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18 de mar. de 2020

RUBEN BEMERGUY - UM ESCRITOR MUITO DISCRETO, MAS TALENTOSO!



Ruben Bemerguy é um advogado amapaense com ancestrais judeus que chegaram a esta região há muitos anos. Nascido em junho de 1961,  já exerceu vários cargos no serviço público estadual, dentre os quais o de Procurador-geral e Secretário de Estado da Educação. Mas, sua vocação mesmo é o Direito , profissão que exerce há mais de trinta anos e, menos visível ao grande público, seu talento literário, mesmo quando redige peças jurídicas - como se pode ler nestes textos ora publicados aqui neste blog. Ruben adora reunir artistas e poetas em sua casa. Certamente, o leitor que não conhecia essa parte artística e literária do Ruben vai se deliciar com a sua bem elaborada escrita.


PS: Não incluí Ruben na série Novos Poetas do Amapá respeitando o gênero que ele preferiu publicar (prosa), mas para o bom leitor é suficiente ler nas entrelinhas destes textos a linguagem com sabor poético inconfundível!!!
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Eu e Ele
Ruben Bemerguy

Ele palmilhava meus pés com hálito de chuva. Todas as palavras estavam caladas. Zuniam sílabas imprecisas. Eu, freneticamente imóvel tragava-as e devolvia a panos que aconselhavam tórrida escravidão. É como se me adivinhasse dividida em hemisférios. Isso me fazia transpirar uma resina inflamável e incontida. Ele, inclemente, me subia aos poucos, ramificando pernas. Ali também cultivava chuva.  Aquietei-me incolor. Mais rápido do que imaginei, a língua anelou-me as hastes. E enquanto ele me escavava com os lábios, eu germinava o falo bem na palma da minha mão.

Prolonguei a respiração o quanto pude. Esse intervalo foi suficiente para que levitasse invisível aos olhos de meu homem. Dali também bebia vagarosamente cada um de seus gestos. Atada a volúpia, logo me certifiquei que nenhum de meus cálculos era exato. Constatei também que aprendemos – eu e ele – muito com os animais não hierárquicos. Não havia macho e não havia fêmea. Só nós, nus em lã, feito forças armadas convulsivas e desordenadas. Depois voltei ao rijo esconderijo de nossos corpos.

Movíamo-nos em ziguezagues repetidos e tudo era contrário ao direito. Ainda bem: nossa ideia de justo era sua própria abstração. Também éramos imortais naquele instante. Derivados do extinto, comprimíamos, um a um, os mais remotos poros e, assim, passeávamos famélicos e tesos.

Todas as mensagens estavam postas. Acessamo-nos. Medievais. Inexatos.

Do fole veio o sopro. A cavidade ventilada precipitou-me ao seu abismo. Latejaram os rios. Gradualmente, pernoitei, enquanto ele palmilhava meus pés com hálito de chuva.









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Excelentíssimo (a) Senhor (a) Juiz (a) de Direito do Juizado da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte da Comarca de Macapá – Amapá.



Ref. Processual: 0046240-64.2015.8.03.0001






RUBEN BEMERGUY, brasileiro, casado, advogado, inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Estado do Amapá, sob o n. 192, Portador do Registro Geral n. 008 486 AP e CPF (MF) 137 489 472 91, com endereço profissional na Av. Cel. Ernestino Borges, n. 191, cidade de Macapá – AP, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência, a propósito da AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL movida por ALTAIR PEREIRA IMÓVEIS LTDA, apresentar sua

C O N F I S S Ã O

Quanto ao que articulado na petição inicial e registrar alguns poucos esclarecimentos que, seguramente, embora não interfiram no exame do justo pedido, alentam a alma do signatário em quadra de sincero rubor.
1.              Postulando em causa própria, porque autorizado pela norma inserta no art. 36 do Código de Processo Civil, peço permissão ao juízo para encomendar algumas anotações que, por estranho que pareça, dirijo a mim mesmo e sem nenhum atributo de resistir à pretensão posta na peça processual inicial.

2.               Me refiro ao art. 36 do Código de Processo Civil, Excelência, porque é ele quem faculta minha autodefesa. É que possuo habilitação legal para tanto – sou advogado.

3.              Tenho pessoalmente muita reverência pelo art. 36 do Código de Processo Civil, Senhor (a) Juiz (a). Não fosse ele meu malogro seria de maior gravidade. Sem o art. 36 do Código de Processo Civil teria eu, obrigatoriamente, de me socorrer de outro advogado, e o outro advogado não diria o que preciso dizer, por mais brilhante que fosse o outro advogado.


4.              Não diria, por exemplo, o outro advogado, Excelência, que cultuo com ardor minhas amizades. É quase um desígnio de vida. Bom desígnio.  

5.              Não diria o outro advogado, como digo eu, que meus amigos nunca açoitaram o amor que a eles dedico. Os que tentaram fazê-lo se foram em tempo breve. Aliás, esses vão sempre e, sinceramente, nunca estiveram em mim e não anoto sequer a falta de qualquer deles. Também não mantenho a sensação de arrependimento de tê-los um dia por amigos. Reparando bem, a perfídia e a ingratidão, maltrapilhas orações, são sempre abreviadas por veloz esquecimento e, ao mesmo tempo, tenho-as como benção que me conduz a um tempo apressadamente melhor.  

6.               Por isso, Excelência, amo os meus amigos com um amor patriótico. Tal qual Vinícius de Moraes, asseguro, Senhor (a) Juiz (a), que “poderia suportar, embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!”. Faz parte de mim ser assim e amar assim.

7.              Meus amigos verdadeiros, como eu, permita a inconfidência, também cometem muitos erros, Excelência. Choram até, – não consigo ser amigo de amigos que não choram. Meus amigos perdem gols, creem em lábios que riscam corpos, creem em vertigem e sortilégios e é por isso que amam e desamam nessa nau que ondula a vida.

8.              Por ser assim, procuro estar sempre perto de meus amigos, e eles sempre perto de mim em uma toada de solidariedade que já às vezes reparo rara.

9.              Um de meus amigos, Excelência, é o Rudá. Rudá Carvão Nunes. Rudá foi um grande velejador. Participou e venceu as principais competições nacionais de vela. Um homem do mar, digo eu.

10.           Rudá cruzava oceanos e perfurava vagas em voos flamejantes.  Tudo na piracema. Rudá, garanto, é ascendente dos alevinos marinhos. Reparando bem, Excelência, os peixes do mar só singram os mares como singram por ação do Rudá. Foi Rudá, Excelência, quem alfabetizou os peixes do mar ensinando-os a amar o mar.

11.           E tem mais. O Rudá que velejou o mar com maestria, agora - coisas dos tempos - veleja a vida com a mesma intensidade. Por isso, Rudá tem sempre um projeto em desenvolvimento ou, para dizer a verdade, no pensamento. Rudá pensa muito. Acho que pensa até demais da conta, Excelência.

12.           Rudá é, para mim, quase um sonhador. Ingênuo, diriam os indignos de compreender sonhos. Em meu sentir, ele é um quase anjo dos sonhos. Eu já sonhei com os sonhos do Rudá. Rudá é ótimo de conviver. Rudá dá prazer. Além de tudo, um belo homem.

13.           Curiosamente, Excelência, o pai do Rudá foi o primeiro governador do Território Federal do Amapá. Foi também Presidente da Petrobrás. Foi embaixador do Brasil e Deputado Federal, além de Coronel do Exército Brasileiro.  

14.           Outra curiosidade, Excelência. Na época em que o pai do Rudá governou o Território, o Amapá era uma terra de pouca gente. Todos aqui se conheciam. No Amapá não existiam estranhos. Éramos todos vizinhos.


15.           Também naquela época do governador Cel. Janary, pai do Rudá, meu pai ainda com tenra idade buscava uma “colocação” no serviço público. Era tudo difícil. Concurso público, nem pensar. Depois, quem concorreria a uma vaga para emprego no isolado Amapá? Mas meu pai era daqui e daqui, como eu, nunca quis sair. Meu pai acariciava Macapá como poucos.

16.           Então o pai do Rudá, nem sei bem como, descobriu meu pai e sua vontade de entrar para o serviço público. Foi ter com ele e o encaminhou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pronto. Meu pai foi admitido e esse foi seu único emprego na vida. Dele tirou o sustento da família e alcançou todos os postos de trabalho lá, dos mais baixos até o mais alto, se assim se pode dizer.

17.           Eu nunca conheci o pai do Rudá, Excelência. Só o conheci o Rudá e os irmãos, o Janaryzinho e o Guayracá. Assim, nunca tive oportunidade de agradecer ao Cel. Janary pelo emprego de meu pai, embora o rito de acesso não tenha sido, aos olhos de hoje, o mais apropriado. Mas diria ao Cel. Janary em posição de sentido: “muito obrigado, Coronel”.

18.           Diria também, Senhor (a) Juiz (a), que fez uma boa escolha. Meu pai era, antes de tudo, um homem extremamente honesto e sábio. Sinto muita saudade do papai, Excelência. Mas, se ele me visse respondendo a essa Ação de Execução que o Altair Pereira Imóveis move contra mim, seria uma retumbante decepção para ele.

19.           Em sempre que olho para o Rudá penso no pai do Rudá e penso em meu pai e no emprego do meu pai. Penso na cadeia da vida, enfim. Também penso, mas agora com pesar, no Altair Pereira Imóveis.

20.           Agora ouça, Excelência, o desdobramento dessa conjuntura. Nada grave. Nada grave, mas grave bem.

21.           Um dia, faz pouco tempo mesmo, meu amigo Rudá chegou meio esbaforido em meu pequeno escritório de advocacia. Rudá precisava de um fiador. Tinha uma dívida com Altair Pereira Imóveis. Estava em negociação, mas precisava de um fiador.

22.            Rudá alugou uma casa administrada pela imobiliária Altair Pereira Imóveis e não pagou alguns poucos aluguéis.

23.           Veja só como é a vida Excelência: até os sonhadores, como Rudá, são fustigados por mínimos que sejam seus deslizes.

24.           Existirá um dia, eu creio nisso, em que se Decretará a inimputabilidade sumária dos sonhadores, porque o mundo só é mundo se os sonhadores existem.

25.           Aliás, o mundo só gira por isso. Imagino que se esse Decreto já existisse, adeus à sanha impiedosa do Senhorio do Rudá. Ele, o Senhorio, é que teria que pagar aluguéis aos sonhos do Rudá para que o Rudá sonhasse e o mundo girasse.  

26.           Mas, sem o Decreto e diante da realidade pensei, cá com meus botões:

Rudá está precisando de fiador?
Acho que a praça anda desconfiada do meu amigo.
Que injustiça. Que crueldade”.  

27.           Nem pestanejei contra essa violência. Me dispus a afiançar a dívida do Rudá e em menos de hora os papeis estavam todos sobre minha mesa. Assinei tudo. E quase que sem ler. Afinal, o Rudá me afiançou também que seus projetos e sonhos estavam em curso e que pagaria pontualmente aquele bando de promissórias.

28.           Eu, que nunca duvidei de sonhadores e sempre os reverenciei, assinei mesmo. Assinei tudo. Tudinho.

29.           Vivi descansado por algum tempo Excelência e aliviado por ter aliviado os sonhos de um sonhador. Respeitável sonhador. O meu amigo Rudá.

30.           Até que um dia – uma sexta feira - recebi a visita de uma bela e educada Oficial de Justiça. Pensei logo que seria intimado para qualquer ato processual de algum cliente. Sou advogado, como já disse. Mas nada disso, Excelência. Era o momento da minha citação. Altair Pereira Imóveis me executou, sem dó nem piedade. Arregalei os olhos e constatei que os projetos do Rudá não iam tão bem como por ele sonhados e por mim previstos. Virei Réu instantaneamente. Um horror.


31.           Logo, pensei em comunicar o Rudá da ocorrência desagradável e dizer a ele, além de minha condição de Réu, que o Decreto de imunidade dos sonhadores ainda não havia se concretizado, embora eu tenha, desde que assimilei a situação do Rudá, encaminhado ao Congresso Nacional sugestões de Projeto de Emenda Constitucional que protege os sonhos e os sonhadores, tudo, evidentemente, para permitir que o mundo continue a girar.

32.           Mas, Excelência, era uma sexta-feira e sexta-feira não é dia de notícia ruim. Então, calei minha condição de Réu e potencial condenado.

33.          Rudá, coincidentemente, por incrível que pareça, me telefonou naquela minha sexta feira de Réu. Ele estava feliz com a caminhada dos seus projetos e outros sonhos mais. As expectativas eram promissoras. Rudá riu muito ao telefone. Senti vontade de abraça-lo. Adorei a alegria do Rudá. Eu precisava daquela alegria naquela sexta-feira de Réu.

34.           Então, depois de ouvi-lo com atenção, não dei uma única palavra sobre minha condição de Réu. Pensei, entretanto, em comunicar meu amigo Rudá já na segunda-feira mas, Excelência, também não tive coragem.

35.           Início de semana, segunda-feira não é dia para notícias ruins. Sofrer sozinho um pouco mais faz bem. Descobri isso por ação dos sonhos do Rudá. Se se é tolerante, se tira lição de tudo. Agradeci ao Rudá e pensei comigo: “ligo na terça”.

36.           Mas não parei de refletir sobre o processo um só minuto, Excelência. Sinto vergonha de ser Réu. Réu confesso.

37.           Vergonha de ir ao fórum eu tenho. Ao juizado especial onde correm os autos, nem pensar. Lá eu não vou. Lá eu não piso. Todos me olhariam com ar de reprovação. Essas coisas me maltratam muito. Não é natural dever e não pagar, e o fiador é tão responsável quanto ao devedor principal.

38.           Natural seria que os projetos do Rudá se concretizassem e nós fôssemos a um bar celebrar com uma cerveja bem gelada, depois de Rudá pagar Altair Pereira Imóveis Ltda. A cerveja, sem pagamento das obrigações com Altair Pereira Imóveis Ltda, nem gela. Pelo menos a minha. Acabou que na terça feira também não liguei. Não sei a razão, talvez o receio de magoar o Rudá. O certo é que não liguei.

39.           Quarta-feira estava determinado a comunicar o Rudá. Eu também precisava protegê-lo e não queria que fosse pego de surpresa. É que quando a bela e educada Oficial de Justiça o encontrasse, a alma sonhadora já estaria galvanizada contra a iniquidade do Senhorio e de Altair Pereira Imóveis Ltda.

40.           Mas nada de citação do Rudá. O esforço hercúleo da bela e educada Oficial de Justiça não foi suficiente para encontrar o Rudá. É que só os sonhadores podem encontrar outros sonhadores e, pelo que vi, a bela e educada Oficial de Justiça não era uma sonhadora.

41.           Depois, Rudá, como bom sonhador, acorda cedo e sai cedo de casa. É preciso ir ao encontro dos sonhos para que o mundo gire. Rudá tem imensa responsabilidade com isso. Todos devemos muito ao Rudá. Inclusive seu Senhorio e o Altair Pereira Imóveis Ltda, mesmo que ignorem essa condição de devedores do Rudá.



42.           Na quarta feira, Excelência, não me contive e liguei para o Rudá. Rudá me recebeu com um grito de gol. “Fogaço Ruben. Voltamos para a primeira divisão do Brasileirão. O teu flamengo que se cuide”. Ele é botafoguense fanático, Senhor (a) Juiz (a).

43.           Eu, de minha parte, ando um pouco sem divisão enquanto for Réu confesso. Que se vá o flamengo e fiquem os sonhos do Rudá e o mundo a girar.

44.            Outra vez não tive coragem, Excelência, de dizer ao Rudá da ação de execução. O Rudá e o botafogo mereciam respeito. Depois, também acho que quarta-feira é dia de futebol e não de má notícia.

45.           Decidi não dizer com palavras faladas nada ao Rudá sobre minha condição de Réu e da Execução. Encaminhei um e-mail. Ficou mais fácil. Não que quisesse cobrá-lo. Jamais. Sonhadores já fazem demais ao fazer o mundo girar e importuná-los com uma açãozinha judicial qualquer seria o fim. Até torci para que o Rudá não lesse minha mensagem. O lixo eletrônico seria o destino mais apropriado à minha ousadia de enfadar aquele sonhador.


46.           Mas foi paft puft. O Rudá leu a mensagem. Não sei o dia nem a hora, mas leu logo. Voltou imediatamente a meu escritório profissional. A secretaria o anunciou. Tremi dos pés à cabeça. Penitenciei-me por enfastiar aquele sonhador com minhas desnecessárias aflições.

47.           Aqui, já recebi de mim a primeira sentença condenatória, justamente por inquietar um sonhador. A segunda viria depois e seria mais leve, seguramente – a Execução de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

48.           Rudá outra vez invadiu minha sala com seus sonhos. Tranquilo, aconselhou-me a assimilar as dificuldades da vida para que eu não ficasse abatido, debilitado. Me apresentou seus sonhos, uma ruma de projetos, créditos, esperanças. E antes que eu deitasse uma lágrima diante da manifesta ausência de solução ao pagamento do Altair Pereira Imóveis Ltda, – meus amigos e eu choramos mesmo, como fixado acima – escondi do Rudá, como por obrigação, toda minha dor e qualquer outro tipo de contrariedade. Enfim, eu estava diante de um sonhador que fazia sonhar e, mais do que isso, fazia o mundo girar.



49.           Afinal, o que são R$ 20.000,00 (vinte mil reais) diante dos sonhos de Rudá?


50.           Ouvi com atenção todos os pareceres do Rudá, o bom senso, a exortação a vida e suas vicissitudes, a necessidade e a imprescindibilidade dos sonhos que fazem o mundo girar e, antes que Rudá se despedisse de mim, parabenizei-o efusivamente pelo Botafogo e o acesso à primeira divisão do Brasileirão.


51.           Finalmente, ao fim da tarde daquele dia foi fácil concluir que os projetos do Rudá ainda não seriam suficientes para amparar a dívida que agora, tenho a mais absoluta certeza, é só minha e de nenhum outro sonhador que faz o mundo girar e, por isso, decidi contar essa história ao juízo para, pelo menos, registrando desculpas ao credor Senhorio do Rudá e à Altair Pereira Imóveis Ltda, assumir o pagamento em audiência já designada, orando sempre pelos projetos do Rudá e, mesmo que isso não tenha nenhuma importância, defender minimamente minha tão estimada reputação.

52.          Ante o Exposto Requer se digne Vossa Excelência a simplificar a lide apresentando-me suave sentença de condenação que, por mais suave que seja, ampare os direitos de Altair Pereira Imóveis Ltda e, por favor, em nome do mundo e da necessidade de seu giro perpétuo, exclua da lide o sonho e o sonhador Rudá Carvão Nunes, absolvendo-os de tão injusta e amarga persecução judicial.

São os termos em que
Respeitosamente,
Pede deferimento.
Macapá-AP, 11 de novembro de 2015.
   Ruben Bemerguy – Em causa própria.
        Advogado
      OAB 192 AOB






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MERCADO CENTRAL

Ruben Bemerguy

É curioso quando você encontra a história em você. 
Aquela que não vem dos livros de história. 
História que você conta para si porque sabe a História de memória. 
História entreolhos, franca. História cúmplice. História-saudade-vida-viva. 
Quando em 1953 desaferrolharam as portas do Mercado eu ainda não havia nascido. Porém, papai e mamãe já navegavam naquela tenda cintilante de carne e osso. 
Então, íntimos do Mercado, confiaram-me um segredo que, segundo eles, só poderia ser por mim revelado se o Mercado, as genitálias do Mercado, a epiderme do Mercado, o ar que o Mercado respira, fossem cuidados pela cidade Macapá. 
Se o açaí e a bacaba fossem do Mercado sonegados; se sua horta fizesse infecta; se seus talhos lhe fossem extraídos; se suas roupas não fossem passadas em brasa-carvão; se suas joias não fossem em lustre eternizadas, esse segredo passaria a dormir comigo em abrigo eterno. 
Imaginei dias, anos a fio que o segredo dormiria comigo em abrigo eterno.
Meu pai e minha mãe, afinal, foram minhas primeiras constatações de autoridade e até hoje o são. Nunca poderia ou posso faltar-lhes com o dever de lealdade absoluta. Segredo é a jura que fiz.
Quantas vezes, para disfarçar nosso segredo, fui ao Mercado Central fazer mandados? Não tenho a conta. Até conta papai e mamãe tinham nos talhos do Mercado Central. 
Dos mandados que cumpri e que não tenho conta, ainda lembro, como se no caminho do Mercado Central estivesse indo buscar mandioca, vísceras, carne, peixe, chicória, cebola, cebolinha, jerimum e “de um tudo” enrolado em sacos de cimento vendidos do avesso. 
Agora, já resolvido em 58 anos de idade, e que volto ao Mercado Central o descubro em luz, amado, majestoso. Como se houvesse guardado, também em segredo e por tantos anos, a mandioca, as vísceras, a carne, o peixe, a chicória, a cebola, a cebolinha, o jerimum e “de um tudo” para que outra vez eu os trouxessem enrolados em sacos de cimento vendidos do avesso para casa de papai e mamãe.
Se o descubro assim, sublime e bem cuidado, em Caxixi, Ganzá, Agogô de Castanha, Matraca, Maracá e Tambor, então posso revelar o segredo que guardei em silenciosa clave musical por tanto tempo. 
O segredo se referia ao vizinho de frente do Mercado Central, a Fortaleza de São José de Macapá. Na verdade, ao contraste entre o Mercado Central e a Fortaleza de São José de Macapá.
A Fortaleza é uma edificação militar construída pelo império europeu para proteger império europeu e a Colônia do império europeu. 
A Fortaleza, contou-me o segredo, tem as pedras suadas do Rio Pedreira - Forte em dor - os indígenas capturados - Forte em dor - os escravos negros comprados - Forte em dor - todas as peças de artilharia - Forte em dor - e ganhou forma em 18 anos -  Forte, muito Forte em dor. 
A Fortaleza foi, para meu segredo, um Forte guarda dor.
O Mercado Central, ao contrário, contou-me o segredo, banhou-se de Amazonas desde o berço. Rezou terço. Deitou o perfume de bruços e aos soluços, em compasso e traço, fez-se homem e mulher, menino e menina. O Mercado Central se faz Macapá.
O Mercado Central, também me contou o segredo, nos fez voar o mais límpido e solene voo-urubu, e então plainamos todos em Tamuatás, Tucunarés, Pirarucus ao leite da mandioca, erva jambu. 
O Mercado Central, definiu o segredo, não foi içado Forte ou em dor, e por isso nos construiu livres e em igualdade no mais absoluto Sabor-Sereno-Macapá.
A existência própria do Mercado Central foi a de devolver ao Rio Pedreira as pedras suadas do Rio Pedreira. Aos indígenas capturados, seus cantos. Aos escravos negros comprados, o encanto dos passos livres.
O Mercado Central se fez em nós. 
E sem nenhum combate.


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SELFIE

Tenho muitos vícios. O mais imperfeito deles é o vício de fumar. O mais perigoso é o vício de amar. Imperfeitos ou perigosos os vícios me impõem a condição de servo.

Do primeiro – fumar - não raras vezes tentei me libertar, mas ainda sem êxito. Do segundo – amar - dado ao elevado grau de risco já estou serenamente livre. É que amar mata. Segundo minhas observações, quem traga o amor como eu trago é candidatíssimo ao óbito precoce. Não há pulmão que resista a um grande amor. Melhor fumar. Fumar salva vidas.

Há outro vício. Desse, tal como o vício de amar, também permaneço liberto, ainda bem. É o vício da Selfie.  Criei antipatia até pela palavra Selfie. E olhe que amo as palavras. Só a elas, inclusive.  

Mas Selfie é um estrangeirismo que faz com que quem o pronuncie passe representar o mais imponente falso-culto. Aliás, falso-culto é uma palavra composta por mim para identificar a exata futilidade. Em outras palavras, é um termo criado para me proteger dos cínicos.

Selfie é, portanto, um autorretrato (muitas vezes pode não ser um autorretrato, mas um multirretrato) onde se irradia a vaidade própria, próprio da própria desconfiança.

A Selfie nunca será um retrato. O retrato nasce em outros olhos e isso é suficiente para distanciá-lo da Selfie. A Selfie é um verdadeiro funk ostentação.

Seja como for, e por isso mesmo, eu nunca deparei com uma única Selfie triste. Uma Selfie que chore. Uma Selfie saudade. Selfie volte pra mim. Selfie que perdeu. Selfie dúvida.

Só encontro Selfie vencedor. Selfie Sorridente. Selfie Forte. Selfie Valente. Selfie Próspero. Selfie Feliz.    

Ontem estive com o rio. Expliquei quanto a meu vício de fumar e de como isso tem salvado a minha vida. Ele confidenciou que também inala do mesmo vício e por essa simples razão ainda existe. Depois, respirou fundo, e molhando em suas águas o vício do amor na modalidade cem metros rasos vaticinou: “Ouça Ruben, o amor não passa de um traço feito a lápis na cortina d’água”. E olha, de amor e de água o Amazonas entende mesmo. E muito.


Já quanto ao vício da Selfie, ele – o rio - acha tudo muito natural. Justifica, ensaiando, que o aperto de pés, por exemplo, é mais sagrado do que o aperto de mãos. E que nós só assistimos os apertos de mãos porque o aperto de pés só se revela na volúpia de nossas águas mais profundas e, por isso, é invisível. Nada mais invisível do que o aperto de pés, segundo o rio.

Quando comprimimos os pés descalços em outros pés descalços, disse-me o louco do rio, embora ninguém veja, ninguém saiba, caminhamos exatamente para a invisibilidade dos destinos paridos no vício que mata, mas sem o qual não se vive. O tal do vício de amar.

Para o rio, esse excêntrico excessivo, seja a selfie auto ou multi, é palavra do gênero feminino e só por isso estaria justificada sua existência e proliferação. Para ele, a Selfie é e sempre será um aperto de pés. O que a selfie revela mesmo ninguém vê porque não é pra ver mesmo. É invisível mesmo. Pés entrelaçados. Palmas enlouquecidas. Dedos em riso.

A Selfie é assim. Só anota que os pés existem, mas o aperto de pés é caligrafia que só se decifra no vício de amar.

Despedi-me do rio e ri. Ri muito. Costumo rir dos rios.  Diz-me o rio que o vício de amar é efêmero e quer me fazer crer nele e em Selfie. Ora veja!

Arranquei um cigarro do bolso esquerdo, acendi a luz que me salva a vida e segui. Simplesmente segui.
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Wagner Gomes, advogado e amigo


   O RASGADOR DE LETRAS
RUBEN BEMERGUY

Sou o único destinatário das coisas que escrevo e também das que não escrevo. As que escrevo, não leio. As que não escrevo, dedico tempo juntando letras imaginárias aqui e acolá, até ter ideia clara das cores predominantes em cada uma delas. Depois as rasgo. Elas gotejam como padecessem de desmedida dor moral. Sinto que elas – as letras – não perdoam minha inclemência, mas é assim que omito de mim e sofro um pouco menos exatamente por não me conhecer, gravado ou não em papel.
Ignoro-me não por pesar, mas por amor. Meu grau de proximidade comigo, certo sentimento de tolerância mesmo, está na precisa distância que de mim estabeleço.
Não sei de meus olhos ou do revestimento de minha pele, acuso apenas a noção de minhas unhas. Delas, não posso prescindir. Não só por ser rasgador de letras, mas também pela necessidade de laminar frequentemente grande porção da vida.
Assim, dela - da vida - obstinadamente, dilacero de um tudo. De mim sobra pouco. Esse resto trago empilhado na zona mais afiada das unhas, como se prestes a feri-lo ao mais tímido indício de remorso por ainda conservar algo de mim.
Compareço ao meu encontro a cada segundo. Arrumo e desarrumo na prateleira do vento isso tudo e depois, freneticamente, torno ao arquivo morto. Em seguida, volto ao ponto de partida. Sou assim.
Só não toco no segredo. Tenho medo. Ele... a ninguém deve ser dito. Muito menos a mim. Fico a imaginar se o descubro descalço, e se seus pés decidem percorrer meu tronco em tênue intensidade? Se o descubro sem túnica e se seu corpo é bordado e se me põe em cerco militar e se minha infantaria a ele adere e se ele me escraviza? Se o descubro a articular outros segredos em meus ouvidos pastos? Se o descubro Cacique e se ele, em círculos, canta-me e se seu arco arremessa uma flecha e se a flecha me vaza e se, por um lapso, eu gozar? Não. Nesse segredo não toco. Tenho medo.
O medo sincero é a mais gentil e sublime virtude de qualquer rasgador de letras. Mas não basta ter medo. É preciso também falar baixo. Bem baixinho pra não excitar o segredo. Em mim ele dorme, mas tem sono leve e isso é um risco permanente. Minha melhor porção o embala e vigia sem tréguas.
Sob o ângulo da vida, pareço louco. Ela – a vida – teima em nunca resignar-se a arquitetura dos que laceram letras. Daí me quer em holocausto. Contra mim, imputa falsamente versos que nunca fiz, músicas que jamais ouvi, danças que nunca passei, beijos que não guardei.
Eu, na quietude da mais serena convicção, nada faço. Se o segredo dorme, basta-me.
À vida, apenas digo: não me doce, nem me salgue. Me alme


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Ao centro, o pai de Ruben Sr. Mair Naftaly e outros familiares



PALÁCIO DA MORA

OU SYLVYA, COM DOIS ÍPSILONS
ou
ESTUDO DE CASO.  

Ruben Bemerguy

Nenhum amor é igual a outro. Cada amor ordena uma ciência própria. Por isso o amor não se decora. Só se decora a tabuada. A poesia, como amor, também não se decora. Poesia se memoriza, especialmente se as letras têm o perfume de Macapá. Aprendi isso ainda menino.

Naquela época, e mesmo despertando uma adolescência febril, eu vigiava meus amores de longe. Tinha muito medo que eles soubessem de meu amor. Escondido de meus amores eu era como um córrego pequeno debaixo das ruas de Macapá. Às vezes eu também era poço. Às vezes era mato.

Essa estética de vida me impunha cultivar a imaginação na imaginação. Exercitei por muito tempo muitas imaginações na casa de banho lá de casa. Meus amores nunca souberam ou saberão disso. Mas eu e meus amores ausentes produzimos sessões cinematográficas na casa de banho lá de casa.

Eu tinha, portanto, como se vê, um capítulo de vida a ser estilhaçado. Um castiçal a vela fundeado, indigente das ventanias e era essa minha parte náufraga pronta a submergir e ser dilacerada. A candura da casa de banho já era um flagelo desditoso demais para mim. Assim, exatamente assim, fadado a cilhar, em flexão deslizei nos seios da cidade lamparinando úmidos orifícios.

Dei, então, com o Palácio da Moral. O Palácio da Moral era um sobrado acanhado em que bacharéis e noviços se equivaliam. É que nesses ambientes solenes e castiços o níquel tem a capacidade da equidade, antes e depois da guerra. Desse jeito todos mantinham honrado renome no Palácio da Moral.

Tudo que se via por lá era feito em pranchas de madeira bruta e sem nenhum tratamento. Essa constatação nunca diminuiu a opulência daquela Corte de vida.

Embaixo do sobrado, um botequim. No botequim, o balcão em eloquente desasseio e nem por isso menos frequentado por cotovelos cativos e reverentes a religiosidade daquele lar. Atrás do balcão uma prateleira que acondicionava a ruma de garrafas de bebidas destiladas. No Palácio da Moral eu vi Rum, cachaça, vodka, cinzano, Martini, Macieira. Ao lado da prateleira uma geladeira para as cervejas e que, de resto, também agasalhava o Flip Guaraná, Grapette, Guarasuco e Larasuco. Isso é tudo o que ainda lembro.

Por curioso que pareça, no Palácio da Moral, o Seu Artur, dono do Palácio e do Botequim, mantinha também um alguidar com chiclete Ping Pong, Ploc, Menta e Jujuba. Ali no Palácio da Moral também se bebia o Ki-Suco de groselha.

Toda a administração e operação do Botequim do Palácio da Moral era de responsabilidade do Seu Artur. Não havia um único serviçal. Por isso era um Palácio. Palácio verdadeiro.

Me esgueirei muitas vezes ao entorno do Palácio da Moral. Queria ser voluntariamente abduzido para o interior daquela nave mãe e conhecer suas entidades extraterrestes. Um contato imediato, digamos assim, e adeus casa de banho lá de casa. Ela – a casa de banho - que se fosse para as memórias de agora.

Foi assim que armazenei toda minha confiança naquela noite. Atravessei corajosamente para o outro lado da lua. Meu bem jurídico mais bem tutelado – o castiçal - entretanto, não correspondia ao meu destemor. Senti a musculatura do meu bem jurídico mais bem tutelado se contrair tanto que parecia não acusar um único centímetro de existência. Temi muito por meu castiçal. Seria, sinceramente, uma obscenidade desaparecer do lugar onde se obrigava estar naquela noite de confiança. Se isso se concretizasse mesmo eu decidiria por fazê-lo voar aos pedaços sem recrutar nenhum de seus fragmentos.

Deitei, assim, o pé direito no Palácio da Moral. Aprendi com a vovó que entrar com o pé direito em ambientes suntuosos, onde importantes decisões serão tomadas, evita agouros. Até hoje repito escrupulosamente esse ritual quando entro, por exemplo, em um Parlamento ou na sede de um Tribunal.     

Nem bem entrei no Palácio da Moral e Sylvya se aproximou. “Sylvya com dois ípsilons”, ela logo se apresentou e me advertiu: “Sylvya, Sylvya com dois ípsilons”. Eu quis gritar socorro, mas era tarde demais. Toda a arquitetura de meus planos de aproximação foi por água abaixo pela só presença de Sylvya, Sylvya com dois ípisilons. Foram dias em vão aqueles em que ensaiei letra a letra um texto de sedução.

Senti o castiçal desacomodar como se redimindo, tão logo fotografei o vestido branco de Sylvya com dois ípisilons. Unhas severamente vermelhas, tez e dentes cor de leite. O contorno do rosto feito uma maçã com ossinhos malares mais agudos e olhos decididamente orientais. Não cultivei mais nenhuma dúvida: eu havia penetrado no Palácio da Moral.

Sylvya com dois ípisilons perguntou se eu poderia oferecer um drink. Palavra dela: drink. Assenti com a cabeça e uma dose de Cinzano, gelo e limão, pousou no balcão do botequim do Palácio da Moral. Sylvya com dois ípisilons me disse que Cinzano era bebida digestiva. Em pouco tempo Sylvya com dois ípisilons consumiu mais outras duas doses. Desassosseguei por meus poucos níqueis e também pelas consequências da bebida digestiva de Sylvya com dois ípisilons.

Sylvya com dois ípisilons sugeriu que subíssemos a seu quarto – expressão de Sylvia: quarto – que ficava nos altos do botequim do Palácio da Moral. Antes, porém, entreguei obrigatoriamente alguns níqueis a Seu Artur em troca das doses de Cinzano e pela estadia da hora no quarto de Sylvya com dois ípisilons.

Minhas pernas sacudiam o corpo inteiro e ainda assim, curiosamente, o castiçal içara a âncora produzindo em mim um apressado pé de vento/vela.

O quarto, pequenino mesmo, era de uma iluminação quase mulata. Eu, pálido, dava meus primeiros passos naquela espaçonave de assoalho desobscurecido por frestas de luzes que disponibilizavam assistir o botequim do Palácio da Moral.

Sem nenhuma cerimônia, Sylvya com dois ípisilons me abraçou. Em vertigem, correspondi. Na multidão de nós destilaram-se vestes sacerdotais, seja veste cristã, seja veste judaica. O elemento pagão chamou-me à vida.

Nunca mais retornei ao Palácio da Moral. A diplomática razão de ser do Palácio da Moral estava cumprida. Desconfio até hoje que Seu Artur edificou aquele Palácio para mim. Pôs lá em assobio o Flip Guaraná, Grapette, Guarasuco, Larasuco, chiclete Ping Pong, Ploc, Menta e Jujuba só para que um dia me fosse possível contar essa história. História com três ípsilons.

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EXCELENTÍSSIMA (O) SENHORA (OR) DESEMBARGADORA (DOR) MEMBRO DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ A QUEM DISTRIBUÍDO O PRESENTE MANDADO DE SEGURANÇA.







Ayrton Diógenes Ivo Ubirajara, brasileiro, casado, pecuarista, CPF (MF) 015.272.314-53, RG 438.729 SSP/PE, com endereço na Av. Sergipe, n. 268, Pacoval, CEP 68.908.310, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência, por seu advogado ao fim assinado, este com escritório profissional localizado na Av. Cel. Ernestino Borges, n. 191, Laguinho, Macapá-AP, nos termos da Constituição Brasileira, art. 5º, LXIX, e Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009, Impetrar

             MANDADO DE SEGURANÇA
       Com expresso pedido de medida liminar
Eis que presentes os pressupostos que a asseguram
          - Fumus boni iuris e Periculum in mora

Contra ato ilegal e abusivo praticado por Sua Excelência o Secretário (a) de Estado dos Transportes do Amapá, indicando – art. 6º da Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009 - o ESTADO DO AMAPÁ, como pessoa jurídica de direito público interno ao qual vinculada à autoridade coatora em razão dos fatos e do direito adiante expostos com sinceridade:


Muito se diz, e não sem alguma razão, que o Brasil é um país de assustadora produção legislativa. São tantas leis que chego a sentir compaixão dos que com elas lidam. Pensando assim, apiedo-me de mim.

Por mais que me devote às leis, há sempre um preceito desconhecido e com o qual me deparo só ao final de minhas raras petições. É um tormento diário. Desconfio até que não nasci para ciência do direito. Digo, talvez por sentimento de vingança contra essa penca de leis, que em regra os espíritos das leis mais assombram do que interpretam.

Exemplos jorram. Veja só, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador). Soube outro dia que na França há proibição legal em se batizar porco com o nome de Napoleão. Uma reverência ao Imperador, como fossem os Imperadores dignos de reverência. Especialmente se bélicos, como Bonaparte. Coitado. Pois bem. Fico eu a imaginar acaso não houvesse proibição legal sobre o batismo de um porco. Nada contra os porcos, só contra Imperadores, mas levá-los ao batistério parece demais. Não é comportamento religioso ou social apropriado, penso eu.

No Brasil a excentricidade legislativa também é larga. O Prefeito da cidade de Bocaiúva do Sul, no Estado do Paraná, seriamente preocupado com o baixo índice de natalidade na urbe, proibiu a venda de preservativos e anticoncepcionais. É que a retração de nascimentos impactava seriamente os valores alcançados pelo município a título de Fundo de Participação. A lei foi revogada. Ufa! Que alívio. Menos uma.

Mas justiça seja feita, existem também boas leis. Essa Lei n. 10.741, de 1º de Outubro de 2013, que “Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências” é uma delas.
Lei legal, diriam os mais juvenis. Lá está dito, entre outras coisas sensatas, que São asseguradas a prioridade e a segurança do idoso nos procedimentos de embarque e desembarque nos veículos do sistema de transporte coletivo”. Essa redação é fruto de outra lei que não a originária. Essa é de 18 de dezembro de 2013 – Lei n. 12.899.

O Seu Ayrton, autor desse Mandado de Segurança, por ser utilitário de transporte público coletivo fluvial, já em 2013, ao ler a lei legal respirou aliviado. Pronto! Agora não mais aguardaria em filas quilométricas acesso aos transportes públicos, designadamente o transporte fluvial.

Lei é lei, pelo menos para o Seu Ayrton.

É que ele tem um gadinho ali no município de Mazagão e, dia sim dia não, vai lá buscar leite para vender nas padarias de Macapá. É um ganha pão muito duro, inda mais para um homem de 74 anos de idade. Olhe, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador), para chegar a Mazagão tem que atravessar o rio Matapi por meio de balsa. A balsa vai de um lado para outro do rio. A balsa é lenta e a espera áspera faz padecer. 

 Balsa é um jangadão de ferro. Aliás, embora as jangadas sejam embarcações charmosas, até mote de inspiração a Dorival Caymmi – Suíte do Pescador - as balsas, como as leis citadas, por exemplo, têm um “Q” de assustadoras.

Sempre mal conservadas, as balsas parecem indiferentes aos que a habitam em travessia. As balsas não têm ternura. As jangadas têm. Mas não se atravessa o rio Matapi de jangada. Fazer o quê? O Seu Ayrton tem que atravessar o rio. Ele e seu carrinho. Levar a ração para o gado que é paro ele dar o leite. O gado dá o leite mesmo sem precisar atravessar o rio, pois a natureza é perfeita.  Mas o leite precisa atravessar o rio no colo do Seu Ayrton que precisa da balsa para chegar a Macapá que é para chegar à padaria da esquina, onde o leite é entregue para apurar o sustento. Fazer o quê?

Tem também, Senhora Desembargadora (Desembargador), um agravante nisso tudo. O Seu Ayrton, homem de 74 anos como já dito, mais ou menos 1m 60 cm de altura e um Índice de Massa Corporal – IMC - que, a olhos nus, diagnostica a obesidade (afirmo isso com a fé de meu grau) não reúne mais saúde para o aguardo das infindas horas da balsa. Isso seguramente pode testemunhar o rio Matapi. Como se vê, a idade já seria suficiente a amparar o direito de Seu Ayrton, mas conhecendo-o como conheço, o peso é que pesa mesmo.

Não se está aqui a recriminar Seu Ayrton pela formatação corporal. Não. Nunca. Sabe-se que foi um homem delgado e muito bonito. Olhos azuis ainda mantém. Beijo doce também. Já fui beijado por ele. Tenho orgulho dos beijos do Seu Ayrton. Além de tudo, brilhante militante político. Cassado pela ditadura militar e há pouco anistiado. É meu amigo o Seu Ayrton e tenho muito amor por ele. Mas o tempo é impiedoso. Seu Ayrton não é mais jovem, nem belo e está gordo.

O certo, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador), é que Seu Ayrton quer exercer um direito. Aquele que está na lei legal. Se a lei legal diz que São asseguradas a prioridade e a segurança do idoso nos procedimentos de embarque e desembarque nos veículos do sistema de transporte coletivo”, então o Seu Ayrton quer exercer esse direito.

Jamais por emulação, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador), ou para conspirar contra aflição dos outros mais jovens e que também suportam da balsa. Isso não. É que, de verdade, a idade pesa, além, como fixado, do peso do Seu Ayrton. Acho que foi isso que a lei legal descortinou e por isso existe. Esse é o espírito da lei legal. Lei que não assusta.  

Me disse o Seu Ayrton que depois dos 70 anos a energia é escassa. As pernas não custam a cansar. O sol menos ilumina do que castiga. A chuva tem sensação de tremor e pode indicar vitamina C e cama.  Não dá mais para esperar a longa espera da balsa. A pressa é priorizar o idoso mesmo.

Foi assim que o Seu Ayrton dirigiu-se a Secretaria de Estado de Transporte do Amapá – SETRAP. Em requerimento, narrou sua idade e a necessidade de prioridade inserta na lei legal. Isso se deu em 11 de dezembro de 2013. Até hoje nada de resposta. Nadica de nada. Nem um nãozinho Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador). Nada. Silêncio absoluto. E olhe, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador), que o Brasil tem outras leis legais como aquela que faculta ao cidadão o direito de petição aos poderes públicos. Isso está na Constituição da República. E a resposta também é obrigatória: 15 dias.

Mas nada de resposta. Estaria o Estado do Amapá tão ocupado a ponto de sequer responder a um simples requerimento administrativo? Acho que sim.   

De nada adiantam as leis legais, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador), se o poder público não as observa e é o primeiro a ignorá-las às favas com as leis legais. Parece que lei é coisa de academia e lá deve ser segregada. Afinal, qual a importância em se responder o requerimento de um cidadão? Inda mais idoso e gordo!

Como se vê, melhor do que leis legais seriam administradores legais, competentes, respeitosos. Gente com compreensão democrática. Gente. Gente. Isso bastaria.

O Amapá vive tempos difíceis. Acho que alguém atingiu a cabeça dele com uma coronhada, e o Estado ainda não recobrou a consciência. A onda de violência aqui está assustando feito a lei do Napoleão- aquela do porco - ou de Bocaiúva do Sul – aquela do Fundo de Participação dos Municípios.   

Um Estado assim, desfalecido, custa caro para o cidadão, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador). Custa caro para o vendedor de ração.  Custa caro para o gado.  Custa caro para o rio Matapi.  Custa caro para a balsa e para o Seu Ayrton e também custa caro para mim. Sinto-me impotente diante de tanta inabilidade ou maldade administrativa e o máximo que posso fazer é aforar essa ou outra ação qualquer. Mesmo otimista em solucionar a agrura do Seu Ayrton, isso é pouco. Sinto-me impotente mesmo e dói, dói porque amo o Amapá e o Seu Ayrton.

Parece bruxaria! Disse isso ao Seu Ayrton, mas Seu Ayrton não crê em bruxas. Eu creio. E acho que elas são responsáveis pela ruína da minha terra. Aliás, tenho certeza. Só o fato de ter de ajuizar um Mandado de Segurança para a defesa de um direito tão trivial é indicativo de que tem algo de muito errado com o meu Amapá. Valha-nos D’us.

Exclusive minha lamúria, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador). O certo é que Seu Ayrton protocolizou o requerimento junto à Secretaria de Estado de Transporte do Amapá – SETRAP, para acessar prioridade no transporte público fluvial em 11 de dezembro de 2013. Já se vão mais de 120 dias.
Ainda assim sugeri ao Seu Ayrton a via do Mandado de Segurança para alcançar o direito. De início ele foi contra. Seu Ayrton é homem letrado. Acusou a decadência. É que ele sabe que esse tipo de ação só se convalida em prazo não superior a 120 dias a partir do ato ilegal e abusivo. Discordei. Disse a ele que estávamos tratando de um ato omissivo por parte da administração e, por isso, contínuo, não se operando a decadência.

Ele, mesmo desconfiado, ainda sugerindo uma ação ordinária, acatou meu parecer. Imagino que se Vossa Excelência aderir à tese de Seu Ayrton e indeferir liminarmente esse Mandado de Segurança, minha imagem profissional ficará arranhada, arranhadíssima junto ao Seu Ayrton. Estou frito! Porém tenho fé na tese. Em frente! Seu Ayrton não é advogado, mas eu sou e ponto final.

Também falamos sobre o fumus boni iuris, a tal fumaça do bom direito. Aqui não divergimos. O fogo do direito arde a partir da própria lei legal - Lei n. 10.741, de 1º de Outubro de 2013. Quanto ao periculum in mora, Seu Ayrton diz que ele – o perigo da demora - está em sua alma que, embora plena, não aguenta mais esperar horas a fio o transporte público fluvial de intermináveis filas.

Eu, assumindo profunda ignorância álmica, sinceramente, nem sabia que as almas cansavam assim. Disse-me ele também que a prioridade imediata no transporte público tem semente no próprio tempo de vida e que o tempo de vida não pode esperar. Com o tempo, o tempo de vida tem pressa, segundo ele. Discordei na hora, embora entenda o Seu Ayrton.

Ele vê o mundo com as cores de Frida Kahlo. Ouve o mundo na voz de Billie Holiday e o cheira como fosse um maço de Patchouli. Só por isso o entendo e o perdoo. Só por isso me entrego aos beijos do Seu Ayrton.

Embora tudo, estamos falando de uma petição. Obrigo-me rigorosamente solene. Frio. Indiferente à alma. Como posso falar de alma em uma petição judicial. Petição não é poema. Ainda bem. Fosse e eu estaria falido. Não rimo nem mesmo meus gestos. Além, como também falar do tempo de vida em uma petição! Não cabe. Seria objeto de chacota. Ah! Esse Seu Ayrton sai com cada uma...

Desconsiderei tudo o que disse o Seu Ayrton e pedi a ele que entendesse isso. A petição é solene. Cerimonial. Tem que infundir respeito. Nela só cabem palavras elaboradas. Palavras silenciosas e que não respondem, tal como bem faz a autoridade coatora. Os escaninhos forenses não aceitam ruído algum.  Portanto, nada de falar de alma aqui. Outra vez contrariado, depois do ralho, aquiesceu.

Rechaçando as sugestões do Seu Ayrton, digo eu que o periculum in mora está na lógica do presente e na dúvida existencial futura. É que quando se alcança a idade septuagenária, mesmo que a cor dos olhos permaneça a mesma, o corpo é outro. Às vezes um desconhecido. Não suporta mais os movimentos frenéticos ou a espera infinda de locomoção fluvial ou outro modal.  

O perigo está na saúde e na qualidade de vida do idoso. Não que, acaso não concedida a liminar, vá o Seu Ayrton abandonar o gado e deixar de comparecer com a ração. Não que não vá atravessar o rio na balsa fria e indiferente ao tempo do Seu Ayrton. Não que não vá trazer o leite ou deixá-lo de entregar na padaria da esquina. Não. Nada disso. A vida às vezes é assim. Ele precisa sobreviver e sobreviverá. Mesmo que o Estado, embora novo, jaza. Mas o periculum in mora urge no respeito urgente que tem o Estado de proteger o cidadão idoso a partir de normas por ele mesmo – Estado – produzidas. O perigo é a negação do sempre imediato direito do idoso.

As Provas Necessárias ao Mandado de Segurança estão circunscritas à idade do Seu Ayrton. Se for idoso, na acepção da lei, basta deitar a vista em seus mais de 60 anos de idade e está ai o fato aderido ao direito. Tem também, talvez por preciosismo, a demonstração de possuir um terreninho em sítio em que é necessária a travessia sobre o rio Matapi, travessia essa que, como notório, em sede de transporte público, só se faz de balsa.

Como se pode observar pela Carteira de Identidade do Impetrante ele conta hoje com mais de 60 (sessenta) anos de idade. A Lei n. 10.741, de 1º de Outubro de 2013 assegura “a prioridade e a segurança do idoso nos procedimentos de embarque e desembarque nos veículos do sistema de transporte coletivo” a partir dos 60 (sessenta) anos.

Ante ao francamente exposto e invocando vênia pela confissão de amor acima fixada, REQUER a concessão de medida liminar, mesmo antes de ouvida a autoridade coatora, para o fim de assegurar ao Seu Ayrton prioridade no procedimento de embarque e desembarque no transporte coletivo fluvial – balsa – sobre o rio Matapi. Transporte esse de responsabilidade do Estado do Amapá e administrado pela Secretaria de Estado dos Transportes, determinando que se expeça em prazo não superior a 24 h (vinte e quatro horas), autorização que faculte ao Impetrante frequentar fila, acaso existente, de prioridade de atendimento permitindo o acesso, inclusive do automóvel por ele conduzido no interior do veículo fluvial, de modo a transportá-los de um lado a outro lado do rio Matapi, nos exatos termos da lei legal.

A Notificação da autoridade coatora, Secretario (a) de Estado dos Transportes, enviando-lhe a segunda via apresentada com as respectivas cópias documentais, a fim de que, se desejar, no prazo de 10 (dez) dias preste informações ao juízo.

Que se dê ciência do feito ao Estado do Amapá, órgão de representação judicial da pessoa jurídica interessada, enviando-lhe cópia da petição inicial para que, se assim interessar, ingresse no feito;

A Notificação do Ministério Público para que oficie no feito;

Em mérito, a imputação à autoridade coatora nesta ação – Secretario (a) de Estado dos Transportes do Amapá- do ato ilegal praticado na atividade de seu munus público, assegurando ao Seu Ayrton prioridade no procedimento de embarque e desembarque no transporte público coletivo fluvial – balsa – sobre o rio Matapi, pelas razões expostas.


À causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais).
São os termos em que
Pede e espera deferimento.
Macapá-AP, 15 de abril de 2014

p.p Ruben Bemerguy
OAB 192 AP






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