que boquiabertos o viam sumir pela porta principal.
Lá fora fazia uma tarde escaldante. De rachar os miolos, completou.Desfez-se de toda a papelada no cesto de lixo mais próximo que encontrou.
Fez dois breves telefonemas a um amigo e a uma irmã que morava nooutro lado da cidade. Ao amigo disse que tinha algo urgente a falar-lhe, masque não era tão importante. À irmã, disse o contrário. Depois, riu-se detamanha imbecilidade. Pois, não fazia a menor idéia do que iria dizer-lhes.
Fez alguns depósitos numa conta corrente que mantinha numa agênciabancária perto de sua casa. Pensou em emprestar algum dinheiro para suairmã, embora soubesse que jamais ela o pagaria. "Também," pensou, "nãoimportava". Para onde ia não precisava mais do que o necessário para semanter. A irmã, com certeza, agradeceria e nem lhe perguntaria para onde iaou o que ia fazer da vida dali em diante. Ele sempre parecera um tantoestranho e tê-lo ou não por perto não fazia a menor diferença.
O amigo a quem telefonara encontrou-o à noite num bar no centro dacidade. Informado de suas intenções, não fez muito caso. "E os discos e livros, com quem ficarão?". A pergunta não o surpreendeu. Sempre achara que"entre os dois essa seria uma das primeiras coisas com que se preocupariam.Não era interesse puro e desmedido. Ambos sabiam quão importantesesses objetos tinham sido para eles. Muitas madrugadas passaram em clarodiscutindo, bebendo, ouvindo música. Já não se lembravam quantas e nem porquais motivos o fizeram. Também, não importava muito nada daquilo. Oamigo logo se desinteressou pêlos discos e pêlos livros. Nada fazia sentido.Meio sem jeito retirou de um saco plástico a garrafa de uísque que levara parabeberem, talvez, pela última vez juntos.
O máximo que beberam naquela noite foi dois copos cada um. Orestante deram a um grupo que jogava dominó numa mesa ao lado que já osolhava com indisfarçável interesse. Despediram-se sem muito entusiasmo. Oamigo pegou um táxi. Deu-lhe uma última olhada como se olhasse umavisagem que sumisse tão logo puséssemos o olho nela. Acenou timidamente enesse gesto resumiu toda a insignificância que tinham sido as vezes que comele se encontrara. Uma sensação de vazio, um torpor, uma leveza que nadamais era que uma saudade que não sentia, que se esvaía de sentido, como umcarro sumindo na esquina, uma garrafa de uísque vazia, uma música seperdendo dentro da noite.
Chamou o garçom e pagou a conta sem se importar com o troco. Umamulher pegou-lhe o braço e pediu um cigarro. "Não fumo", respondeu. "Umtrago", insistiu ela. A contragosto dirigiu-se à mesa do grupo de dominó ondepediu um copo de uísque a pouco doado. Deram-lhe não sem antes algunsresmungarem qualquer maldição contra esses desgraçados que vivem pedindotudo a quem pouco tem. Ele riu entredentes e se afastou rapidamente.Entregou à mulher o copo. Esta o recebeu com as mãos trêmulas. "Sentaaqui", pediu ela. Ele a afastou com um suave empurrão que a fez cair sentadanuma cadeira ali junto. Saiu dali atordoado com o perfume barato da mulher.
A noite o acolheu como uma mãe que há muito não via o filho. Banhou-o com o mais perfumado sereno que ser vivo nenhum jamais sentira. As gotaspenetravam-lhe por entre o grosso e suado tecido que o vestia, entorpecendo-o. Sentia-se transportado para lugares imprecisos e indefiníveis. Mergulhavaentre infinitas ondas de nuvens de todas as cores cujas formas lembravamlindas mulheres a fugirem-lhe ao alcance das mãos, embora não fizesse omínimo gesto para tanto. Caíam-lhe na fronte fachos de luz iluminando-lhe atesta pétrea. Um sorriso que segredava inúmeros significados assenhoreava-lhe a face deixando-o como um Cristo na Pietá. Sons de toda natureza chegavam-lhe aos ouvidos como se de uma cachoeira caíssem. Espumas defolhas secas vinham beijar-lhe os pés, brincando entre os seus dedos, fazendo-lhe cócegas que só faziam aumentar o sorriso petrificado.
Deixou-se penetrar um pouco mais naquela paz. Paz que jamais sentira.No entanto, agora sentia-se aliviado das coisas que o prendiam a um mundoque só era seu enquanto o pacto que tinha com ele fosse cumprido. Era essepacto que não assinara que o fazia atado ao Grande Novelo da Vida até omomento que fora demitido. Com a demissão sentiu-se desobrigado decumprir com um insano ritual que se não o diminuía como ser humano, não oengrandecia a ponto se se sentir um.
Certamente, o constante contato com as pessoas que faziam parte de suarotina - os ex-colegas de trabalho, os indefectíveis chefes, o amigo, a irmã -não o deixavam muito à vontade. Verdade, tinha que reconhecer, que elemesmo não fazia muito para que todos o compreendessem. Não sentianecessidade disso. Em suma, a demissão o libertara. Porém, o colocara emfrente a um mundo cujo horizonte não se mostrava facilmente. Ou antes, semostrava como um labirinto de possibilidades que só agora ganhavam sentido.
Sentia tudo isso como mais um peso no universo das imensuráveisforças que o amarravam ao Grande Novelo da Vida, que fatalmente estavaresumido no logotipo da empresa estampado na surrada mochila que oacompanhava como uma sombra.




INQUIETUDE II

Pedro Paulo Matos Ribeiro

E então me vem aquela sensação esquisita que não tem nome. Porquetodas as coisas nomeadas me fogem e fica só essa que não tem nome, nemhora certa para aparecer. E dá um grande vazio e uma vontade imensa depreencher este vazio com estas lágrimas invisíveis que teimam em ficar nesteespaço lacrimal (deve ser assim que chamam para esta bolsa que existe entreos olhos e a membrana que os protege). Ora, acontece que este espaçolacrimal me faz seu refém à medida que acredito nesta maldita situação dedependência por sinal inusitada. Não só inusitada, mas absurda, surreal.Enfim, ilícita. E não há a mínima possibilidade de que estas consideraçõesvenham a diminuir o impacto causado por esta inquietação, ainda sem nome.
Também quero dizer que tudo isso é sem sentido e me deixa assim semmovimento e sem raciocinar direito. É como uma dor que penetra o corpointeiro, comprimindo os pulmões, deixando uma acidez no estômago. Umaferrugem se instala no paladar e as paredes bucais parecem lixa onde umaáspera língua passeia sua aquosa superfície. E em meio a tudo isso ainda contoa meu marido que quando vinha para casa aconteceu de eu dar carona a umadescuidada senhora, já de idade, e seu marido que aparentava sofrer deproblemas respiratórios. Estava um tempo meio chuvoso e numa esquinadeparei com ela fazendo um sinal típico de quem esperava por um táxi.Mesmo assim estacionei junto a ela. Disse-me: "Estou precisando ir lá naMarcílio Dias, entre Leopoldo Machado e Jovino Dinoá". Como ia paraaquelas bandas deixei-os entrar. Não conversamos durante todo o trajeto. Elademonstrava total domínio da situação. Parecia estar a bordo de um táxi deverdade, onde se fala o mínimo ou nada com o motorista. Verificou na bolsa acarteira porta-cédulas. Tirou uma nota de dez reais. O velho resmungouqualquer coisa e ela acalmou-o dizendo que já, já chegariam ao seu destino.
Fiquei a conjeturar se realmente ela pensava estar num táxi e achei quesim já que havia tirado até o dinheiro para pagar a corrida. Sorri, um tantocuriosa com o que ia ocorrendo, esquecendo por alguns momentos aquilo queme perseguia a alma e, de quebra, o corpo.
Chegando no perímetro que a senhora mencionara ela apontou uma casade muro branco onde havia um portão de grades vermelhas. A chuva já nãomais caía forte e a tarde parecia uma casa grande de teto cinza. Os doisdesceram do carro com muito cuidado e após fechar a porta com certoestrondo, a senhora perguntou-me o que eu já esperava: "Quanto custa?". Hámuito custo fiz-lhe ver que não era carro de praça e que portanto não era nada.
Só então ela procurou com o olhar o taxímetro e alguma placa de táxi quedesfizesse minhas argumentações. Não encontrando se desfez em desculpas epedindo que justamente por este motivo eu aceitasse os seus dez reais. Recuseiamavelmente. Despedi-me dos dois seguindo finalmente para casa trazendocomo sobrecarga esta inquietação que me sai mais caro quando dela me douconta.
..........................................
Pedro Paulo Matos Ribeiro, paraense da Vila de Icoaraci (PA), nasceu em 12/09/1963. Desde 1984 mora em Macapá. Trabalha na Seçãode Navegação Aérea do Aeroporto de Macapá, na INFRAERO, desde 1987. Formado em Letras pela Universidade Federal do Amapá -UNIFAP, em 1995 e membro da Associação Amapaense de Escritores - APES. Tem dois livros de poesias (VAGO LUME e UM ROSTO NO ESPELHO) e dois de contos (VENTO MORTO e INQUIETUDES), todos inéditos.


Pedro Paulo, Luly Rojanski e Paulo Tarso
Casa do Artesão (2008)

Nenhum comentário: