A Literatura Regional no Ensino de
Filosofia.
Comunicação proferida pelo Prof. Dr. João Wilson Savino Carvalho (UNIFAP), em 31 de julho de 2014 -14h30, Café Literário – Clube de Autores, Circuito Off Flip das Letras(Rj)/Abeporá das Palavras(AP), 12º Festa Internacional do Livro de Paraty – 31 de julho a 3 de agosto de 2014, em Paraty/RJ.
Introdução:
O
fundamento desta Comunicação é o Projeto de Pesquisa e Extensão “Aprendendo
Filosofia com a Literatura Regional”, desenvolvido pelo autor na Universidade
Federal do Amapá, com base na experiência de 10 anos de magistério de Filosofia
no ensino médio, no antigo Instituto de Educação do Amapá, com apoio teórico no
pensamento de Paulo Freire (2001) – a leitura da palavra como leitura do mundo;
Hans Geor Gadamer (1995) – a Filosofia como hermenêutica do sentido e a
Educação como um processo de criação de novas maneiras de compreender, de agir
e de dialogar; Mathew Lipman (1994) – a necessidade de construção de uma mentalidade
investigativa e filosófica pela exploração dos aspectos éticos e estéticos da
literatura; e Maria Cecília Mynaio (1993) – a hermenêutica-dialética como linha
metodológica que entende a metodologia como parte central na teorização, posto
que intrínseca à visão de mundo veiculada na teoria, onde o método é o próprio
processo de desenvolvimento das coisas, é o cerne do conteúdo enquanto faz a
relação dialética entre pensamento e existência.
Apesar desse referencial teórico, importa firmar
aqui que o objetivo de entender o ensino de Filosofia a partir da literatura
regional do Amapá, e não inverso, e por isso as conclusões do discurso serão estabelecidas a partir das respostas a
três questões interligadas teoricamente: o que é Filosofia? É possível ensinar
Filosofia? Por que a literatura regional?
1. A
Filosofia.
Tomando
a definição mais elementar e geral da Filosofia, que está inscrita no termo que
vem suportando o significado no pensamento ocidental há milênios, de busca
permanente de conhecimento sobre tudo o que existe (o ser), motivada pela necessidade
de entender o mundo e as coisas, inerente ao processo de humanização, feita por
meio do processo especulativo (método reflexivo-crítico), encontraríamos logo
interessantes pontos de contato com a Arte, em entre as artes, em especial, com
a Literatura, na medida em que ambas são formas de interpretação da realidade
motivadas pela exigência imperiosa que o ser humano tem de sentido, finalidade,
ou, em uma expressão mais incisiva, de se humanizar cada vez mais em processo
permanente e histórico.
Entendida
a Filosofia como busca especulativa e radical sobre o sentido do ser,
permanente e constante ao longo da história da humanidade, fatal é a implicação
com o processo de socialização e, consequentemente, com a Educação. Resume-se
esse argumento no fato de que verdadeira Filosofia não existe em abstrato, mas
tão somente inserida em uma relação dialética com o social (inter-relação
Filosofia – Educação – Sociedade), de múltiplas determinações.
De
fato, se, por um lado, a classe dominante na sociedade é que estabelece que
tipo de educação deva ser aplicada as gerações mais jovens, e no processo
educativo formal (mas também no informal) se define o entendimento do que é
Filosofia, sendo a Filosofia, em essência, um conhecimento radicalmente
crítico, sempre poderá se apresentar como elemento dissonante e rebelde, ou
intempestivo, como se refere Jules Deleuze (1992), desvendando a alienação e
explicando teoricamente o mundo, estabelecendo (por que não?) a utopia.
É bem
verdade que na mais das vezes a Filosofia é apresentada nas escolas como uma
espécie de saber místico, abstrato, árido e sem sentido, próprio para o
diletantismo dos intelectuais, dos eruditos (que não são filósofos), ou seja,
como uma anti-filosofia, por que não apresenta suas características fundamentais
de saber abrangente, radical e crítico, que só faz sentido na sociedade, em
qualquer época, em um enfrentamento permanente com a ideologia dominante. É
comum, por isso, que se naturalize como inovadora a ideia de que não se ensina
Filosofia, mas tão somente História da Filosofia, de onde o aluno poderá
desenvolver seus posicionamentos filosóficos.
Na
verdade, não é bem assim. Trata-se de ensinar a filosofar, e a História da
Filosofia, se apresentada ao aluno sem a conexão de sentido com o processo social
e histórico (como soe acontecer), resulta no velho ensino de filosofia, no qual
a atenção do aluno era mantida por meio de mecanismos de motivação extrínseca,
perdendo-se um elemento essencial da Filosofia, que, como já se disse, aparece
na sua própria denominação de “amor ao saber”.
2. A
Literatura Regional.
A literatura é a arte da palavra (bela), e que,
entre todas as artes, é a que mais se aproxima da Filosofia, por que constitui,
de toda sorte, um discurso sobre o mundo e a vida. Assim, embora a Filosofia se
apresente como um discurso pautado em um método (especulativo ou
reflexivo-crítico), e tenha como critério de verdade a coerência lógica
(positivismos) e/ou as consequências sociais e existenciais (filosofias
histórico-críticas), enquanto que a arte constitui um discurso que tem como
base o talento do artista e a sensibilidade do apreciador, e que por isso
aparentam certo distanciamento teórico, o fato é que arte é também uma relação
de conhecimento enquanto forma de interpretação da realidade, e mais, que acontece
num processo de comunicação empática e altamente eficaz, onde a vontade tem
papel fundamental.
O que chamamos aqui de literatura regional, no caso
específico deste estudo, é a produção intelectual falada ou escrita, sobre
qualquer tema literário, feita por amapaenses (logo, carregando nossas formas
próprias e singulares de ver o mundo e estabelecer sentidos), ou sobre o Amapá
e sua gente. De forma geral podemos dizer que a literatura regional é aquela
que expressa o modo de ser do povo do lugar, e constitui parte da identidade
desse povo.
3. A Aplicação na Sala de Aula.
Assim entendidos a Filosofia, a Educação e a
Literatura Regional, inter-relacionados como uma totalidade dialética, fácil se
apresenta o verdadeiro sentido de substituir o “ensino de Filosofia” pelo
“ensinar a filosofar”, a partir da aplicação da literatura regional na sala de
aula de Filosofia, em três níveis de profundidade de atuação do professor com o
conteúdo e com o material didático (textos literários regionais):
1) A literatura com mote para a reflexão filosófica.
Um exemplo no uso da crônica “O Espírito de Macapá”, de Wilson Carvalho (BISPO,
2010. Vol III; pag. 82), onde a noção filosófica de “espírito” pode ser
discutida a partir do texto, como preâmbulo para a explicação do idealismo e o
historicismo hegeliano, ou para a explicação do culturalismo no contexto da
oposição ontológica materialismo x idealismo na filosofia ocidental. Na mesma
linha: “Meu Rio é Minha Escola”, de Carla Nobre (BISPO, 2010. Vol I, pag. 76).
2) As questões da Filosofia na perspectiva da
literatura. Um exemplo no texto “Pequeno Poema de Incredulidade”, de Paulo de
Tarso (BISPO, 2010. Vol IV; pag. 106):
“Então me
sentarei sozinho e talvez me detenha por momentos a contemplar os detalhes da parede:
sombras, teias de aranha, uma rachadura, como se essas visões me conduzissem ao
infinito das coisas finitas”.
Da questão da felicidade pessoal a ser trabalhada no
ensino fundamental à questão da finitude e da temporalidade humana no
pensamento de Heiddeger (2005), a ser trabalhado em um curso de licenciatura em
Filosofia, o poema (completo) de Paulo de Tarso é perfeito. Na mesma linha:
“Paisagem Antiga”, de Alcinéa Cavalcante (MESQUITA, 2012; pag. 16), ou “Esboço
de Uma Teoria da Alma Humana”, de Sânzia Fernandes (BISPO, 2010. Vol I; pag. 43)
3) A reflexão filosófica sobre o texto literário. Um
exemplo no episódio do “Engasga”, que aparece no romance de Maria Ester Pena
Carvalho, onde os conceitos de alienação e ideologia podem ser discutidos em
profundidade, com uma demonstração verossímil (embora se trate de ficção), de
como a mitologia regional pode ser utilizada para plasmar significados absurdos
numa sociedade fechada, sem discussão ou coerência lógica. Outro exemplo de
grande fertilidade para o trabalho em sala de aula, nesse sentido, é o conto de
Fernando Canto (BISPO, 2010. Vol II, pag. 36), Brasa Balançante (Um Conto do
Tempo da Guerrilha).
Conclusão:
A literatura como um todo, mas especialmente a
literatura regional, se apresenta não apenas como um rico material para a
reflexão filosófica em sala de aula, principalmente pelos significados
relativos identidade e a formação cultural do lugar, abordados literariamente
por pessoas que conseguem “ver” esses significados por uma perspectiva divergente,
mas também por constituir uma forma de abordagem transdisciplinar de temas
extremamente caros tanto à Filosofia como à literatura, como a felicidade, os
valores ético-morais, a justiça formal (ou injustiça), ou a desigualdade
social.
Bibliografia:
BISPO, Manoel (Org.). Coletânea de Poetas,
Contistas e Cronistas do Meio do Mundo – Projeto Samaúma da Literatura
Amapaense. Vol. I (Contos). Vol. II (Poesias). Vol. III (Crônicas). Macapá :
Ed. JM, 2010.
CARVALHO, J. W. S. Temas Básicos em
Filosofia. Macapá, UNIFAP : 1993.
CARVALHO, Maria Ester Pena. As aventuras
do professor Pierre na terra tucuju”. Paraty/Rj : Selo Off Flip, 2013.
DELEUZE, Giles & GUATARI, Felix. O que
é Filosofia. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1992.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural para a Liberdade
e outros Escritos. 9.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.
HABERMAS, J. Dialética e Hermenêutica.
Porto Alegre, Ed. LPM, 1987.
KOHAN, Walter Omar, LEAL, Bernardina e
RBEIRO, Álvaro (Org.). Filosofia na Escola Pública. Petrópolis : Vozes, 2000.
LIPMAN, Mathew. A Filosofia na Sala de
Aula. São Paulo : Nova Alexandria, 1994.
MESQUITA, Cleia; BAIA, Fernanda e ALVES,
Mara (Org.). Poesia na Boca da Noite. São Leopoldo : Oikos, 2012.
MINAYO, M. C. de S. O Desafio do
Conhecimento; pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo : Hucitec‑Abrasco, 1993.
PORTELA, Eduardo – Literatura e Realidade
Nacional. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1971.
.........................................
DÁ-ME OS ÓCULOS!
(A
ÚLTIMA FALA DE FERNANDO PESSOA, MUSICADA POR SÉRGIO SALLES)
João Wilson Savino
Carvalho
Dá-me os óculos, a vista me falha
Nada mais me atrapalha
Chegou o meu fim
“O último poema”, de Sérgio Salles.
Eu
gosto de falar da arte como forma de interpretação da realidade, logo, um dos
tipos de conhecimento, ao lado da Filosofia, da Ciência, da Religião e do Mito.
É que acredito
que o artista capta a realidade de uma forma especial, aquela pautada na sensibilidade,
tendo como ferramenta o seu talento. Não estou dizendo que é uma forma melhor
ou mais eficaz que a do cientista, que se pauta na observação e tem como
instrumento o método. Dizer que algo é especial significa que é diferente, e
que merece atenção específica.
Entre
todas as artes, segundo Hersch, a que mais se aproxima da filosofia é a música.
Porém, entre as artes, eu amo a literatura, e, por morar na Filosofia, hei de
lutar até a morte para que jamais se torne profissão, tal como a política, que me
dói na alma ter-se tornado um trabalho, no sentido de meio de ganhar a vida (e
como!).
Mas a música é
arte, e entre as artes, é mais especial ainda. Talvez fosse melhor dizer
essencial.
É
fácil explicar o porquê de tão temerária afirmativa, já que estou no campo da
arte e não da ciência, e posso me expressar através da simples descrição de um
caso, sem me preocupar em teorizar sobre ele: há dias estou com uma música
martelando em minha mente. É uma composição de Sérgio Salles, feita a partir
das últimas palavras de Fernando Pessoa, e que começa assim: “Dá-me os
óculos!”.
Contam que,
quando seu pedido foi atendido, ele já estava morto. Não sei se o fato é
verdadeiro, lenda ou se ele fez literatura no último momento de sua vida. Mas
também não é esse o ponto de foco, e sim a música chamada “O último poema”.
Certamente
é, no mínimo, inusitado que um moribundo peça os óculos na hora da morte, mas a
composição adquire vida própria a partir de sua interpretação pelo próprio
autor. É que a entonação dada à frase,
no começo e no final da música, é fundamental para a compreensão do sentido da
música, e isso é impossível de ser traduzido em um texto (ou, pelo menos, não
no limite desta pequena crônica).
Para
mim a frase não é o simples lamento de um míope que não se conforma em observar
o mundo desfocado, ou o mero hábito de um velho. E é o tom da frase na música
que me diz isso.
Estaria
Fernando Pessoa querendo ler alguma coisa porque a leitura era a chave de seu
entendimento do mundo? Quereria ele marcar que sua vida era a literatura, e
isso não acabava com sua morte? Estaria ele sentindo-se no limiar de uma nova
fase e precisava de seu fiel instrumento de visão?
Quer
saber? Ouça a música, não precisa ser necessariamente na voz de seu autor, já
que um bom intérprete se mostra um grande hermeneuta dos sentimentos do compositor
quando consegue viver a música a cada interpretação.
Temos
grandes artistas no Amapá, e Sérgio Sales é um deles. Selecionado entre os
contemplados com o prêmio de literatura “Simãozinho Sonhador”, vêm se dedicando
à arte e a cultura amapaense já há algum tempo.
E em um
momento feliz de sua vida criou e nos brindou com essa música, que agora fica
martelando em minha mente, criando intrigas com outras tão bem estabelecidas
cognições sobre a vida e a morte. E isso me leva a escrever. E isso nos leva a
pensar.
“Dá-me os óculos...”
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TIPOS E DITOS INESQUECÍVEIS
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Praça Veiga Cabral antiga |
Lá conheci o doutor Waldemiro
Gomes, um dos sábios que tive oportunidade de admirar e até mesmo de me
espelhar. Seus cabelos brancos e seu jeito elegante combinavam maravilhosamente
com seus impecáveis fatos brancos e, e claro, com seu imenso saber. Acho que foi a primeira pessoa que me impressionou por ter uma cultura geral
fascinante e nem imagino como seria minha vida sem esse tipo de influência. Lembro mesmo
do primeiro dia em que começou essa admiração.
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Waldemiro Gomes - A pintura (quadro maior ao fundo) é de autoria do artista Estevão Silva |
Como o meu trabalho no
escritório inicialmente se resumia em tomar conta do espaço e anotar recados,
eu passava boa parte do meu tempo revirando as gavetas e armários, que, aliás,
eram muitos. Um dia encontrei uma estranha caixa de alumínio, no formado de uma
máquina de calcular de hoje, das grandes. Tinha cerca de meia dúzia de fileiras
de números de 0 a 10 impressos na frente, com frestas correspondentes a cada
uma delas, onde se via, pelo lado de dentro, tiras móveis com número
equivalente de furos, também numerados da mesma forma. Ao lado, encaixado em um
pequeno suporte, algo que tinha o formato de um lápis, também de alumínio, e
que terminava numa ponta fina que, evidentemente, servia para movimentar as
tiras de furos. E, por fim, pasmem! Cada vez que se movia as tiras corrediças
com o lápis de metal, número apareciam por um orifício mais ou menos do tamanho
de um confete. Que mistério!
Parecia que meu pai tinha custado bem mais tempo para chegar naquele
dia, e eu não deixei sequer ele chegar direito.
- Pai, pai, que é isso?
- Ah! Isso? Sei lá... Faz
tanto tempo... Acho que foi o Silva que deixou aí, de garantia por um serviço e
nunca mais apareceu para pagar... Com certeza não quer mais. Pegou o objeto,
bolou rapidamente nas mãos e concluiu: bom, uma coisa é certa, é uma máquina.
- E pra que serve? Como
funciona? O senhor sabe? Sabe, pai?
- Ah! Aí tu vais ter que
esperar o doutor Waldemiro aparecer aqui... Ele, com certeza, sabe...
Eu, claro, esperei. Nessa
época eu ainda não sabia que ele trabalhava no museu que funcionava ao lado do
Hotel Macapá, senão tinha ido lá, e descoberto logo um mundo inteiro de
curiosidades que fariam a felicidade de qualquer moleque da minha idade. Mas,
na manhã seguinte (eu estudava a tarde), ele apareceu:
- Isto? Ah! É uma máquina de
calcular...
- E como funciona, doutor?
- Assim. É tão simples. Basta
inserir este pino no furo e puxar pra baixo... Se você quer somar 126 com 234,
basta colocar o pino nos furos correspondentes e pronto, aqui aparece o
resultado. Bom, a essa altura o leitor deve estar pensando: Ora, mas isso é a
mesma coisa que aquelas máquinas de calcular de brinquedo, porém feitas em
papelão e plástico. Só que isso não existia na década de sessenta. Nessa época,
os brinquedos eram o pião de madeira, aros velhos de bicicleta e carrinhos de
lata de leite ninho.
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Máquina de escrever Royal |
Fiquei fascinado com a máquina
e com meu novo poder: eu, que antes ficava envaidecido quando as pessoas
paravam na janela do escritório para me olhar usando aquela enorme máquina de
datilografia “Royal”, agora era capaz de somar com incrível rapidez, usando
aquela maquininha. Mais dois anos, e eu me tornaria capaz de entender o seu
funcionamento. Mas o melhor de tudo nesse episódio foi a posterior descoberta
do museu dirigido pelo doutor Waldemiro Gomes. Ali realmente descobri coisas
maravilhosas. Foi uma época boa, como é toda infância, só pelo fato de ser o
alvorecer da vida, com todas as suas potencialidades.
Mas há algo que ficou na minha
memória, não pelos tipos inesquecíveis que tive oportunidade de conhecer, não
pelo saber que tive contato, mas pelo que significaram para a minha vida: os
ditos inesquecíveis de alguns desses tipos inesquecíveis.
Meu pai, por exemplo, encerrava
qualquer discussão sobre politica afirmando peremptoriamente: Ditadura? De
direita, da esquerda, do proletariado ou da pqp, eu sou contra e pronto! E quando passávamos situações de aperto
financeiro, como quando meu pai perdeu uma imensa fatia de seu patrimônio por
conta da doença de um irmão meu, que passou um ano doente, foi se tratar no Rio
de Janeiro, mas no final ficou bom, ele resumiu serenamente toda a questão em
um dito que se tornou norma de vida para mim. Jamais esquecerei o que ele disse
quando perguntei como ele conseguia manter o bom humor diante duma situação tão
difícil: Vão-se os anéis, mas ficam os dedos!
Esse dito era o suprassumo da compreensão da diferença entre essência e
aparência.
Havia um especialmente
interessante que ele usava quando alguém tentava mascarar uma situação
evidentemente ilegal ou imoral, para torna-la mais aceitável: Isso aí é tentar
tapar o sol com peneira! Jurei que jamais faria isso, principalmente para mim
mesmo, e acho que valeu a pena.
Meu pai era conhecido por ser
eternamente contra o governo e, mesmo assim, em um Território Federal onde o
governante sempre agia como o dono de um feudo, conseguia ter um número imenso
de amigos. Aliás, um de seus ditos favoritos era: “mais vale um amigo na praça
do que dinheiro em caixa”. E de fato, não foi uma e nem duas as vezes que o vi
trabalhar de graça para um amigo, e fora do campo da política, pelo menos do
que eu sei, nunca se decepcionou com um amigo.
Uma figura em especial que
frequentava o escritório e que chamava minha atenção era o Sr. Ben-Hur, com sua
postura impassível, como um personagem de filme antigo. Sentava em uma cadeira
de frente para a rua, colocava o cabo do guarda-chuva entre as mãos, a guisa de
bengala, e ficava horas fitando o vazio. Muito culto, viajado e dono de uma
caligrafia maravilhosa, ele escrevia com caneta tinteiro com uma firmeza que
qualquer texto seu parecia um impresso. Um dia, não resisti e perguntei ao meu
pai sobre ele.
- “Seu” Ben-Hur? Ah! Talvez
seja porque ele já foi um homem muito rico, com muito gado no interior do
Mazagão... Dizem que era dono de grande fortuna, tinha muito gado, mas hoje
vive de rendas...
Ainda bem que eu era uma
criança, e crianças podem ser curiosas. Se ele nunca disse pra ninguém o que
aconteceu, para mim respondeu sem hesitação.
- O que aconteceu? Ah,
Wilsinho, o que aconteceu foi que... Parou, ficou por alguns minutos olhando o
vazio, cofiou mais uma vez o bigode, e então respondeu com firmeza: o que
aconteceu é que um homem não pode confundir os números com os bois... E muito
menos o que ele pensa que sabe com o que ele realmente sabe... Pensei muito
sobre isso. De algumas coisas eu não tinha a menor dúvida: queria ter uma bela
caligrafia como a dele, queria ter muitas histórias como ele tinha, e queria, e
muito mesmo, jamais confundir a realidade com o registro dela. Acho que foi daí
em diante que passei a ter aversão ao formalismo.
Então passamos a conversar muito. Descobri que sua letra era assim tão
perfeita porque ele tinha estudado em um paleógrafo e ouvi muitas histórias de
búfalos no Mazagão, algumas tão incríveis que até eu próprio teria duvidado, se
ele não tivesse, um dia, trazido uma bala, que teria retirado da testa de um
búfalo, e que mostrava claramente que teria se espalmado sem penetrar o osso.
Na verdade, parecia mais uma flor de chumbo do que uma bala de revolver.
- Então... O que teria
acontecido com o atirador?
- Imagino que morreu, porque o
búfalo estava vivo... Quer dizer, até eu atirar nele com um rifle. Era um
rosilho, muito grande e brabo, parecia não ter medo de nada! Na verdade, o
búfalo não é como um boi. O búfalo é um animal selvagem... E quando se cria
solto, acaba tendo que ser caçado... E foram tantas as histórias, pena que não
tive oportunidade de registrá-las. Daria um livro de aventuras, com certeza.
Eram tantos os personagens que
frequentavam o escritório, e eram tantos os ditos... Em sua maioria, realmente
edificantes. Mesmo aqueles vazados em linguagem chula traziam alguma lição de
vida. Mas acho que sempre tive predileção por aqueles que se mostravam sempre
alegres e de bem com a vida, como o seu Chico Torquato ou o seu Walter Jucá,
personagens brincalhões e irreverentes, mas, principalmente, espirituosos. O
primeiro sempre conseguia achar um aspecto positivo em qualquer situação, e o
segundo conseguia transformar em piada até as situações trágicas que tomava
conhecimento pela sua condição de policial.
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Foto do Ten. Pessoa na BR-156 na época em que fez a Caminhada do Século |
Mas um era especialmente
aplicável a qualquer situação, boa ou ruim, o conhecido guerra é guerra, do
Tenente Pessoa, figura que, não contente com sua impressionante história no
partido comunista, ainda foi capaz de construir uma ainda mais inacreditável:
caminhou a pé do Oiapoque ao Chuí, passando em Brasília em plena comemoração do
sesquicentenário da Independência do Brasil. Se a notícia era boa: É isso aí!
Guerra é guerra! E se a notícia era ruim: Bom, a verdade é que guerra é
guerra... Esse é um dito muito bom, que registro aqui, porque desde então,
embora faça questão de cultivar muitos amigos, trato de nunca me descuidar com
eles, porque, afinal, guerra é guerra.
Personagens da Macapá
provinciana, amigos que já se foram, mas que viveram intensamente seus caminhos
e, mais que isso, cada um dos percalços desses caminhos. Alguns tiveram mais
sorte, outros menos. Alguns foram embora mais cedo, outros deram algum
trabalho. Mas, em sua maioria, estão todos por aqui, seja por seus filhos e
netos, seja pelas recordações que deixaram. E talvez por uma interessante
coincidência, estão quase todos no bairro do Zerão, próximo ao campus da
universidade federal, mediados pelo bispo da época, que deve mantê-los mais
comportados. Uns nomeiam ruas bem asfaltadas e movimentadas, outros ruas
pacatas e esburacadas. Coisas da vida.
* * * *
E O IETA NÃO MORREU
Wilson Carvalho Savino (*)
Um
dia desses, numa manhã radiosa, tive um momento de raro prazer quando
casualmente visitei os amigos do Grupo de Educação Continuada, que agora
funciona em um prédio da SEED/GEA na Praça Floriano Peixoto, e eles estavam
justamente apresentando o projeto de educação continuada na praça. Foi uma
manhã maravilhosa, quando tivemos oportunidade de interagir e eu de entender,
na prática, a linha de trabalho desse grupo. Melhor não falar nada, as fotos do
evento falam por si:
Isso que se vê nas fotos e uma forma bem
atrativa de apresentação vivenciada do projeto de trabalho do Grupo de Educação
Continuada, na forma como é levado para as escolas, e que consiste numa
autorreflexão sobre o entrelaçamento das dimensões amorosas e cognitivas, com
apresentação através de poesias, músicas, místicas e relaxamento. E no decorrer
da tarefa, são produzidos textos-artigos e materiais metodológicos como forma
de apoio ao fazer-sentir-pensar educativo das escolas na busca da qualidade da
vida.
Os objetivos de um trabalho dessa
natureza são principalmente estudar-refletir as bases epistemológicas e
ontológicas do fazer-sentir-pensar educativo com os educadores da escola
abordada; tornar visível a dimensão cuidante-amorosa nas relações na escola;
vivenciar o cuidado amoroso no diálogo, no respeito e na não-violência;
entrelaçar a dimensão cuidante-amorosa com a dimensão cognitiva; fortalecer em
cada educador a autoconstrução na amorosidade.
Os meios para alcançar esse objetivo são
a vivência do autoencontro no ato da execução do projeto, a entrega das
cartilhas de poesia, de história, de teatro, de música, de filmes, etc, que são
produzidas pelo próprio grupo, além do caderno de contação de histórias. E é assim que o projeto é levado às escolas,
como uma alternativa de superação desse desânimo e descompasso com a realidade
do mundo atual, que desgasta os educadores nas escolas e faz desmoronar todo o
esforço empregado, desperdiçando os recursos do sistema escolar.
Os resultados buscados são a superação
do estresse na escola, a convivência pacífica na solidariedade, a criação de um
ambiente escolar acolhedor, o aumento da qualidade de vida, enfim, de tudo o
que sonhamos para as nossas escolas públicas, ou, dito de outra forma, de tudo
o que se sonhava em um espaço educacional chamado de IETA.
Esse Grupo surgiu quando o glorioso Instituto de Educação do Amapá (IETA) estava decididamente extinto, sobrando apenas um grupo de professores, os guardiões da essência de uma cultura escolar singular que fez do IETA uma escola diferente e também a diferença, de alguma forma, na vida de todos os que por lá passaram. Esse grupo decidiu que ainda havia fogo sob as cinzas e que eles poderiam fazer melhor, poderiam disseminar o espírito do IETA para todas as escolas da rede estadual, que, aliás, era o que de melhor o grupo do IETA já há muito tentava fazer.
Esse Grupo surgiu quando o glorioso Instituto de Educação do Amapá (IETA) estava decididamente extinto, sobrando apenas um grupo de professores, os guardiões da essência de uma cultura escolar singular que fez do IETA uma escola diferente e também a diferença, de alguma forma, na vida de todos os que por lá passaram. Esse grupo decidiu que ainda havia fogo sob as cinzas e que eles poderiam fazer melhor, poderiam disseminar o espírito do IETA para todas as escolas da rede estadual, que, aliás, era o que de melhor o grupo do IETA já há muito tentava fazer.
E assim, lá foram eles, ao governador do
Estado, à Secretária de Educação, procurando apoio para a sua causa em
educadores que tinham passado pelo IETA e que eram considerados de renome no
Amapá. Não foi assim tão difícil, afinal, eles próprios eram educadores com
reconhecimento na comunidade, e em toda parte encontravam outros educadores que
se identificavam com a cultura de competência no trabalho de formação de professores
em serviço no Amapá, que se construiu no IETA nos seus mais de cinquenta anos
de existência.
A tarefa agora era vender a ideia de uma
educação permanente e continuada, uma formação em serviço, para enfrentar o
desalento que invade a educação brasileira em todos os aspectos, com as
consequências mais funestas possíveis, panorama que é visível nos noticiários
que a mídia propala como o ponto do caminho em que não há retorno. Mas o grupo
era valente e enfrentou com galhardia mais esse desafio, e com ele manteve vivo
o melhor do IETA, trabalhando com um processo de educação permanente que tem
como objetivo todos os profissionais de educação da rede pública no Amapá (não
só com professores), construindo e reconstruindo concepções de educação.
Educação, não capacitação, como faz questão de frisar a Profª Maria José Costa
da Silva, uma denodada defensora dessa ideia.
Para se ter uma ideia do quanto é complexo e
interessante a linha de trabalho do grupo, basta lembrar que, só numa escola de
Macapá ficaram três anos, indo à escola três vezes por semana, onde foram
desafiados a trabalhar com um grupo que era chamado “os perdidos da escola”,
porque todos já tinham desvanecido de conseguir que estudassem, passassem de
ano ou apresentasse um comportamento razoável dentro da escola. Com essa linha
de trabalho venceram esse desafio, e a Profª. Maria José orgulha-se de ter essa
experiência devidamente registrada, para teorizar futuramente sobre essa
prática, no exercício do sentido mais profundo do termo práxis pedagógica.
Batista, Eugênio, Orivaldo, Nestor,
Maria José, Nazilda, Samira, Deusa, Magno, Cláudio, Ana Maria, Débora, Mara,
Márcia, Fernanda, Maria das Graças, Simone, Mirlene... Os mesmos que se via nas
fotos da linha de frente no IETA. Pena que o grupo vai naturalmente diminuindo,
alguns se aposentam, outros adoecem... E o aumento de membros é raro... Alguns
educadores sentem que é preciso fazer alguma coisa diferente para enfrentar o
caos que está a educação, procuram o grupo, se interessam e se empolgam com os
resultados, mas acabam achando que a linha é uma “viagem”.
E, realmente, falar da dimensão amorosa na escola não é nada fácil. Imagine-se que no Amapá há um número espantoso de professores fora de sala de aula, com problemas psíquicos. Para a Profª. Maria José, por espantoso que esse número pareça, não há o que estranhar, já que, com uma educação impositiva, falando “para” e não “com” uma clientela que está na era digital enquanto o professor em sala de aula está mandando o aluno escrever no caderno, só tem como resultado o caos. Para o grupo, a solução é chegar no coração do alunos, com projetos capazes de conquista-los lá onde estão: É preciso ressignificar nosso fazer pedagógico na escola ou a convivência vai ficar impossível, com os alunos na era digital e a escola imóvel no tempo.
(*) Professor da Universidade Federal do Amapá -Unifap, advogado, escritor premiado, integrante da Associação Amapaense de Escritores - APES, autor da obra "Temas Básicos em Filosofia", mestre em Filosofia, atualmente faz doutorado em Educação pela UFU e lançou recentemente a coletânea de contos "Da Vida e da Sorte por 10 Contos", pela Editora Virtual Books - aguarde matéria sobre o livro que faremos neste blog.
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