Ruben Bemerguy é um advogado amapaense com ancestrais judeus que chegaram a esta região há muitos anos. Nascido em junho de 1961, já exerceu vários cargos no serviço público estadual, dentre os quais o de Procurador-geral e Secretário de Estado da Educação. Mas, sua vocação mesmo é o Direito , profissão que exerce há mais de trinta anos e, menos visível ao grande público, seu talento literário, mesmo quando redige peças jurídicas - como se pode ler nestes textos ora publicados aqui neste blog. Ruben adora reunir artistas e poetas em sua casa. Certamente, o leitor que não conhecia essa parte artística e literária do Ruben vai se deliciar com a sua bem elaborada escrita.
PS: Não incluí Ruben na série Novos Poetas do Amapá respeitando o gênero que ele preferiu publicar (prosa), mas para o bom leitor é suficiente ler nas entrelinhas destes textos a linguagem com sabor poético inconfundível!!!
...........................
Eu e Ele
Ruben Bemerguy
Ele
palmilhava meus pés com hálito de chuva. Todas as palavras estavam caladas.
Zuniam sílabas imprecisas. Eu, freneticamente imóvel tragava-as e devolvia a
panos que aconselhavam tórrida escravidão. É como se me adivinhasse dividida em
hemisférios. Isso me fazia transpirar uma resina inflamável e incontida. Ele,
inclemente, me subia aos poucos, ramificando pernas. Ali também cultivava
chuva. Aquietei-me incolor. Mais rápido
do que imaginei, a língua anelou-me as hastes. E enquanto ele me escavava com os
lábios, eu germinava o falo bem na palma da minha mão.
Prolonguei
a respiração o quanto pude. Esse intervalo foi suficiente para que levitasse invisível
aos olhos de meu homem. Dali também bebia vagarosamente cada um de seus gestos.
Atada a volúpia, logo me certifiquei que nenhum de meus cálculos era exato. Constatei
também que aprendemos – eu e ele – muito com os animais não hierárquicos. Não
havia macho e não havia fêmea. Só nós, nus em lã, feito forças armadas convulsivas
e desordenadas. Depois voltei ao rijo esconderijo de nossos corpos.
Movíamo-nos
em ziguezagues repetidos e tudo era contrário ao direito. Ainda bem: nossa
ideia de justo era sua própria abstração. Também éramos imortais naquele
instante. Derivados do extinto, comprimíamos, um a um, os mais remotos poros e,
assim, passeávamos famélicos e tesos.
Todas
as mensagens estavam postas. Acessamo-nos. Medievais. Inexatos.
Do
fole veio o sopro. A cavidade ventilada precipitou-me ao seu abismo. Latejaram
os rios. Gradualmente, pernoitei, enquanto ele palmilhava meus pés com hálito
de chuva.
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Excelentíssimo
(a) Senhor (a) Juiz (a) de Direito do Juizado da Microempresa e Empresa de
Pequeno Porte da Comarca de Macapá – Amapá.
Ref.
Processual: 0046240-64.2015.8.03.0001
RUBEN
BEMERGUY, brasileiro, casado, advogado, inscrito na Ordem
dos Advogados do Brasil, Seccional do Estado do Amapá, sob o n. 192, Portador
do Registro Geral n. 008 486 AP e CPF (MF) 137 489 472 91, com endereço
profissional na Av. Cel. Ernestino Borges, n. 191, cidade de Macapá – AP, vem
respeitosamente à presença de Vossa Excelência, a propósito da AÇÃO DE EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL
movida por ALTAIR PEREIRA IMÓVEIS LTDA,
apresentar sua
C
O N F I S S Ã O
Quanto
ao que articulado na petição inicial e registrar
alguns poucos esclarecimentos que, seguramente, embora não interfiram no exame
do justo pedido, alentam a alma do signatário em quadra de sincero rubor.
1.
Postulando em causa própria, porque
autorizado pela norma inserta no art. 36 do Código de Processo Civil, peço
permissão ao juízo para encomendar
algumas anotações que, por estranho que pareça, dirijo a mim mesmo e sem
nenhum atributo de resistir à pretensão posta na peça processual inicial.
2.
Me
refiro ao art. 36 do Código de Processo Civil, Excelência, porque é ele quem
faculta minha autodefesa. É que possuo habilitação legal para tanto – sou advogado.
3.
Tenho pessoalmente muita reverência pelo
art. 36 do Código de Processo Civil, Senhor (a) Juiz (a). Não fosse ele meu
malogro seria de maior gravidade. Sem o art. 36 do Código de Processo Civil
teria eu, obrigatoriamente, de me socorrer de outro advogado, e o outro advogado não diria o que preciso
dizer, por mais brilhante que fosse o outro advogado.
4.
Não diria, por exemplo, o outro advogado,
Excelência, que cultuo com ardor minhas
amizades. É quase um desígnio de vida. Bom desígnio.
5.
Não diria o outro advogado, como digo eu,
que meus amigos nunca açoitaram o amor
que a eles dedico. Os que tentaram fazê-lo se foram em tempo breve. Aliás,
esses vão sempre e, sinceramente, nunca estiveram em mim e não anoto sequer a
falta de qualquer deles. Também não mantenho a sensação de arrependimento de
tê-los um dia por amigos. Reparando bem,
a perfídia e a ingratidão, maltrapilhas orações, são sempre abreviadas por
veloz esquecimento e, ao mesmo tempo,
tenho-as como benção que me conduz a um
tempo apressadamente melhor.
6.
Por
isso, Excelência, amo os meus amigos com
um amor patriótico. Tal qual Vinícius de Moraes, asseguro, Senhor (a) Juiz
(a), que “poderia suportar,
embora não sem dor, que tivessem morrido todos os meus amores, mas
enlouqueceria se morressem todos os meus amigos!”. Faz parte de mim
ser assim e amar assim.
7.
Meus amigos verdadeiros, como eu, permita
a inconfidência, também cometem muitos erros, Excelência. Choram até, – não consigo ser amigo de amigos que não
choram. Meus amigos perdem gols,
creem em lábios que riscam corpos, creem
em vertigem e sortilégios e é por isso que amam e desamam nessa nau que ondula
a vida.
8.
Por ser assim, procuro estar sempre perto
de meus amigos, e eles sempre perto de mim em uma toada de solidariedade que já
às vezes reparo rara.
9.
Um de meus amigos, Excelência, é o Rudá.
Rudá Carvão Nunes. Rudá foi um grande
velejador. Participou e venceu as principais competições nacionais de vela.
Um homem do mar, digo eu.
10.
Rudá cruzava oceanos e perfurava vagas
em voos flamejantes. Tudo na piracema.
Rudá, garanto, é ascendente dos alevinos marinhos. Reparando bem, Excelência, os peixes do mar só singram os mares como
singram por ação do Rudá. Foi Rudá,
Excelência, quem alfabetizou os peixes do mar ensinando-os a amar o mar.
11.
E tem mais. O Rudá que velejou o mar com
maestria, agora - coisas dos tempos - veleja a vida com a mesma intensidade. Por isso, Rudá tem sempre um projeto em
desenvolvimento ou, para dizer a verdade, no pensamento. Rudá pensa muito. Acho
que pensa até demais da conta,
Excelência.
12.
Rudá é, para mim, quase um sonhador. Ingênuo,
diriam os indignos de compreender sonhos. Em meu sentir, ele é um quase anjo dos sonhos. Eu já sonhei com
os sonhos do Rudá. Rudá é ótimo de conviver. Rudá dá prazer. Além de tudo, um
belo homem.
13.
Curiosamente, Excelência, o pai do Rudá foi o primeiro governador do Território
Federal do Amapá. Foi também Presidente da Petrobrás. Foi embaixador do
Brasil e Deputado Federal, além de Coronel do Exército Brasileiro.
14.
Outra curiosidade, Excelência. Na época
em que o pai do Rudá governou o Território,
o Amapá era uma terra de pouca gente. Todos aqui se conheciam. No Amapá não
existiam estranhos. Éramos todos
vizinhos.
15.
Também naquela época do governador Cel.
Janary, pai do Rudá, meu pai ainda com tenra idade buscava uma “colocação”
no serviço público. Era tudo difícil. Concurso público, nem pensar. Depois,
quem concorreria a uma vaga para emprego no isolado Amapá? Mas meu pai era daqui e daqui, como eu, nunca quis sair. Meu pai
acariciava Macapá como poucos.
16.
Então o pai do Rudá, nem sei bem como,
descobriu meu pai e sua vontade de entrar
para o serviço público. Foi ter com ele e o encaminhou ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Pronto.
Meu pai foi admitido e esse foi seu único emprego na vida. Dele tirou o sustento da família e alcançou todos os postos de trabalho
lá, dos mais baixos até o mais alto, se assim se pode dizer.
17.
Eu nunca conheci o pai do Rudá,
Excelência. Só o conheci o Rudá e os irmãos, o Janaryzinho e o Guayracá. Assim,
nunca tive oportunidade de agradecer ao
Cel. Janary pelo emprego de meu pai, embora o rito de acesso não tenha
sido, aos olhos de hoje, o mais apropriado. Mas diria ao Cel. Janary em posição
de sentido: “muito obrigado, Coronel”.
18.
Diria também, Senhor (a) Juiz (a), que
fez uma boa escolha. Meu pai era, antes
de tudo, um homem extremamente honesto e sábio. Sinto muita saudade do papai, Excelência. Mas, se ele me visse
respondendo a essa Ação de Execução que
o Altair Pereira Imóveis move contra mim, seria uma retumbante decepção para
ele.
19.
Em sempre que olho para o Rudá penso no
pai do Rudá e penso em meu pai e no emprego do meu pai. Penso na cadeia da vida, enfim. Também penso,
mas agora com pesar, no Altair Pereira Imóveis.
20.
Agora ouça, Excelência, o desdobramento
dessa conjuntura. Nada grave. Nada grave, mas grave bem.
21.
Um dia, faz pouco tempo mesmo, meu amigo
Rudá chegou meio esbaforido em meu pequeno escritório de advocacia. Rudá precisava de um fiador. Tinha uma
dívida com Altair Pereira Imóveis. Estava em negociação, mas precisava de um
fiador.
22.
Rudá
alugou uma casa administrada pela imobiliária Altair Pereira Imóveis e não
pagou alguns poucos aluguéis.
23.
Veja só como é a vida Excelência: até os
sonhadores, como Rudá, são fustigados por mínimos que sejam seus deslizes.
24.
Existirá um dia, eu creio nisso, em que
se Decretará a inimputabilidade sumária
dos sonhadores, porque o mundo só é mundo se os sonhadores existem.
25.
Aliás, o mundo só gira por isso. Imagino
que se esse Decreto já existisse,
adeus à sanha impiedosa do Senhorio do Rudá. Ele, o Senhorio, é que teria que
pagar aluguéis aos sonhos do Rudá para que o Rudá sonhasse e o mundo girasse.
26.
Mas, sem o Decreto e diante da realidade pensei, cá com meus botões:
“Rudá está
precisando de fiador?
Acho que a praça anda
desconfiada do meu amigo.
Que injustiça.
Que
crueldade”.
27.
Nem pestanejei contra essa violência. Me
dispus a afiançar a dívida do Rudá e em menos de hora os papeis estavam todos sobre
minha mesa. Assinei tudo. E quase que sem ler. Afinal, o Rudá me afiançou
também que seus projetos e sonhos estavam em curso e que pagaria pontualmente
aquele bando de promissórias.
28.
Eu, que nunca duvidei de sonhadores e
sempre os reverenciei, assinei mesmo. Assinei
tudo. Tudinho.
29.
Vivi descansado por algum tempo
Excelência e aliviado por ter aliviado os sonhos de um sonhador. Respeitável
sonhador. O meu amigo Rudá.
30.
Até que um dia – uma sexta feira - recebi
a visita de uma bela e educada Oficial de Justiça. Pensei logo que seria
intimado para qualquer ato processual de algum cliente. Sou advogado, como já
disse. Mas nada disso, Excelência. Era o momento da minha citação. Altair Pereira Imóveis me executou, sem dó nem piedade.
Arregalei os olhos e constatei que os projetos do Rudá não iam tão bem como por
ele sonhados e por mim previstos. Virei Réu
instantaneamente. Um horror.
31.
Logo, pensei em comunicar o Rudá da
ocorrência desagradável e dizer a ele, além de minha condição de Réu, que o Decreto de imunidade dos sonhadores ainda não havia se
concretizado, embora eu tenha, desde que assimilei a situação do Rudá,
encaminhado ao Congresso Nacional sugestões de Projeto de Emenda Constitucional
que protege os sonhos e os sonhadores, tudo, evidentemente, para permitir que o
mundo continue a girar.
32.
Mas, Excelência, era uma sexta-feira e sexta-feira não é dia de
notícia ruim. Então, calei minha condição de Réu e potencial condenado.
33.
Rudá, coincidentemente, por
incrível que pareça, me telefonou naquela minha sexta feira de Réu. Ele estava feliz com a caminhada dos seus
projetos e outros sonhos mais. As expectativas eram promissoras. Rudá riu muito ao telefone. Senti vontade
de abraça-lo. Adorei a alegria do Rudá. Eu precisava daquela alegria naquela
sexta-feira de Réu.
34.
Então, depois de ouvi-lo com atenção,
não dei uma única palavra sobre minha condição de Réu. Pensei, entretanto, em comunicar meu amigo Rudá já na segunda-feira mas, Excelência, também não
tive coragem.
35.
Início de semana, segunda-feira não é dia para notícias ruins. Sofrer sozinho um
pouco mais faz bem. Descobri isso por ação dos sonhos do Rudá. Se se é
tolerante, se tira lição de tudo. Agradeci ao Rudá e pensei comigo: “ligo
na terça”.
36.
Mas não parei de refletir sobre o
processo um só minuto, Excelência. Sinto vergonha de ser Réu. Réu confesso.
37.
Vergonha
de ir ao fórum eu tenho. Ao juizado especial onde correm os autos, nem pensar. Lá eu não vou. Lá eu não piso. Todos me
olhariam com ar de reprovação. Essas coisas me maltratam muito. Não é
natural dever e não pagar, e o fiador é tão responsável quanto ao devedor
principal.
38.
Natural seria que os projetos do Rudá se
concretizassem e nós fôssemos a um bar celebrar com uma cerveja bem gelada, depois de Rudá pagar Altair Pereira Imóveis
Ltda. A cerveja, sem pagamento das obrigações com Altair Pereira Imóveis
Ltda, nem gela. Pelo menos a minha. Acabou que na terça feira também não liguei. Não sei a razão, talvez o receio de
magoar o Rudá. O certo é que não liguei.
39.
Quarta-feira
estava determinado a comunicar o Rudá. Eu também precisava protegê-lo e não
queria que fosse pego de surpresa. É que quando a bela e educada Oficial de
Justiça o encontrasse, a alma sonhadora já estaria galvanizada contra a
iniquidade do Senhorio e de Altair Pereira Imóveis Ltda.
40.
Mas nada de citação do Rudá. O esforço
hercúleo da bela e educada Oficial de Justiça não foi suficiente para encontrar
o Rudá. É que só os sonhadores podem
encontrar outros sonhadores e, pelo que vi, a bela e educada Oficial de Justiça
não era uma sonhadora.
41.
Depois, Rudá, como bom sonhador, acorda
cedo e sai cedo de casa. É preciso ir ao encontro dos sonhos para que o mundo
gire. Rudá tem imensa responsabilidade
com isso. Todos devemos muito ao Rudá. Inclusive seu Senhorio e o Altair
Pereira Imóveis Ltda, mesmo que ignorem essa condição de devedores do Rudá.
42.
Na quarta feira, Excelência, não me
contive e liguei para o Rudá. Rudá me recebeu com um grito de gol. “Fogaço Ruben.
Voltamos para a primeira divisão do Brasileirão. O teu flamengo que se cuide”.
Ele é botafoguense fanático, Senhor (a) Juiz (a).
43.
Eu, de minha parte, ando um pouco sem
divisão enquanto for Réu confesso. Que se vá o flamengo e fiquem os sonhos do
Rudá e o mundo a girar.
44.
Outra
vez não tive coragem, Excelência, de dizer ao Rudá da ação de execução. O Rudá
e o botafogo mereciam respeito. Depois,
também acho que quarta-feira é dia de futebol e não de má notícia.
45.
Decidi não dizer com palavras faladas
nada ao Rudá sobre minha condição de Réu e da Execução. Encaminhei um e-mail. Ficou
mais fácil. Não que quisesse cobrá-lo. Jamais. Sonhadores já fazem demais ao fazer o mundo girar e importuná-los
com uma açãozinha judicial qualquer seria o fim. Até torci para que o Rudá não
lesse minha mensagem. O lixo eletrônico seria o destino mais apropriado à minha
ousadia de enfadar aquele sonhador.
46.
Mas foi paft puft. O Rudá leu a mensagem. Não sei o dia nem a hora, mas leu
logo. Voltou imediatamente a meu escritório profissional. A secretaria o
anunciou. Tremi dos pés à cabeça. Penitenciei-me por enfastiar aquele sonhador
com minhas desnecessárias aflições.
47.
Aqui,
já recebi de mim a primeira sentença condenatória,
justamente por inquietar um sonhador. A segunda viria
depois e seria mais leve, seguramente – a Execução de R$ 20.000,00 (vinte mil
reais).
48.
Rudá outra vez invadiu minha sala com
seus sonhos. Tranquilo, aconselhou-me a
assimilar as dificuldades da vida para que eu não ficasse abatido, debilitado.
Me apresentou seus sonhos, uma ruma de projetos, créditos, esperanças. E antes
que eu deitasse uma lágrima diante da manifesta ausência de solução ao
pagamento do Altair Pereira Imóveis Ltda, – meus amigos e eu choramos mesmo, como fixado acima – escondi do
Rudá, como por obrigação, toda minha dor e
qualquer outro tipo de contrariedade. Enfim, eu estava diante de um sonhador
que fazia sonhar e, mais do que isso, fazia o mundo girar.
49.
Afinal, o que são R$ 20.000,00 (vinte
mil reais) diante dos sonhos de Rudá?
50.
Ouvi com atenção todos os pareceres do
Rudá, o bom senso, a exortação a vida e suas vicissitudes, a necessidade e a imprescindibilidade
dos sonhos que fazem o mundo girar e, antes que Rudá se despedisse de mim,
parabenizei-o efusivamente pelo Botafogo e o acesso à primeira divisão do
Brasileirão.
51.
Finalmente, ao fim da tarde daquele dia
foi fácil concluir que os projetos do Rudá ainda não seriam suficientes para
amparar a dívida que agora, tenho a mais absoluta certeza, é só minha e de
nenhum outro sonhador que faz o mundo girar e, por isso, decidi contar essa
história ao juízo para, pelo menos, registrando desculpas ao credor Senhorio do
Rudá e à Altair Pereira Imóveis Ltda, assumir o pagamento em audiência já
designada, orando sempre pelos projetos do Rudá e, mesmo que isso não tenha
nenhuma importância, defender minimamente minha tão estimada reputação.
52.
Ante o Exposto Requer se digne Vossa Excelência a simplificar a lide
apresentando-me suave sentença de condenação que, por mais suave que seja,
ampare os direitos de Altair Pereira Imóveis Ltda e, por favor, em nome do mundo e da necessidade de seu
giro perpétuo, exclua da lide o sonho e o sonhador Rudá Carvão Nunes,
absolvendo-os de tão injusta e amarga persecução judicial.
São os termos em que
Respeitosamente,
Pede deferimento.
Macapá-AP, 11 de
novembro de 2015.
Ruben Bemerguy – Em
causa própria.
Advogado
OAB 192 AOB
..........................................................................
MERCADO
CENTRAL
Ruben Bemerguy
É curioso quando
você encontra a história em você.
Aquela que não vem
dos livros de história.
História que você
conta para si porque sabe a História de memória.
História
entreolhos, franca. História cúmplice. História-saudade-vida-viva.
Quando em 1953
desaferrolharam as portas do Mercado eu ainda não havia nascido. Porém, papai e
mamãe já navegavam naquela tenda cintilante de carne e osso.
Então, íntimos do
Mercado, confiaram-me um segredo que, segundo eles, só poderia ser por mim
revelado se o Mercado, as genitálias do Mercado, a epiderme do Mercado, o ar
que o Mercado respira, fossem cuidados pela cidade Macapá.
Se o açaí e a
bacaba fossem do Mercado sonegados; se sua horta fizesse infecta; se seus
talhos lhe fossem extraídos; se suas roupas não fossem passadas em
brasa-carvão; se suas joias não fossem em lustre eternizadas, esse segredo
passaria a dormir comigo em abrigo eterno.
Imaginei dias, anos
a fio que o segredo dormiria comigo em abrigo eterno.
Meu pai e minha
mãe, afinal, foram minhas primeiras constatações de autoridade e até hoje o
são. Nunca poderia ou posso faltar-lhes com o dever de lealdade absoluta.
Segredo é a jura que fiz.
Quantas vezes, para
disfarçar nosso segredo, fui ao Mercado Central fazer mandados? Não tenho a
conta. Até conta papai e mamãe tinham nos talhos do Mercado Central.
Dos mandados que
cumpri e que não tenho conta, ainda lembro, como se no caminho do Mercado
Central estivesse indo buscar mandioca, vísceras, carne, peixe, chicória,
cebola, cebolinha, jerimum e “de um tudo” enrolado em sacos de cimento vendidos
do avesso.
Agora, já resolvido
em 58 anos de idade, e que volto ao Mercado Central o descubro em luz, amado,
majestoso. Como se houvesse guardado, também em segredo e por tantos anos, a
mandioca, as vísceras, a carne, o peixe, a chicória, a cebola, a cebolinha, o
jerimum e “de um tudo” para que outra vez eu os trouxessem enrolados em sacos
de cimento vendidos do avesso para casa de papai e mamãe.
Se o descubro assim,
sublime e bem cuidado, em Caxixi, Ganzá, Agogô de Castanha, Matraca, Maracá e
Tambor, então posso revelar o segredo que guardei em silenciosa clave musical
por tanto tempo.
O segredo se referia
ao vizinho de frente do Mercado Central, a Fortaleza de São José de Macapá. Na
verdade, ao contraste entre o Mercado Central e a Fortaleza de São José de
Macapá.
A Fortaleza é uma
edificação militar construída pelo império europeu para proteger império
europeu e a Colônia do império europeu.
A Fortaleza,
contou-me o segredo, tem as pedras suadas do Rio Pedreira - Forte em dor - os
indígenas capturados - Forte em dor - os escravos negros comprados - Forte em
dor - todas as peças de artilharia - Forte em dor - e ganhou forma em 18 anos
- Forte, muito Forte em dor.
A Fortaleza foi,
para meu segredo, um Forte guarda dor.
O Mercado Central,
ao contrário, contou-me o segredo, banhou-se de Amazonas desde o berço. Rezou
terço. Deitou o perfume de bruços e aos soluços, em compasso e traço, fez-se
homem e mulher, menino e menina. O Mercado Central se faz Macapá.
O Mercado Central,
também me contou o segredo, nos fez voar o mais límpido e solene voo-urubu, e então
plainamos todos em Tamuatás, Tucunarés, Pirarucus ao leite da mandioca, erva
jambu.
O Mercado Central,
definiu o segredo, não foi içado Forte ou em dor, e por isso nos construiu livres
e em igualdade no mais absoluto Sabor-Sereno-Macapá.
A existência
própria do Mercado Central foi a de devolver ao Rio Pedreira as pedras suadas
do Rio Pedreira. Aos indígenas capturados, seus cantos. Aos escravos negros
comprados, o encanto dos passos livres.
O Mercado Central
se fez em nós.
E sem nenhum
combate.
..............................................................
SELFIE
Tenho muitos vícios. O mais imperfeito deles é o
vício de fumar. O mais perigoso é o vício de amar. Imperfeitos ou perigosos os
vícios me impõem a condição de servo.
Do primeiro – fumar - não raras vezes tentei me
libertar, mas ainda sem êxito. Do segundo – amar - dado ao elevado grau de
risco já estou serenamente livre. É que amar mata.
Segundo minhas observações, quem traga o amor como eu trago é candidatíssimo ao
óbito precoce. Não há pulmão que resista a um grande amor. Melhor fumar. Fumar
salva vidas.
Há outro vício. Desse, tal como o vício de amar, também
permaneço liberto, ainda bem. É o vício da Selfie.
Criei
antipatia até pela palavra Selfie. E
olhe que amo as palavras. Só a elas, inclusive.
Mas Selfie
é um estrangeirismo que faz com que quem o pronuncie passe representar o mais
imponente falso-culto. Aliás, falso-culto é uma palavra composta por mim para
identificar a exata futilidade. Em outras palavras, é um termo criado para me
proteger dos cínicos.
Selfie é, portanto,
um autorretrato (muitas vezes pode não ser um autorretrato, mas um multirretrato)
onde se irradia a vaidade própria, próprio da própria desconfiança.
A Selfie
nunca será um retrato. O retrato nasce em outros olhos e isso é suficiente para
distanciá-lo da Selfie. A Selfie é um verdadeiro funk ostentação.
Seja como for, e por isso mesmo, eu nunca deparei
com uma única Selfie triste. Uma Selfie que chore. Uma Selfie saudade. Selfie volte pra mim. Selfie
que perdeu. Selfie dúvida.
Só encontro Selfie
vencedor. Selfie Sorridente. Selfie Forte. Selfie Valente. Selfie Próspero.
Selfie Feliz.
Ontem estive com o rio. Expliquei quanto a meu
vício de fumar e de como isso tem salvado a minha vida. Ele confidenciou que
também inala do mesmo vício e por essa simples razão ainda existe. Depois, respirou
fundo, e molhando em suas águas o vício do amor na modalidade cem metros rasos
vaticinou: “Ouça Ruben, o amor não passa
de um traço feito a lápis na cortina d’água”. E olha, de amor e de água o
Amazonas entende mesmo. E muito.
Já quanto ao vício da Selfie, ele – o rio - acha tudo muito natural. Justifica, ensaiando,
que o aperto de pés, por exemplo, é mais sagrado do que o aperto de mãos. E que
nós só assistimos os apertos de mãos porque o aperto de pés só se revela na volúpia
de nossas águas mais profundas e, por isso, é invisível. Nada mais invisível do
que o aperto de pés, segundo o rio.
Quando comprimimos os pés descalços em outros pés
descalços, disse-me o louco do rio, embora ninguém veja, ninguém saiba, caminhamos
exatamente para a invisibilidade dos destinos paridos no vício que mata, mas
sem o qual não se vive. O tal do vício de amar.
Para o rio, esse excêntrico excessivo, seja a selfie auto ou multi, é palavra do
gênero feminino e só por isso estaria justificada sua existência e proliferação.
Para ele, a Selfie é e sempre será um
aperto de pés. O que a selfie revela
mesmo ninguém vê porque não é pra ver mesmo. É invisível mesmo. Pés
entrelaçados. Palmas enlouquecidas. Dedos em riso.
A Selfie
é assim. Só anota que os pés existem, mas o aperto de pés é caligrafia que só
se decifra no vício de amar.
Despedi-me do rio e ri. Ri muito. Costumo rir dos
rios. Diz-me o rio que o vício de amar é
efêmero e quer me fazer crer nele e em Selfie.
Ora veja!
Arranquei um cigarro do bolso esquerdo, acendi a
luz que me salva a vida e segui. Simplesmente segui.
Wagner Gomes, advogado e amigo |
RUBEN BEMERGUY
Sou o único destinatário das coisas que escrevo e
também das que não escrevo. As que escrevo, não leio. As que não escrevo, dedico
tempo juntando letras imaginárias aqui e acolá, até ter ideia clara das cores
predominantes em cada uma delas. Depois as rasgo. Elas gotejam como padecessem
de desmedida dor moral. Sinto que elas – as letras – não perdoam minha
inclemência, mas é assim que omito de mim e sofro um pouco menos exatamente por
não me conhecer, gravado ou não em papel.
Ignoro-me não por pesar, mas por amor. Meu grau de
proximidade comigo, certo sentimento de tolerância mesmo, está na precisa distância
que de mim estabeleço.
Não sei de meus olhos ou do revestimento de minha
pele, acuso apenas a noção de minhas unhas. Delas, não posso prescindir. Não só
por ser rasgador de letras, mas também pela necessidade de laminar
frequentemente grande porção da vida.
Assim, dela - da vida - obstinadamente, dilacero de um tudo. De mim sobra pouco. Esse
resto trago empilhado na zona mais afiada das unhas, como se prestes a feri-lo
ao mais tímido indício de remorso por ainda conservar algo de mim.
Compareço ao meu encontro a cada segundo. Arrumo e
desarrumo na prateleira do vento isso tudo e depois, freneticamente, torno ao
arquivo morto. Em seguida, volto ao ponto de partida. Sou assim.
Só não toco no segredo. Tenho medo. Ele... a
ninguém deve ser dito. Muito menos a mim. Fico a imaginar se o descubro
descalço, e se seus pés decidem percorrer meu tronco em tênue intensidade? Se o
descubro sem túnica e se seu corpo é bordado e se me põe em cerco militar e se minha
infantaria a ele adere e se ele me escraviza? Se o descubro a articular outros
segredos em meus ouvidos pastos? Se o descubro Cacique e se ele, em círculos, canta-me
e se seu arco arremessa uma flecha e se a flecha me vaza e se, por um lapso, eu
gozar? Não. Nesse segredo não toco. Tenho medo.
O medo sincero é a mais gentil e sublime virtude
de qualquer rasgador de letras. Mas não basta ter medo. É preciso também falar
baixo. Bem baixinho pra não excitar o segredo. Em mim ele dorme, mas tem sono
leve e isso é um risco permanente. Minha melhor porção o embala e vigia sem
tréguas.
Sob o ângulo da vida, pareço louco. Ela – a vida –
teima em nunca resignar-se a arquitetura dos que laceram letras. Daí me quer em
holocausto. Contra mim, imputa falsamente versos que nunca fiz, músicas que
jamais ouvi, danças que nunca passei, beijos que não guardei.
Eu, na quietude da mais serena convicção, nada
faço. Se o segredo dorme, basta-me.
À vida, apenas digo: não me doce, nem me salgue. Me alme.
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Ao centro, o pai de Ruben Sr. Mair Naftaly e outros familiares |
PALÁCIO DA
MORA
OU SYLVYA,
COM DOIS ÍPSILONS
ou
ESTUDO DE
CASO.
Ruben
Bemerguy
Nenhum amor
é igual a outro. Cada amor ordena uma ciência própria. Por isso o amor não se
decora. Só se decora a tabuada. A poesia, como amor, também não se decora.
Poesia se memoriza, especialmente se as letras têm o perfume de Macapá. Aprendi
isso ainda menino.
Naquela
época, e mesmo despertando uma adolescência febril, eu vigiava meus amores de
longe. Tinha muito medo que eles soubessem de meu amor. Escondido de meus
amores eu era como um córrego pequeno debaixo das ruas de Macapá. Às vezes eu também
era poço. Às vezes era mato.
Essa
estética de vida me impunha cultivar a imaginação na imaginação. Exercitei por
muito tempo muitas imaginações na casa de banho lá de casa. Meus amores nunca
souberam ou saberão disso. Mas eu e meus amores ausentes produzimos sessões
cinematográficas na casa de banho lá de casa.
Eu tinha, portanto,
como se vê, um capítulo de vida a ser estilhaçado. Um castiçal a vela fundeado,
indigente das ventanias e era essa minha parte náufraga pronta a submergir e ser
dilacerada. A candura da casa de banho já era um flagelo desditoso demais para
mim. Assim, exatamente assim, fadado a cilhar, em flexão deslizei nos seios da
cidade lamparinando úmidos orifícios.
Dei, então,
com o Palácio da Moral. O Palácio da Moral era um sobrado acanhado
em que bacharéis e noviços se equivaliam. É que nesses ambientes solenes e castiços
o níquel tem a capacidade da equidade, antes e depois da guerra. Desse jeito todos
mantinham honrado renome no Palácio da
Moral.
Tudo que se
via por lá era feito em pranchas de madeira bruta e sem nenhum tratamento. Essa
constatação nunca diminuiu a opulência daquela Corte de vida.
Embaixo do
sobrado, um botequim. No botequim, o balcão em eloquente desasseio e nem por
isso menos frequentado por cotovelos cativos e reverentes a religiosidade
daquele lar. Atrás do balcão uma prateleira que acondicionava a ruma de
garrafas de bebidas destiladas. No Palácio da Moral eu vi Rum, cachaça, vodka,
cinzano, Martini, Macieira. Ao lado da prateleira uma geladeira para as
cervejas e que, de resto, também agasalhava o Flip Guaraná, Grapette, Guarasuco
e Larasuco. Isso é tudo o que ainda lembro.
Por curioso
que pareça, no Palácio da Moral, o
Seu Artur, dono do Palácio e do Botequim, mantinha também um alguidar com chiclete Ping Pong, Ploc, Menta e Jujuba.
Ali no Palácio da Moral também se
bebia o Ki-Suco de groselha.
Toda a
administração e operação do Botequim do Palácio
da Moral era de responsabilidade do Seu Artur. Não havia um único serviçal.
Por isso era um Palácio. Palácio verdadeiro.
Me esgueirei
muitas vezes ao entorno do Palácio da
Moral. Queria ser voluntariamente abduzido para o interior daquela nave mãe
e conhecer suas entidades extraterrestes. Um contato imediato, digamos assim, e
adeus casa de banho lá de casa. Ela – a casa de banho - que se fosse para as
memórias de agora.
Foi assim
que armazenei toda minha confiança naquela noite. Atravessei corajosamente para
o outro lado da lua. Meu bem jurídico mais bem tutelado – o castiçal - entretanto,
não correspondia ao meu destemor. Senti a musculatura do meu bem jurídico mais
bem tutelado se contrair tanto que parecia não acusar um único centímetro de
existência. Temi muito por meu castiçal. Seria, sinceramente, uma obscenidade
desaparecer do lugar onde se obrigava estar naquela noite de confiança. Se isso
se concretizasse mesmo eu decidiria por fazê-lo voar aos pedaços sem recrutar
nenhum de seus fragmentos.
Deitei,
assim, o pé direito no Palácio da Moral. Aprendi com a vovó que entrar com o pé
direito em ambientes suntuosos, onde importantes decisões serão tomadas, evita
agouros. Até hoje repito escrupulosamente esse ritual quando entro, por
exemplo, em um Parlamento ou na sede de um Tribunal.
Nem bem
entrei no Palácio da Moral e Sylvya se aproximou. “Sylvya com dois ípsilons”, ela logo se apresentou e me advertiu: “Sylvya, Sylvya com dois ípsilons”. Eu
quis gritar socorro, mas era tarde demais. Toda a arquitetura de meus planos de
aproximação foi por água abaixo pela só presença de Sylvya, Sylvya com dois
ípisilons. Foram dias em vão aqueles em que ensaiei letra a letra um texto de
sedução.
Senti o
castiçal desacomodar como se redimindo, tão logo fotografei o vestido branco de
Sylvya com dois ípisilons. Unhas severamente vermelhas, tez e dentes cor de
leite. O contorno do rosto feito uma maçã com ossinhos malares mais agudos e
olhos decididamente orientais. Não cultivei mais nenhuma dúvida: eu havia
penetrado no Palácio da Moral.
Sylvya com
dois ípisilons perguntou se eu poderia oferecer um drink. Palavra dela: drink.
Assenti com a cabeça e uma dose de Cinzano, gelo e limão, pousou no balcão do
botequim do Palácio da Moral. Sylvya com dois ípisilons me disse que Cinzano era
bebida digestiva. Em pouco tempo Sylvya com dois ípisilons consumiu mais outras
duas doses. Desassosseguei por meus poucos níqueis e também pelas consequências
da bebida digestiva de Sylvya com dois ípisilons.
Sylvya com
dois ípisilons sugeriu que subíssemos a seu quarto – expressão de Sylvia:
quarto – que ficava nos altos do botequim do Palácio da Moral. Antes, porém,
entreguei obrigatoriamente alguns níqueis a Seu Artur em troca das doses de
Cinzano e pela estadia da hora no quarto de Sylvya com dois ípisilons.
Minhas
pernas sacudiam o corpo inteiro e ainda assim, curiosamente, o castiçal içara a
âncora produzindo em mim um apressado pé de vento/vela.
O quarto,
pequenino mesmo, era de uma iluminação quase mulata. Eu, pálido, dava meus
primeiros passos naquela espaçonave de assoalho desobscurecido por frestas de
luzes que disponibilizavam assistir o botequim do Palácio da Moral.
Sem nenhuma
cerimônia, Sylvya com dois ípisilons me abraçou. Em vertigem, correspondi. Na
multidão de nós destilaram-se vestes sacerdotais, seja veste cristã, seja veste
judaica. O elemento pagão chamou-me à vida.
Nunca mais
retornei ao Palácio da Moral. A diplomática razão de ser do Palácio da Moral
estava cumprida. Desconfio até hoje que Seu Artur edificou aquele Palácio para
mim. Pôs lá em assobio o Flip Guaraná,
Grapette, Guarasuco, Larasuco,
chiclete Ping Pong, Ploc, Menta e Jujuba só para que um dia me fosse
possível contar essa história. História com três ípsilons.
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EXCELENTÍSSIMA (O) SENHORA (OR) DESEMBARGADORA (DOR) MEMBRO DO EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ A QUEM DISTRIBUÍDO O PRESENTE MANDADO DE SEGURANÇA.
Ayrton Diógenes Ivo Ubirajara, brasileiro, casado, pecuarista, CPF
(MF) 015.272.314-53, RG 438.729 SSP/PE, com endereço na Av. Sergipe, n. 268, Pacoval,
CEP 68.908.310, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência,
por seu advogado ao fim assinado, este com escritório profissional localizado
na Av. Cel. Ernestino Borges, n. 191, Laguinho, Macapá-AP, nos termos da
Constituição Brasileira, art. 5º, LXIX, e Lei 12.016, de 7 de agosto de 2009,
Impetrar
MANDADO DE SEGURANÇA
Com expresso pedido de medida liminar
Eis
que presentes os pressupostos que a asseguram
- Fumus
boni iuris e Periculum in mora –
Contra ato ilegal e abusivo
praticado por Sua Excelência o Secretário
(a) de Estado dos Transportes do Amapá, indicando – art. 6º da Lei
12.016, de 7 de agosto de 2009 - o ESTADO
DO AMAPÁ, como pessoa jurídica de direito público interno ao qual vinculada
à autoridade coatora em razão dos fatos e do direito adiante expostos com sinceridade:
Muito
se diz, e não sem alguma razão, que o Brasil é um país de assustadora produção
legislativa. São tantas leis que chego a sentir compaixão dos que com elas
lidam. Pensando assim, apiedo-me de mim.
Por
mais que me devote às leis, há sempre um preceito desconhecido e com o qual me
deparo só ao final de minhas raras petições. É um tormento diário. Desconfio
até que não nasci para ciência do direito. Digo, talvez por sentimento de
vingança contra essa penca de leis, que em regra os espíritos das leis mais
assombram do que interpretam.
Exemplos
jorram. Veja só, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador). Soube outro
dia que na França há proibição legal em se batizar porco com o nome de
Napoleão. Uma reverência ao Imperador, como fossem os Imperadores dignos de reverência.
Especialmente se bélicos, como Bonaparte. Coitado. Pois bem. Fico eu a imaginar
acaso não houvesse proibição legal sobre o batismo de um porco. Nada contra os
porcos, só contra Imperadores, mas levá-los ao batistério parece demais. Não é comportamento
religioso ou social apropriado, penso eu.
No
Brasil a excentricidade legislativa também é larga. O Prefeito da cidade de
Bocaiúva do Sul, no Estado do Paraná, seriamente preocupado com o baixo índice
de natalidade na urbe, proibiu a venda de preservativos e anticoncepcionais. É
que a retração de nascimentos impactava seriamente os valores alcançados pelo
município a título de Fundo de Participação. A lei foi revogada. Ufa! Que
alívio. Menos uma.
Mas
justiça seja feita, existem também boas leis. Essa Lei n. 10.741, de 1º de
Outubro de 2013, que “Dispõe sobre o
Estatuto do Idoso e dá outras providências” é uma delas.
Lei legal, diriam os
mais juvenis. Lá está dito, entre outras
coisas sensatas, que “São asseguradas a prioridade
e a segurança do idoso nos procedimentos de embarque e desembarque
nos veículos do sistema de transporte coletivo”. Essa redação é
fruto de outra lei que não a originária. Essa é de 18 de dezembro de 2013 – Lei
n. 12.899.
O Seu Ayrton, autor
desse Mandado de Segurança, por ser utilitário de transporte público
coletivo fluvial, já em 2013, ao ler a lei legal respirou aliviado. Pronto!
Agora não mais aguardaria em filas quilométricas acesso aos transportes públicos,
designadamente o transporte fluvial.
Lei é lei, pelo menos
para o Seu Ayrton.
É que ele tem um
gadinho ali no município de Mazagão e, dia sim dia não, vai lá buscar leite para
vender nas padarias de Macapá. É um ganha pão muito duro, inda mais para um
homem de 74 anos de idade. Olhe, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador),
para chegar a Mazagão tem que atravessar o rio Matapi por meio de balsa. A
balsa vai de um lado para outro do rio. A balsa é lenta e a espera áspera faz
padecer.
Balsa é um jangadão de ferro. Aliás, embora as
jangadas sejam embarcações charmosas, até mote de inspiração a Dorival Caymmi –
Suíte do Pescador - as balsas, como
as leis citadas, por exemplo, têm um “Q” de assustadoras.
Sempre mal conservadas,
as balsas parecem indiferentes aos que a habitam em travessia. As balsas não têm
ternura. As jangadas têm. Mas não se atravessa o rio Matapi de jangada. Fazer o
quê? O Seu Ayrton tem que atravessar o rio. Ele e seu carrinho. Levar a ração para
o gado que é paro ele dar o leite. O gado dá o leite mesmo sem precisar
atravessar o rio, pois a natureza é perfeita. Mas o leite precisa atravessar o rio no colo
do Seu Ayrton que precisa da balsa para chegar a Macapá que é para chegar à
padaria da esquina, onde o leite é entregue para apurar o sustento. Fazer o quê?
Tem também, Senhora Desembargadora
(Desembargador), um agravante nisso tudo. O Seu Ayrton, homem de 74 anos como
já dito, mais ou menos 1m 60 cm de altura e um Índice de Massa Corporal – IMC -
que, a olhos nus, diagnostica a obesidade (afirmo isso com a fé de meu grau)
não reúne mais saúde para o aguardo das infindas horas da balsa. Isso
seguramente pode testemunhar o rio Matapi. Como se vê, a idade já seria
suficiente a amparar o direito de Seu Ayrton, mas conhecendo-o como conheço, o
peso é que pesa mesmo.
Não se está aqui a
recriminar Seu Ayrton pela formatação corporal. Não. Nunca. Sabe-se que foi um
homem delgado e muito bonito. Olhos azuis ainda mantém. Beijo doce também. Já
fui beijado por ele. Tenho orgulho dos beijos do Seu Ayrton. Além de tudo,
brilhante militante político. Cassado pela ditadura militar e há pouco
anistiado. É meu amigo o Seu Ayrton e tenho muito amor por ele. Mas o tempo é
impiedoso. Seu Ayrton não é mais jovem, nem belo e está gordo.
O certo, Senhora
(Senhor) Desembargadora (Desembargador), é que Seu Ayrton quer exercer um
direito. Aquele que está na lei legal. Se a lei legal diz que “São asseguradas a prioridade e a segurança
do idoso nos procedimentos de embarque e desembarque nos veículos
do sistema de transporte coletivo”, então o Seu Ayrton quer exercer esse direito.
Jamais por emulação,
Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador), ou para conspirar contra
aflição dos outros mais jovens e que também suportam da balsa. Isso não. É que,
de verdade, a idade pesa, além, como fixado, do peso do Seu Ayrton. Acho que
foi isso que a lei legal descortinou e por isso existe. Esse é o espírito da
lei legal. Lei que não assusta.
Me disse o Seu Ayrton
que depois dos 70 anos a energia é escassa. As pernas não custam a cansar. O
sol menos ilumina do que castiga. A chuva tem sensação de tremor e pode indicar
vitamina C e cama. Não dá mais para
esperar a longa espera da balsa. A pressa é priorizar o idoso mesmo.
Foi assim que o Seu
Ayrton dirigiu-se a Secretaria de Estado de Transporte do Amapá – SETRAP. Em
requerimento, narrou sua idade e a
necessidade de prioridade inserta na lei legal. Isso se deu em 11 de dezembro de 2013. Até hoje nada
de resposta. Nadica de nada. Nem um nãozinho Senhora (Senhor) Desembargadora
(Desembargador). Nada. Silêncio absoluto. E olhe, Senhora (Senhor)
Desembargadora (Desembargador), que o Brasil tem outras leis legais como aquela
que faculta ao cidadão o direito de petição aos poderes públicos. Isso está na
Constituição da República. E a resposta também é obrigatória: 15 dias.
Mas nada de resposta.
Estaria o Estado do Amapá tão ocupado a ponto de sequer responder a um simples
requerimento administrativo? Acho que sim.
De nada adiantam as
leis legais, Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador), se o poder
público não as observa e é o primeiro a ignorá-las às favas com as leis legais.
Parece que lei é coisa de academia e lá deve ser segregada. Afinal, qual a
importância em se responder o requerimento de um cidadão? Inda mais idoso e
gordo!
Como se vê, melhor do
que leis legais seriam administradores legais, competentes, respeitosos. Gente
com compreensão democrática. Gente. Gente. Isso bastaria.
O Amapá vive tempos
difíceis. Acho que alguém atingiu a cabeça dele com uma coronhada, e o Estado
ainda não recobrou a consciência. A onda de violência aqui está assustando feito
a lei do Napoleão- aquela do porco - ou de Bocaiúva do Sul
– aquela do Fundo de Participação dos Municípios.
Um Estado assim,
desfalecido, custa caro para o cidadão, Senhora (Senhor) Desembargadora
(Desembargador). Custa caro para o vendedor de ração. Custa caro para o gado. Custa caro para o rio Matapi. Custa caro para a balsa e para o Seu Ayrton e
também custa caro para mim. Sinto-me impotente diante de tanta inabilidade ou
maldade administrativa e o máximo que posso fazer é aforar essa ou outra ação
qualquer. Mesmo otimista em solucionar a agrura do Seu Ayrton, isso é pouco.
Sinto-me impotente mesmo e dói, dói porque amo o Amapá e o Seu Ayrton.
Parece bruxaria! Disse
isso ao Seu Ayrton, mas Seu Ayrton não crê em bruxas. Eu creio. E acho que elas
são responsáveis pela ruína da minha terra. Aliás, tenho certeza. Só o fato de
ter de ajuizar um Mandado de Segurança para a defesa de um direito tão trivial
é indicativo de que tem algo de muito errado com o meu Amapá. Valha-nos D’us.
Exclusive minha lamúria,
Senhora (Senhor) Desembargadora (Desembargador). O certo é que Seu Ayrton
protocolizou o requerimento junto à Secretaria de Estado de Transporte do Amapá
– SETRAP, para acessar prioridade no transporte público fluvial em 11 de
dezembro de 2013. Já se vão mais de 120 dias.
Ainda assim sugeri ao
Seu Ayrton a via do Mandado de Segurança para alcançar o direito. De início ele
foi contra. Seu Ayrton é homem letrado. Acusou a decadência. É que ele sabe que
esse tipo de ação só se convalida em prazo não superior a 120 dias a partir do
ato ilegal e abusivo. Discordei. Disse a ele que estávamos tratando de um ato omissivo por parte da administração
e, por isso, contínuo, não se
operando a decadência.
Ele, mesmo desconfiado,
ainda sugerindo uma ação ordinária, acatou meu parecer. Imagino que se Vossa
Excelência aderir à tese de Seu Ayrton e indeferir liminarmente esse Mandado de
Segurança, minha imagem profissional ficará arranhada, arranhadíssima junto ao
Seu Ayrton. Estou frito! Porém tenho fé na tese. Em frente! Seu Ayrton não é
advogado, mas eu sou e ponto final.
Também falamos sobre o fumus boni iuris, a tal fumaça do bom
direito. Aqui não divergimos. O fogo do direito arde a partir da própria lei
legal - Lei n. 10.741, de 1º de Outubro de 2013. Quanto ao
periculum in mora, Seu Ayrton diz que
ele – o perigo da demora - está em sua alma
que, embora plena, não aguenta mais esperar horas a fio o transporte público
fluvial de intermináveis filas.
Eu,
assumindo profunda ignorância álmica,
sinceramente, nem sabia que as almas cansavam assim. Disse-me ele também que a
prioridade imediata no transporte público tem semente no próprio tempo de vida e que o tempo de vida não pode esperar. Com o tempo, o tempo de vida tem pressa,
segundo ele. Discordei na hora, embora entenda o Seu Ayrton.
Ele
vê o mundo com as cores de Frida Kahlo.
Ouve o mundo na voz de Billie Holiday
e o cheira como fosse um maço de Patchouli.
Só por isso o entendo e o perdoo. Só por isso me entrego aos beijos do Seu
Ayrton.
Embora
tudo, estamos falando de uma petição. Obrigo-me rigorosamente solene. Frio. Indiferente
à alma. Como posso falar de alma em uma petição judicial. Petição não é poema.
Ainda bem. Fosse e eu estaria falido. Não rimo nem mesmo meus gestos. Além,
como também falar do tempo de vida em uma petição! Não cabe. Seria objeto de
chacota. Ah! Esse Seu Ayrton sai com cada uma...
Desconsiderei
tudo o que disse o Seu Ayrton e pedi a ele que entendesse isso. A petição é
solene. Cerimonial. Tem que infundir respeito. Nela só cabem palavras
elaboradas. Palavras silenciosas e que não respondem, tal como bem faz a
autoridade coatora. Os escaninhos forenses não aceitam ruído algum. Portanto, nada de falar de alma aqui. Outra
vez contrariado, depois do ralho, aquiesceu.
Rechaçando
as sugestões do Seu Ayrton, digo eu que o periculum
in mora está na lógica do presente e na dúvida existencial futura. É que
quando se alcança a idade septuagenária, mesmo que a cor dos olhos permaneça a
mesma, o corpo é outro. Às vezes um desconhecido. Não suporta mais os
movimentos frenéticos ou a espera infinda de locomoção fluvial ou outro modal.
O
perigo está na saúde e na qualidade de vida do idoso. Não que, acaso não
concedida a liminar, vá o Seu Ayrton abandonar o gado e deixar de comparecer
com a ração. Não que não vá atravessar o rio na balsa fria e indiferente ao
tempo do Seu Ayrton. Não que não vá trazer o leite ou deixá-lo de entregar na
padaria da esquina. Não. Nada disso. A vida às vezes é assim. Ele precisa
sobreviver e sobreviverá. Mesmo que o Estado, embora novo, jaza. Mas o periculum in mora urge no respeito
urgente que tem o Estado de proteger o cidadão idoso a partir de normas por ele
mesmo – Estado – produzidas. O perigo é a negação do sempre imediato direito do
idoso.
As
Provas Necessárias ao Mandado de Segurança estão circunscritas à idade do Seu
Ayrton. Se for idoso, na acepção da lei, basta deitar a vista em seus mais de
60 anos de idade e está ai o fato aderido ao direito. Tem também, talvez por
preciosismo, a demonstração de possuir um terreninho em sítio em que é necessária
a travessia sobre o rio Matapi, travessia essa que, como notório, em sede de
transporte público, só se faz de balsa.
Como
se pode observar pela Carteira de Identidade do Impetrante ele conta hoje com
mais de 60 (sessenta) anos de idade. A Lei n. 10.741, de 1º de Outubro de 2013 assegura “a prioridade
e a segurança do idoso nos procedimentos de embarque e desembarque
nos veículos do sistema de transporte coletivo”
a partir dos 60 (sessenta) anos.
Ante
ao francamente exposto e invocando vênia pela confissão de amor acima fixada, REQUER a concessão de medida liminar,
mesmo antes de ouvida a autoridade coatora, para o fim de assegurar ao Seu Ayrton prioridade no procedimento de embarque e
desembarque no transporte coletivo fluvial – balsa – sobre o rio Matapi. Transporte
esse de responsabilidade do Estado do Amapá e administrado pela Secretaria de
Estado dos Transportes, determinando que se expeça em prazo não superior a 24 h
(vinte e quatro horas), autorização que faculte ao Impetrante frequentar fila, acaso existente, de prioridade de atendimento
permitindo o acesso, inclusive do automóvel
por ele conduzido no interior do veículo
fluvial, de modo a transportá-los de um lado a outro lado do rio Matapi,
nos exatos termos da lei legal.
A
Notificação da autoridade coatora, Secretario (a) de Estado dos
Transportes, enviando-lhe a segunda via apresentada com as
respectivas cópias documentais, a fim de que, se desejar, no prazo de 10 (dez)
dias preste informações ao juízo.
Que se
dê ciência do feito ao Estado do Amapá, órgão de representação judicial da
pessoa jurídica interessada, enviando-lhe cópia da petição inicial para que, se
assim interessar, ingresse no feito;
A
Notificação do Ministério Público para que oficie no feito;
Em
mérito, a imputação à autoridade coatora nesta ação – Secretario
(a) de Estado dos Transportes do Amapá- do ato ilegal praticado na atividade
de seu munus público, assegurando ao Seu Ayrton
prioridade no procedimento de embarque e desembarque no transporte público coletivo
fluvial – balsa – sobre o rio Matapi, pelas razões expostas.
À causa o valor de R$ 1.000,00 (mil reais).
São os termos em que
Pede e espera deferimento.
Macapá-AP, 15 de abril de 2014
p.p Ruben Bemerguy
OAB 192 AP
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