Carlos Kopes, diferente de muitos autores, busca a discrição, um certo isolamento estratégico e até mesmo publica parcimoniosamente neste momento em que a autopublicação é uma realidade no mercado editorial. Mas, engana-se quem pensa que sua produção não esteja acontecendo, no seu próprio ritmo, gestada com cautela e sem a pressa dos que mal alinhavam um pequeno texto e se apressam imediatamente a publicá-lo. Num tempo dominado pelos relampejos dos flashs, pelos cliques, pela avalanche de redes sociais que têm o poder de dar visibilidade instantânea a qualquer um que consiga chamar atenção, Kopes se mantém ausente desse torvelinho e dedicado aos seus afazeres na magistratura e aos encantamentos que a leitura seletiva é capaz de proporcionar a quem se dispõe a desvendar as boas páginas da literatura universal.
É com imenso prazer que apresentamos alguns textos do autor para apreciação dos nossos leitores.
(Paulo Tarso Barros)
Kopes e sua esposa a prof. Tânia Ataíde |
RELATOS
MÍNIMOS
CRÔNICA DA VIDA E DOS INFORTÚNIOS DE
ELIZABETH FLORES, A DONA LILI, REGISTRADA POR UM OBSERVADOR ATENTO E IMPARCIAL
Tudo que ela queria era fazer cessar o
sofrimento, mergulhar no Olvido. Esquecer-se de si e do fardo que a vida lhe
impusera. E por isso bebia, bebia.
Quando Olvido Amâncio de Jesus veio
bater à porta, finalmente divorciado, era tarde: o fígado dela já havia sido
corroído pela cirrose.
. . . . . .
Atravessando a rua naquela manhã
luminosa de setembro, Domenicus Weistenhoff ainda não exibia os sintomas da
doença que iria matá-lo poucos meses depois.
Isso, porém, deixaria de ter qualquer
importância em alguns minutos. Porque a chuva de meteoros que passava naquele
momento nas proximidades de Proteus e Nereida era massiva o bastante para
deslocar infinitesimalmente Plutão, então cruzando a órbita de Netuno; e daí
que aquele sedã que deveria ter dobrado à direita na esquina anterior agora
seguia em alta velocidade direto para a faixa de pedestres.
Kopes, Paulo Tarso e Herbert Emanuel |
. . . . . .
Insuficiência peniana. Depois de um
longo e arrastado processo, com perícias e oitiva de especialistas, fora esse o
cruel veredito. E ele, agora, deveria submeter-se a um período probatório de um
ano, no qual estava obrigado a aumentar o comprimento e o diâmetro do órgão,
sob pena de ver dissolvido seu casamento.
Seis meses haviam se passado, entre
dores excruciantes, causadas ora pelos instrumentos introduzidos para aumentar
o volume dos corpos cavernosos, ora pelos pesos que, amarrados ao pênis,
deveriam alongá-lo. Muitas vezes havia pensado em desistir. Mas agora ele
estava em Málaga.
A Universidade de Málaga noticiara o
exitoso implante do primeiro pênis biônico, um construto feito com partes
mecânicas e tecido cultivado em laboratório, ereto ao toque de um botão. E
agora passaria a fazer cirurgias em outras pessoas que, como o primeiro
paciente, haviam perdido por completo o órgão.
Ali no quarto de hotel estava tudo que
ele precisava. O telefone da emergência médica local; o anestésico; o
torniquete; a faca afiada. Executadas as etapas com precisão, foi perdendo a
consciência com um sorriso, sonhando com um potente despertar, embalado pela
voz cada vez mais longínqua na TV...
Notícia urgente. A Universidade de
Málaga informou serem absolutamente inverídicas as notícias acerca da criação
de um pênis biônico O porta-voz da instituição criticou veementemente as
pessoas que teriam divulgado esses boatos fantasiosos [...]
. . . . . .
Kopes, à esquerda da desembargadora Sulei Pini e seus colegas do Tribunal de Justiça do Amapá |
O vento sopra em meu rosto e desalinha
meus cabelos; eu abro os braços e sou por ele abraçado, como se flutuasse. Um
brilho no canto do olho chama minha atenção e levanto um pouco a cabeça, a
tempo de perceber os primeiros raios do sol, que vem surgindo à esquerda entre
os prédios e lentamente tingindo tudo de dourado. A sensação de leveza e
liberdade é indescritível.
Diante de uma beleza assim um homem se
sente pleno, preciso admitir. Sim, senhor, todo mundo deveria experimentar essa
sensação um dia, contemplar essa visão tendo o corpo simultaneamente refrescado
pelo vento e aquecido pelo sol nascente. Sinto que posso deixar tudo de lado,
que nenhum problema é insolúvel ou insuportável. Quero voltar para casa e
recomeçar já; mas já as janelas passam por mim com velocidade crescente, e já a
calçada lá embaixo se aproxima e posso distinguir suas rachaduras, será aquilo
uma joani...
. . . . . .
Essa
é uma acusação absurda, disse a madre superiora. E realmente parecia. Mas fato
era que, tendo chegado ao convento a septuagésima noviça, naquela noite, a da
sétima lua cheia do perigeu, uivos puderam ser ouvidos à distância no deserto
circundante, onde nunca se tivera notícia de lobos; e no dia seguinte,
murmurava-se, alguns catres haviam amanhecido intocados e outros com marcas de
dois corpos, e aquele ambiente para sempre austero fora brevemente tomado por
sorrisos.
. . . . . .
No fim da tarde, quem desce o morro
sempre avista Belarmino. Ao término da ladeira, logo após a curva, lá está ele,
o corpo apoiado na mesma arvorezinha, o olhar fixo na estrada poeirenta.
Os habitantes das redondezas já se
acostumaram àquela presença, quase parte da paisagem. Já os desavisados
espantam-se ao ver de repente aquela figura magra ali parada, o facão atado a
um lado da cintura, o embornal do outro. Alguns desses, por um momento, supõem
ver nos olhos aparentemente vidrados uma sombra de loucura; mas a sensação, se
surge, logo se desfaz, porque no rosto da estranha figura aparece um sorriso
tímido e doce ao qual até os mais empedernidos acharão difícil deixar de
corresponder.
Mesmo para os moradores mais antigos
daquele confim não há muito a dizer sobre Belarmino. Os pais morreram cedo; não
tem amigos ou parentes conhecidos; e não há vizinhos próximos ao seu pequeno
sítio. Sabe-se apenas que pesca, trabalha em sua roça de mandioca, e depois da
faina diária caminha até aquele ponto da estrada, fazendo o caminho de volta
quando escurece.
Ninguém sabe o que se passa na cabeça
do matuto, dia após dia parado ali, alheado do mundo, vendo a vida passar
naquele ponto da estrada. Alguns dizem que ele tem miolo mole; outros supõem que talvez ele apenas queira
distrair-se da solidão e não conheça outra maneira (e parte destes últimos
concede que talvez ele realmente tenha miolo mole). De qualquer modo, ele
deixou de ser novidade há muito tempo, porque nenhuma novidade sai daquele
proceder contido e invariável, naquele trecho da estrada.
Belarmino, porém, sabe muito bem o que
faz ali. Ele espera — paciente, contrito,
absorto, conforme lhe foi ordenado.
Um dia virá alguém pelo caminho. A Voz
o apontará. A Voz lhe disse o que fazer. Nesse dia, quando ele passar por ali,
Belarmino sacará seu facão e o retalhará em pedacinhos.
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INFORMAÇÕES SOBRE O AUTOR
Luiz
Carlos Kopes Brandão nasceu em Campo Grande-MS, e vive no Amapá desde 1989. É
Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá. Lançou em junho de
2016 o livro Direitos para os Animais: Rompendo Paradigmas, pela Universidade
Federal do Amapá, fruto de sua dissertação no Mestrado em Direito Ambiental e
Políticas Públicas. Seu poema Cavalo-Marinho foi publicado na Antologia do I
Festival Amapaense de Poesia (Tarso Editora/Valcan Editora, 2001); e alguns
contos e uma crônica figuram nas antologias Contos do Desejo (Editora AMB,
2012), Tudo na Mais Perfeita Ordem (Editora Kelps, 2013) e Lembranças (Editora
Kelps, 2013), organizadas pela Associação dos Magistrados do Brasil - AMB.
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