Informações sobre o autor
Romancista, contista,
cronista e poeta, Rui Guilherme de Vasconcellos Souza Filho nasceu em Belém do
Pará. Foi professor de língua e literatura anglo-americana e do Curso de
Direito nas Universidades Federais do Pará e do Amapá.
Advogado militante no
Pará, chegou ao Amapá em 1991 para assumir a magistratura, onde permaneceu até a
aposentadoria como juiz de direito de reconhecida capacidade, transferindo-se posteriormente para o Rio
de Janeiro. O autor faz parte da Associação Amapaense de Escritores-Apes.
Seu romance de estreia
“Leilani – Relato de uma Obsessão” recebeu da Academia Paraense de Letras o
prêmio “Inglês de Sousa”, editado no Amapá pela Ed. Gráfica O Dia (1998).
Lançou duas coletâneas de Contos: “Carta de Amor e de Ódio” (Belém: CEJUP,
2005) e “O Velho” (São Paulo: Scortecci, 2009. Participou das coletâneas
“Contos do Desejo” – São Paulo: AMB, 2012), “Quinze Contistas da Amazônia!
(Belém, UFPA), “Poetas na Linha Imaginária” e “Poesia na Boca do Rio”
(Macapá/AP).
SOZINHO,
OUVINDO MOZART
Rui Guilherme
Quisera capturar em versos
Mozart.
Nada mais inteiramente impossível...
É sutil, é puro ar,
esta música tão doce... Incrível
o delicado soar
do fraseado divino, inconsútil,
do piano...
Chove bem de leve, em gotejar
diáfano.
A natureza queda em suspenso,
silente;
pára o vento; faz-se tenso
o ambiente:
é a pausa, é o silêncio magistral
entre as notas escolhidas
do concerto. Em sucessão divinal,
são gotas caídas
da mais sublime genialidade.
Prender Mozart
nestes pobres versos... Impossibilidade
absoluta.
É querer prender com as mãos o ar.
A batuta
conduz, segura, a performance
(romance?)
dos músicos, a namorar seus instrumentos.
Pensamentos elevados da mais fina
espiritualidade
diluem-se
ao ouvir as intercambiantes de tonalidade,
a coda magnífica.
Ao fim, permanece a sensação beatífica
da música de Mozart...
Transporta-te, meu eu,
neste momento de enlevo,
e vai dizer que levo
ao gênio de Salzburgo
meu reverencial louvor
e gratidão
pelo prazer imenso com que me expurgo
da rotina do cotidiano,
para entregar-me a esse instante de puro
deleite
em que ouço o piano.
Ouço Mozart sozinho.
Aceito, com infinito agrado,
esta solidão benfazeja
e adoçada ao infinito
por esta divinal sonoridade
que me afaga,
que me beija...
Macapá
(AP), 3 de março de 1998
“Rui Guilherme é
magistral ao criar situações em que as personagens parecem estar ao lado ou à
frente do leitor. O conto O Velho, por exemplo, nos transporta para o
imaginário de saudades de um ancião aguardando resignadamente a morte, que
parece o ter esquecido, pois a saudade “É, sobretudo, a falta que se sente de
si mesmo”. Nostálgico e hilário, o conto é um relato sobre a solidão humana e a
passagem do tempo na vida de cada um de nós, quando certos acontecimentos,
mesmo aparentemente triviais, assumem amplitudes de afetar o destino”.
(Paulo Tarso
Barros)
Contatos com o autor: ruigui43@gmail.com
* * * *
Ao aposentar-se, em março de 2013, o seu colega Heraldo Costa escreveu este artigo:
AO MESTRE RUI GUILHERME
COM CARINHO – 70 ANOS DE VIDA
“A
educação tem raízes amargas, mas os seus frutos são doces” (Aristóteles)
A primeira vez que o vi foi como Juiz numa reunião
de boas vindas aos primeiros servidores da Justiça do Amapá, Comarca de
Santana, em 25 de abril de 1992, no meio dos quais eu estava.
As inquietações eram muitas, as perguntas
também, mas ao final daquela reunião ele nos deixou uma lição de vida quanto à
ansiedade. Disse que ‘não deveríamos nos preocupar tanto com a ponte, antes que
chegássemos nela’.
Os anos passaram e em abril de 1994, já
universitário, tive o prazer de tê-lo como meu professor, na cadeira de
introdução ao direito.
Lúcido, eloquente, ávido pelo conhecimento
e pelas letras, contista, de humor perspicaz e de uma cultura vasta, assim é
Rui Guilherme de Vasconcelos Souza Filho.
Rui Guilherme é paraense de Belém, nascido
em 18 de março de 1943, formado em Direito em Belém-PA, cidade onde também foi
advogado militante e professor universitário. Integrante da primeira turma de Magistrados
da Justiça do Estado do Amapá, que tomou posse em 05 de outubro de 1991.
Já no Amapá como Magistrado, Rui emprestou
também seus conhecimentos como professor para a nascente Universidade Federal
do Amapá – Unifap, tendo sido professor tanto em Belém como em Macapá de uma
turma de profissionais do direito como Advogados, Promotores, Procuradores e vários
colegas juízes.
Como escritor contista, é membro da
Associação Amapaense de Escritores – APES, publicou Leilani – Relato de uma
Obsessão (Romance, 1999), obra que recebeu o Prêmio Inglês de Souza da Academia
Paraense de Letras em 1990; Carta de Amor e de Ódio – e Outras Histórias
(Contos, Cejup, 2005) e teve conto premiado e publicado em antologia da Unifap.
No início do ano passado lançou o conto ‘O Velho’. O escritor Paulo Tarso
Barros, assim define Rui Guilherme no lançamento do último conto: ‘um escritor perspicaz,
talentoso, em pleno domínio do ofício de escrever, que nos deixa pistas do seu
existencial no mundo das letras – uma experiência bem-sucedida ao lado de nomes
consagrados que lhe outorgaram o manancial imprescindível para quem almeja um
lugar no imponderável círculo literário’.
Assim é o Doutor Rui Guilherme, que sempre
soube trafegar com maestria entre o ambiente sério e carregado dos fóruns, as
desafiantes salas de aula universitárias e as hilárias histórias de seus
contos. Assim é Rui, que sempre soube conduzir sua vida do privado para o
público, do público para o familiar, sempre deixando marcas indeléveis na mente
e no coração daqueles que tiveram o privilégio de conviver com ele.
Lembro-me de uma de suas primeiras aulas em
nossa turma de faculdade, em maio de 1994, por volta das 16h. Ao chegar na
turma, deixou seus materiais didáticos e convidou a todos para que o seguissem.
À época, a UNIFAP se resumia a um prédio da reitoria e um bloco de salas de
aula.
Outros blocos e prédios estavam sendo
construídos. Andando apressadamente, ele tomou um caminho ao fundo do bloco de
direito e mais adiante parou e começou a dar aula sobre ‘cultura’. Falou,
mostrando um reino de formiga, que aqueles pequenos seres, embora cavassem e cortassem
folhas, poderiam ficar ali milhares de anos sem modificar nada do ambiente. Que
nós seres humanos somos os grandes fomentadores da cultura e que podemos com
nossas ações mudar tudo para o bem ou para o mal. Nenhum dos colegas jamais
esqueceu essa aula.
Agora, por disposição legal, ao completar
70 anos, Rui Guilherme encerra a carreira de Magistrado no próximo dia 18. Creio
que num momento como esse, uma série de pensamentos passa pela sua mente. Seus
primeiros passos, a primeira aula, os primeiros rabiscos, os tombos, os
machucados da vida, a adolescência, os estudos, a faculdade, do início ao fim.
A maturidade. Os longos corredores percorridos como Advogado, o concurso da
Magistratura. A primeira sentença, o primeiro júri. Os caminhos lamacentos
percorridos nas estradas do Amapá, dirigindo a ‘burra velha’*. Enfim, tudo como
começou e que daqui a alguns dias, termina. Mas este concluir não é o fim. É um
recomeço, é um prosseguir, pois uma série de atividades ainda aguardam por seus
valiosos conhecimentos jurídicos e de vida, já que ainda tem muito a contribuir
com a nossa sociedade.
DOUTOR RUI GUILHERME DE VASCONCELOS SOUZA
FILHO, meu colega, você dignificou de maneira impar a magistratura nacional e,
mesmo desligado da judicatura, estarás sempre presente na história da nossa
vida e na história do Amapá, pois como dizia a consagrada poetisa Clarice Lispector:
“o futuro mais brilhante é baseado num passado intensamente vivido”.
Parabéns.
Heraldo Costa – Juiz de direito em Macapá
*Burra velha: carro oficial – Gurgel – que
servia a Comarca de Amapá, em estado precário.
Texto publicado no blog de Alcilene Cavalcante em 12
de março de 2013 - http://www.alcilenecavalcante.com.br/alcilene/ao-mestre-rui-guilherme-com-carinho-70-anos-de-vida
Rui Guilherme na Biblioteca Pública Estadual Elcy Lacerda - 2013 Foto: Paulo Tarso |
© Copyright - Rui Guilherme de Vasconcellos Souza Filho
C O N T O S
AVENTURA
NA ILHA DA PRINCESA
Éramos três, os aventureiros. Moacir e
eu solteiros, na faixa dos vinte anos, nós dois professores de inglês. O outro,
casado e pai, beirava os trinta anos, se tanto. Chamava-se Ararê.
Ararê era um tipo singular. Moreno
claro, cabelos nem lisos, nem crespos, negros, em permanente desalinho;
compridos, mas não longos, estavam em acordo com o tipo exótico que fazia meu
compadre Ararê. Artista plástico, pintor, desenhista e muito bom em
xilogravuras com temas do folclore amazônico, Ararê tinha um filho que lhe dera
a comadre Oneide, miudinha, mas um poço de coragem. Otimista, acompanhava o
marido fazendo artesanato. A venda das peças que ela confeccionava ajudava, e
muito, no minguado orçamento familiar e na mantença da família.
O imaginário do Ararê não tinha
limites. Nas histórias que contava de sua vida não dava para se distinguir a
verdade dos fatos daquilo que ele criava com tanta convicção que acabava
convencendo a ele mesmo, e assim querendo convencer seus ouvintes, de que seus
relatos eram rigidamente verdadeiros. Começava com o seu nascimento. Ararê
dizia que fora criado numa tribo indígena Craô; que a mãe dele, índia pura, na
hora do parto vira uma bola de luz colorida que saíra da mata e ficara
revoluteando pelo interior da choça; e que essa mesma esfera luminosa se
apresentara diante dele e de Oneide, na hora em que ela dava à luz o
primogênito deles. Bem, nunca vi comadre Oneide confirmar a vinda da tal bola de
luz, mas também nunca a vi desmentir o marido. Nem nessa, nem nas muitas
histórias que o Ararê desfiava, como aquela do encontro dele com a velha que
morava nas matas da Jibóia Branca e que
virava Matinta Perêra nas noites sem lua.
Alto, magro, musculoso, o rosto de
Ararê parecia com o daqueles índios norteamericanos esculpidos em madeira que
ficavam na porta dos salões de barbeiros do faroeste.
Uma coisa é certa: Ararê era um
prodígio ao caminhar na capoeira mais cerrada. Era difícil acompanhar o ritmo
dele, e mais difícil ainda era progredir sem fazer barulho que nem ele. E para fazer
ruído, Moacir era isuperável: batia com o facão o matagal, enredando-se na
tiririca; lanhado pelo cipó unha-de-gato, praguejava como um pirata, espantando
os bichos que queríamos caçar.
Moacir era pobre. Ararê, paupérrimo.
Eu era remediado, o único a ter carro. Então, a gasolina, o farnel, as
munições, tudo corria por minha conta. Para nossas expedições fabulosas, até as
armas longas era eu que emprestava aos meus companheiros. À conta do Moacir, a
cachaça. Ararê encarregava-se, e muito bem, do contato com os caboclos – os
nativos, como dizíamos. O Compadre do Batelão,
líder comunitário na Vila do Abade, município de Marapanim, era comparsa
do xilogravurista, e com ele rivalizava nos imaginosos relatos em que não
faltavam a caça grossa, até mesmo uma esporádica onça que quase devorara um
primo do Compadre. Mapinguari e saci-pererê, cobra boiúna, sucuris de pra mais
de quinze metros, tubarões – tubarões! –
passeando-se preguiçosamente por sob os cardumes de sardinha, espíritos de
padres tocando sinos fantasmas em ilhas que se sabia serem desabitadas, assim
corriam as horas de preguiça em meio às expedições, nas conversas regadas à
pinga em que fazíamos hora para as investidas noturnas atrás de bichos da mata.
Mais de uma vez, o Compadre do Batelão
nos contara das coisas estranhas que se passavam na Ilha da Princesa. Dizia de
uma família que resolvera lá se estabelecer: o pai, a mulher e quatro filhos,
três meninos e uma filha que se punha mocinha. Montaram cãs;, fizeram um
desembarcadouro; botaram criação de patos e galinhas, alguns porcos e meia
dúzia de cabeças de gado pé-duro. Foram avisados, muitas vezes, pelo Compadre
do Batelão e por outros moradores do Abade que era arriscado enfrentar as
mandingas da Princesa dona da ilha, habitante das altas dunas que apresavam uma
lagoa de água doce escura onde pernaltas pescavam.
Situada no mar aberto, só se chegava à
ilha depois de horas de barco, saindo da vila por um braço de água salgada e
ultrapassando a arrebentação. O colono que para lá se mudara com mulher e
filhos ria das histórias dos moradores, dizendo que ele e a família estavam
muito bem instalados; que a pesca era abundante, tanto no espinhel como na rede
e no curral que construíra; que o gado sempre arranjava uns tufos de capim para
pastar, e até engordava; que os patos e galinhas reproduziam-se bem, além de produzir
ovos para consumo da casa; e que a Princesa não passava de lenda, fruto da
crendice dos pescadores.
Contudo, já se haviam passado meses sem o invasor da Ilha da Princesa aparecer. Ninguém sabia dele, da mulher, dos filhos. Pescadores que passavam ao largo da Princesa atrás do peixe de primeira capturado no alto-mar não se arriscavam a aportar na ilha, mas diziam avistar o movimento dos moradores na praia distante. Contudo, depois de algum tempo, já não se via sinal de vida na ilha. Dava, sim, para ver a casa. O curral de peixe, também. Mas era só. Nenhum indício de vida humana ou animal.
Contudo, já se haviam passado meses sem o invasor da Ilha da Princesa aparecer. Ninguém sabia dele, da mulher, dos filhos. Pescadores que passavam ao largo da Princesa atrás do peixe de primeira capturado no alto-mar não se arriscavam a aportar na ilha, mas diziam avistar o movimento dos moradores na praia distante. Contudo, depois de algum tempo, já não se via sinal de vida na ilha. Dava, sim, para ver a casa. O curral de peixe, também. Mas era só. Nenhum indício de vida humana ou animal.
O pessoal da vila do Abade, instigado
pela curiosidade em saber o que era feito do colono e de suas gentes, resolveu
meter-se em canoas e rumar para a Princesa. Quando lá chegaram, narrava o
Compadre do Batelão, viram que o curral de peixe estava estragado, já sem
serventia. A casa em ruínas, as palhas da cobertura quase todas arrancadas pelo
vento. Dos patos, galinhas, boiada, porcos, nem sinal. Gritaram pelo nome do
colono, da mulher: nenhuma resposta. Só o sibilar constante da ventania e o
troar das ondas. Assombrados, os vilarejos já se aprestavam a tomar seus barcos
e sair daquele lugar lúgubre quando Zé Arraia deu o alarme:- “Olha lá, na
praia! Vem vindo alguém!” Era a mocinha, filha única do casal. Vinha nua, os
cabelos desgrenhados, o olhar baço, igual ao de peixe morto. Cobriram-na com
uma lona e colocaram-na a bordo. Ela não falava nada. Parecia que não havia
ninguém em sua volta. Calada estava, calada ficou durante toda a viagem de
volta. E calada ficou, e para sempre, sucumbindo em poucos dias à febre
altíssima. Ao morrer, a menina levou para a cova toda possibilidade de se saber
o que tinha acontecido na Ilha da Princesa.
- “Isso já faz uns quantos anos”,
dizia o Compadre do Batelão. – “Depois daquela vez, ninguém quis mais se
arriscar a enfrentar a encantaria da Ilha da Princesa.”
Para nós três, Moacir, Ararê e eu, sob
o aguilhão da curiosidade e do espírito de aventura a que se juntava a coragem
que nos dava a pinga que sorvíamos, a Ilha da Princesa era a meta ideal para a
desmitificação da Princesa e seus mistérios. Depois de rápida confabulação,
convencemos o Compadre a nos deixar de manhã na ilha, onde pernoitaríamos. Só
iríamos voltar no dia seguinte.
- “Vejam bem, rapazes. Parece que
vocês não estão acreditando na gente. Olha que nesses meus tantos anos de vida
já vi muita coisa estranha. Enfrentei mar grosso, até naufragar já naufraguei.
Medo não tenho, e de nada. Mas sei que certos mistérios ... bem, melhor não
bulir com essas coisas...”
- “Compadre, ninguém tá duvidando de
você, nem achando que você é mentiroso. Mas
nós estamos muito bem armados e equipados. Além disso, pode haver caça
da boa na Princesa, e é isso que nós viemos fazer aqui: caçar. Queremos dar uma
boa lanternada à noite nas matas da Princesa. Basta você nos largar lá de manhã
e ir nos buscar de volta no dia seguinte.”
Com esses argumentos, Ararê conseguiu
convencer o Compadre a levar-nos à Ilha da Princesa.
-“Tá certo, se é o que vocês
querem...”, suspirou nosso amigo pescador. – “Mas vou só deixar vocês e buscá-los
no dia seguinte. Mas não me peçam para ficar à noite na ilha, porque isso eu
não faço de jeito nenhum”.
Saímos no raiar do dia, no batelão.
Era tempo de sardinha e os cardumes faziam extensas sombras na água esverdeada
do braço de mar, em rumo à arrebentação. Lembro de ter duvidado quando o
Compadre falou de tubarões dos grandes nas águas tépidas e calmas do braço.
–“Tubarão?”, pensei com meus botões. –“Tubarão aqui no Abade, um braço de mar? Em
águas mornas? Mas quando! Esse compadre inventa cada coisa...”
Foi Moacir o primeiro a chamar nossa
atenção. Sob o cardume de sardinhas que fazia a água verde tremelicar, pouca
coisa abaixo passou a sombra de um peixe enorme. Nadava sem pressa, com
majestosa indolência. Se era tubarão, ou se era outro peixe, não dá para dizer
com exatidão. Era, contudo, imenso, coisa de três metros de comprimento ou
mais. O Compadre nada comentou, mas o Moacir continuava a apontar para o vulto
que durante algum tempo deslizou na sombra do bando das sardinhas. – “É tubarão?
Caramba! Se o barco alagar, nós vamos ser devorados...”
Chegamos à praia da Princesa no meio
da manhã, sob sol escaldante porém sem calor, por causa da constante brisa que
vinha do mar. Do curral de pesca, só algumas varetas continuavam fincadas. O
trapiche, a maré destruíra. Uns restos de parede eram vestígios da casa que um
dia existira. Nenhum sinal de vida, entretanto.
O Compadre despediu-se de nós
compungido. O rosto estava sombrio. Parecia genuinamente triste, como se a
despedida fosse muito mais que um temporário até amanhã. Parecia mais um adeus,
e um adeus para sempre.
Minha estuante juventude e virilidade
esforçavam-se para escorraçar uma pontinha de medo. Ararê estava impassível;
Moacir, algo nervoso, mas controlado.
Eu trajava meu uniforme de caça, em
tecido camuflado, bota militar, boné verde-oliva. À cinta, minha pistola Colt
45, com um carregador suplementar, e minha faca Jim Bowie. Além da mochila com
a matalotagem e um cantil térmico para dois litros, levava minha lanterna de
cabeça japonesa, mais a lanterna de mão alimentadas cada uma por quatro
elementos, de foco fechado para longo alcance. Para completar, uma espingarda
Winchester cal. 16, de repetição, no carregador seis cartuchos chumbo 3T que derrubariam uma onça. Suplementarmente,
mais doze cartuchos. Eu estava pronto para ir à guerra.
Ararê levava uma espingarda Itajubá
cal. 28, de repetição, três cartuchos no carregador, mais os extras, faca e
lanterna de 4 elementos.
Moacir tinha na cintura um revólver
cal. 38, seis tiros, o facão de mato e bolsa para munição de reserva cal. 38, cal.
44 e cartuhos cal. 20 chumbo 3T, mais lanterna de 4 pilhas e longo alcance. Sua
arma longa era uma espingarda Sant Etienne de três canos, dois para cartucho
cal. 20, paralelos, e um sotaposto cal. 44, cano raiado e alça de mira
acionável.
Estávamos, os três aventureiros,
prontos para o combate. Viesse o que viesse, tínhamos poder de fogo para abater
até um búfalo selvagem. Só não sabíamos se nossos cartuchos e balas
funcionariam bem contra fantasmas.
Da praia, próximo às ruínas da casa do
colono, vimos o batelão de nosso amável Compadre cavalgar as ondas que
estrugiam e tomar o rumo do Abade. Uma rápida conferência, e lá fomos nós
andando pela areia alva rumo ao Morro da Princesa. A maré havia baixado. Depois
de uma hora de marcha, vimos os contrafortes das enormes dunas e para lá nos
dirigimos. Coube a mim ser o primeiro a avistar o escaler com remos de faia,
dois homens a bordo. – “Olha lá! Vem vindo marinheiros para cá! Isso quer dizer
que podemos esperar encontrar alguém nessa ilha diz-que deserta!”
Moacir e Ararê animaram-se ao ver os
dois marinheiros que remavam com experiente sincronia, vindo do mar para a
orla. – “Vamos lá, vamos encontrar os marujos”, falei. – “vamos ver que
novidades podem nos contar!” E partimos rumo à embarcação. Firmando a vista,
dava para ver os movimentos dos remadores. À certa altura, havia um pequeno
aclive na areia que nos tirou momentaneamente a visão do bote. Quando se abriu
de novo a vista do mar e que procuramos o escaler, havia sumido.
- “Mas que diabos...?”, dissemos em
coro como se houvéssemos combinado. – “Cadê o barco?”, pergunta Moacir. –“Sei
lá”, respondi. “Não o estou vendo”. E Ararê:- “Nem eu, Pra onde podem ter ido?”
Não havendo resposta, voltamos atrás
em nossas pegadas com o objetivo de logo chegar à lagoa doce. Protegidos do
vento pelas dunas, contávamos poder manducar alguns bocados à guisa de almoço.
Assim que ultrapassamos o aclive que
nos tirara a visão das ondas, avistamos o escaler. Não passava de um tronco com
dois galhos espetados que, de longe,
poderia nos ter traído por ilusão de ótica. Inexplicável é que não
tivéssemos visto o tronco na praia quando vínhamos para a orla. O rastro, com a
marca inconfundível das solas de nossas botas, passava a menos de três metros
ao lado do “escaler”. Em mútuo consenso, decidimos não comentar o acontecido,
certos de que tivéramos coletiva e simultaneamente a mesma miragem.
Os canos das armas longas que
portávamos aos ombros em bandoleira faziam com que o vento, que agora estava
muito forte, produzisse um som que parecia uma cantiga. Não dava para
distinguir a melodia que soava intermitentemente.
- “Vocês
estão ouvindo?”, pergunta Moacir. “É como se fosse um rádio tocando ao longe.
Parece até uma festa, e quase dá para ouvir pessoas falando...”
- “É só o vento, Moa. É só o vento”,
retrucou o Ararê. “Mas”, pensei alto, “parece mesmo o som de um baile. Bem,
pode ser que seja barulho de algum navio que esteja navegando fora do alcance
de nossa vista e que a ventania traga em lufadas até nós”, arrazoei. E esse
argumento aplacou-nos aos três.
Em vez de comer o almoço e para aproveitar
ao máximo a luz do dia, preferimos dar uma batida em volta da lagoa de água
escura. Longe de nós o suficiente para se ter certeza de que nossas armas não
os atingiriam, aves pernaltas petiscavam atrás de achar o que comer. Fomos
andando em volta da lagoa até o ponto em que Ararê parou.
–“Olha!”, apontou ele. “É um gato bem grande! Se não é onça, é um maracajá açu!
Esse é o rastro da entrada do bicho na lagoa. Vamos procurar a saída!”
Excitados, continuamos nossa exploração, mas em nenhum lugar se via as pegadas
que indicariam onde a onça tinha saído da água. Por isso, retrocedemos ao ponto
onde apareciam bem nítidas na areia as marcas das patas do felino entrando na
lagoa. Ararê falou para acompanharmos o rastro, pois acabaríamos topando com a
onça. Assim fizemos. Acompanhamos as passadas cerca de quatrocentos metros. O
caminho acompanhava a duna que protegia do vento. Foi então que, sem qualquer
explicação aparente, as pisadas terminavam. Delas não se via o mais leve traço.
Pior: acabavam no meio do areal, sem nenhum arbusto para onde a onça pudesse
ter rumado. Tão logo apareceu, vinha do nada, e no nada sumia.
Procuramos abrigo e comemos nossa
ração fria. Alimentados, decidimos subir a duna mais alta, aquela que diziam
ser a morada da Princesa. A areia fina, branquíssima, tornava penosa a
escalada, tanto mais que o monte tinha cerca de cinqüenta metros de altura.
Iniciamos a subida a partir de onde paráramos para o almoço. Vínhamos
protegidos do vento. Então, no meio da subida, apareceram rastros de
pneumáticos largos, como se fossem de trator. Os sulcos eram evidentes, e não
podia ser outra coisa senão o trabalho feito por máquinas pesadas.
- “Então está explicado o barulho das\
conversas e da música do rádio! São os operadores de máquina que devem estar
acampados do outro lado da duna!”, animou-se a dizer o Moacir com indisfarçável
alegria e alívio.
Fiz-lhe eco: - “E não é? E a gente se
assombrando com bobagens como um bando de caboclos supersticiosos! Vamos lá,
turma! Daqui a pouco chegamos no acampamento da obra a tempo de filar um café
fresquinho!” E lá partimos para o pico da duna da Princesa, certos de que, no
contraforte, veríamos os tratores e os operários. Entretanto, quando chegamos,
não havia nada. Nem trator, nem acampamento, nem cafezinho fresco. Só o vento a
rugir, enquanto o sol descambava no poente em uma orgia de cores.
Do alto do Morro da Princesa, dava
para ver uma ponta de mata. Começava a escurecer. Passeei o foco da minha
lanterna pelos arbustos. Foi quando vi o brilho de dois olhos. Algum bicho
havia grimpado o arvoredo e lá estava, ofuscado pelo clarão da lanterna de mão.
Levantei minha Winchester cal. 16, dotada com alça de mira de marfim própria
para tiro noturno. Ararê e Moacir esperavam ao meu lado pelo trovão do cartucho
na arma “full choke”, com grãos de chumbo 3T. Se fosse a onça, o troféu era
meu. Nesse momento, a luz de minha lanterna enfraqueceu até ficar como se fosse
uma brasa e perdi a mirada de minha presa. – “Que diabos? As pilhas são
novinhas...“ , pensei. Tentei focar com minha lanterna de cabeça japonesa, e
logo deparei com a cintilação dos olhos da caça. – “Agora tu não me escapas,
sua danada!” – Mas, quando refiz a visada, novamente o foco sumiu, a lanterna
de cabeça quase apagada. Ararê e Moacir,
então, focaram na árvore e lá continuava trepada a onça. Mas, quando os dois
firmaram a pontaria, as lanternas deles também apagaram. Foi assim que
decidimos atirar no rumo, na esperança de que uma das cargas, não importa saída
da arma de quem, matasse a presa. Lembro de ter feito três disparos. Os outros,
não sei. Ficamos esperando pelo barulho do corpo da onça ao cair da árvore onde
se pusera. Não veio barulho nenhum. Já estava quase escuro, mas, confiantes nas
lanternas que haviam voltado a funcionar, descemos na carreira o Morro da
Princesa e fomos explorar o capão de mato, em busca de nossa presa. No
arvoredo, contudo, não havia sinal de nenhum projétil. Era como se os três
atiradores estivessem com a pontaria tão ruim que nem mesmo um galho da árvore
fora arrancado.
Decidíramos que não nos deixaríamos
amedrontar pelos estranhos fatos até então ocorridos. Ficaríamos para dormir no
sopé do Morro da Princesa. Éramos três, éramos jovens, éramos destemidos,
éramos aventureiros indômitos. Armados e equipados do jeito que estávamos
poderíamos enfrentar qualquer desafio. Dormiríamos no Morro da Princesa. Ao
alvorecer, iríamos ao encontro do Compadre do Batelão, decididos a mostrar para
ele e para o povo do Abade que havíamos
superado as magias da Ilha da Princesa, e que estávamos prontos para novas
empreitadas.
De tudo que experimentáramos durante o
dia, veríamos depois que nada era mais apavorante do que viria a seguir na
noite do Morro da Princesa.
Protegidos do vento, acendemos um foguinho
com galhos secos que conseguíramos catar e nos pusemos a contar amenidades, sem
falar dos sustos até então pregados pela Princesa.
Nos anos cinquenta, sessenta, por aí,
era enorme a influência do cinema e da música dos Estados Unidos. Um dos cantores
americanos de maior sucesso era Nat King Cole. Com sua voz maviosa e intimista,
imortalizou baladas românticas como “Mona Lisa”, “Unforgettable”, “Blue
Gardenia”. Uma canção não muito difundida tinha uma letra que lhes reproduzo
porque tem muito a ver com o fecho dessa história do Morro da Princesa.
Chamava-se “I thought about Marie”. A letra era assim, em parte:- “I had trouble finding sleep last night / So
I thought about Marie / I grew tired of
counting sheep last night / So I thought about Marie / Our love affair had to
struggle for existing / And many were the fights we had / But as I look back
upon it from the distance / It wasn’t too bad...”.Traduz-se livremente
assim: Tive problemas para conciliar o
sono ontem à noite / E assim pús-me a pensar em Marie / Cansei-me de contar
carneirinhos ontem à noite / E assim fiquei pensando em Marie / Nosso caso de
amor teve de lutar para existir / E muitas foram as brigas que tivemos / Mas
quando olho para trás à distância / Vejo que não foi tão ruim...”. Bem.
Voltemos àquela noite no sopé do Morro da Princesa.
A conversa fluía, muito mansa, muito
agradável. Como sempre, o primeiro a adormecer foi o Ararê. Em seguida, foi a
vez do Moacir. Eu sempre tive problemas para conciliar o sono. E, ao que
lembro, não havia naqueles dias nenhuma Marie para qual pudesse dirigir meus pensamentos.
Com curiosidade, vi o Ararê dormindo profundamente. A brisa jogava no corpo do
meu amigo bocadinhos de areia que iam se amontoando nele. Tive inveja, e também
quis dormir, mas o sono não chegou, e nem me sentia com vontade de contar
carneirinhos. Olhei para o Moacir, que ressonava tranquilamente. A areia, fina
como talco, também se amontoava no adormecido. Veio-me uma sensação de paz, de
tranqüilidade, de bem-estar indescritível. Aos poucos, fui deslizando para a
inconsciência embalado pela brisa suave e pelo mugir distante das ondas do
Atlântico. Dormi, não sei quanto tempo. De súbito, fui despertado por uma
sensação de perigo iminente. De início,
tive dificuldade para me mexer. Boa parte de meu corpo fora coberta pela areia
da praia. Contraditório é que, enquanto uma parte de mim bradava para que eu
levantasse, para que eu ficasse desperto, para fugir daquele carinhoso
sepultamento vivo, predominava aquela sensação de paz inefável, aquele desejo
quase incontrolável de voltar a adormecer para ser tragado pelas areias insidiosas
da Princesa e ali dissolver-me naquela ilha, para dela vir a fazer parte.
Eternamente.
Consegui, enfim, levantar. À luz da
lanterna vi que do Ararê só o rosto estava de fora. Moacir, como o Ararê,
também já havia sido enterrado vivo quase todo. Comecei a gritar, apavorado,
Queria a todo custo que meus amigos acordassem. Cavei, e com grande dificuldade
fiz Ararê despertar. Juntos, tiramos Moacir de sua letargia. Coletando nossos
pertences que já tinham na maior parte sido tragados pela Princesa, rasgamos
para a praia. Sob a luz das estrelas, fugimos do apelo da Princesa com o
coração dividido. Inegável que parte de nós pedia que deixássemos o medo de
lado, que nos entregássemos aos carinhos da Princesa, pois ela nos daria a
felicidade eterna. E até hoje, distante de meus companheiros de aventuras,
apartados pela vida, sempre que lembro do episódio da lha da Princesa, vêm-me
emoções misturadas. Satisfeito de ter podido escapar do feitiço da Senhora das
Dunas, não esqueço daquele abraço que dela recebi, e lá me vem à memória a balada que cantava Nat
King Cole: “It wasn’t too bad”: não
foi de todo ruim...
TARZAN
DO TEMPO DA CRUZADA
Naqueles anos
cinquenta, entre o molecório do Largo da Sé, bairro da Cidade Velha, em Belém
do Pará, ninguém sabia o nome dele. Só era conhecido como Tarzan. Aquele
apelido tinha muito a ver com o físico avantajado do menino de rua que fora
acolhido muito pequeno pelo japonês Toshiro Sawada, que consertava bicicletas.
Trabalhando na oficina, Tarzan geralmente estava lambuzado de graxa, no
corpanzil e no traje. Este consistia em um calção de cor indefinida, meio
folgado, preso a um suspensório de uma só alça que vinha atravessado da cintura
na frente, passava pelo peito e ombro esquerdo e se prendia na cinta pela parte
de trás. Imitava, assim, a tanga de pele de leopardo que trajava o Tarzan Rei
das Selvas, o Homem Macaco que falava a língua dos grandes manganis - gorilas, no idioma dos antropóides. Essa língua os
gorilas usavam para a comunicação entre eles, mas era entendida por todos os
bichos da jângal africano. Falando o dialeto dos manganis, o Tarzan Rei dos Macacos era capaz de conversar com os
animais, desde Tantor, o elefante, Sheeta, a macaquinha com quem Tarzan
pode ter tido um caso de amor antes de aparecer Jane na vida dele; Numa, o leão das savanas, Hisstah, a perigosa píton, e toda a
fauna.
O Tarzan da
floresta africana fora genial criação do escritor norteamericano Edgard Rice
Burroughs. Escritor e jornalista nascido em Chicago em 1875, faleceu em 1950,
na Califórnia. Burroughs, que nunca esteve na África, concebeu a história de
lorde Greystoke, inglês que se perdeu com a mulher e um filho recém-nascido na
selva, após naufragarem na costa africana. O lorde e sua lady foram mortos por
um gorila malvado de nome Kerchak,
porém a criancinha foi salva pela macaca Kala.
Kala adotou o pequeno filho dos Greystokes, amamentando-o e criando-o no bando de
grandes primatas de que fazia parte.
Pelo fato de
não ter pêlos como Kala e seus irmãos macacos, chamados de Mangani, o menino recebeu o nome de Tarzan. Na língua dos macacos,
Tarzan quer dizer Pele Branca, e era um Tarmangani,
ou Macaco Branco, pois era
diferente dos nativos humanos chamados de Gomanganis,
ou Macacos Pretos. Vivendo nas
árvores, Tarzan saltava entre os galhos usando cipós em que se balançava e,
como um trapezista, ia de um lado para outro em velocidade. O
exercício constante acabara fazendo com que Tarzan desenvolvesse um físico
prodigioso. Seus músculos, segundo
Burroughs, destacavam-se sob a pele glabra como se fossem nós em uma
corda de aço.
A língua dos
manganis, em palavras tais como krigah!¸cuidado,
atenção; bandolo!, a morte; e tantas
outras, tornaram-se do domínio de Tarzan, assim que ele podia falar com os
bichos e entender o que eles diziam.
Para mim, e
para muitos meninos da minha faixa etária, Tarzan era um ídolo, um ícone. No
cinema, Tarzan foi vivido pelo ator Johnny Weissmuller. Suas aventuras,
filmadas em preto-e-branco, eram exibidas em seriados semanais que lotavam aos
sábados nas vesperais do Cine Guarani. O Guarani, ou Guaraxela, no dizer dos
moleques, era, com o Universal, salas de projeção do bairro da Cidade Velha, em
Belém, onde nasci e vivi até os dezessete anos.
Eu não perdia uma sessão. Além disso, economizava para comprar os livros
de Tarzan da editora Terramarear, os quais lia e relia com avidez. Cheguei ao
ponto de achar que já conseguiria me comunicar com os bichos da mata na
linguagem dos Grandes Manganis. Minha crença era tanta que me lembro das vezes
em que voltei a pé para minha casa no Largo da Sé após visitas que fazia ao
parque zoobotânico do museu Emílio Goeldi. Terminada a aula particular de matemática,
transformava o dinheiro do ônibus em pão que levava comigo até a jaula da anta.
Lá, eu me punha a falar com a anta na língua de Tarzan. O paquiderme, acho, até
já me reconhecia. Vinha para onde eu estava, fungava alegremente com sua
trombinha, papava-me o pão que me custara a
longa caminhada de retorno do museu para meu bairro da Cidade Velha, e
só. Por mais que me esforçasse caprichando na pronúncia mangani, a estúpida
alimária enchia o bucho com o pão; e, quando a comida acabava, ia-se embora na maior
indiferença. Dela jamais recebi nenhum grunhido de agradecimento.
De família
católica e estudando em colégio marista onde todo dia se rezava o terço, era
natural que o bom padre Nelson, apostando na minha piedade, me tivesse admitido
na Cruzada Eucarística da Sé. Confesso, entretanto, que razões bem diferentes –
e nenhuma delas pia – me atraíram para ser cruzado. Uma era a bola, a pelada
que corria solta na quadra da Bateria, grupo de artilharia instalado no Forte
do Presépio, vizinho ao Ver-o-Peso. Aproveitava-me do jogo de bola para chutar
as canelas dos meninos meus rivais depois das aulas de catecismo. A segunda
motivação para eu virar Cruzadinho eram as meninas. Tão bonitinhas, tão
graciosas, mas tão distantes. Com elas era mais fácil conversar nos encontros
da Cruzada Eucarística da Sé.
Entre as
meninas, e disparadamente a mais bonita e mais cobiçada pelos moleques era a
Léa. Minhamusa era linda! Os cabelos caíam-lhe pelas costas em uma cascata de
ouro. Os olhos, verdes de perdição. Com a Lea eu trocava santinhos e olhares
derramados de amor platônico. Embora ela nem suspeitasse disso, Léa era minha
namorada. Sonhava poder fugir de casa com ela. Iríamos morar na selva. Lá, eu a
salvaria da onça e do jacaré, protegendo-a de todos os perigos com meus
músculos de aço. O problema é que nas matas do Pará seria muito difícil, para
não dizer de todo impossível, arranjar uma macaca que nem a Kala para nos
adotar e nos deixar viver nas árvores com os grandes manganis que, por aqui,
não havia. Quando muito, de antropóides, eu so poderia contar com as guaribas e
os macacos-prego.
Saindo da
selva para onde eu iria fugir com a Lea, voltemos a falar de outro Tarzan.
Paulo Tarso Barros e Rui Guilherme |
O Tarzan que
consertava bicicletas era grande. Grande? Não. Ele era enorme! Colossal!
Descomunal! Uma ilha! Os moleques todos, eu entre eles, faziam questão de
tratar bem o Tarzan das Bicicletas. A ele dávamos ocasionais presentinhos de
petecas, mangas maduras, revistas em quadrinhos que chamávamos de gibis, e
outros mimos. Em retribuição, achávamos que Tarzan nunca iria nos chamar para a
briga. Se fizesse – coitado do adversário! – era morte certa.
Vários meninos
que já haviam apanhado de mim nas constantes batalhas campais em as quais me
envolvia, e outros a quem eu já acertara a canela nas peladas sem que eles
ousassem revidar, posso dizer que não morriam de amores por mim. Viviam
esperando uma oportunidade para me ferrar.
No fim de
tarde em que senti a morte se aproximar de mim, tudo começou com a visão
excruciante do choro da Léa. Da minha Léa. A minha musa estava com fios de
lágrimas a escorrer-lhe pelo rosto mimoso, os olhinhos verdes cheios d’água.
- “Ele pegou
em mim! Ele me tocou! Que nojo!”, dizia meu anjo, entre soluços.
- “Ele, quem?
Quem foi? O que é que ele te fez?”, meu corpo gritava krigah!, cuidado na língua dos grandes macacos. “Me conta, o que
foi?” E já ensaiava dar punhadas no peito, a gritar bandolo!, a morte!. Estava pronto para matar com mãos nuas o
inimigo que ousara pegar na minha namorada.
- “Ele pegou
no meu queixo! Ele pegou no meu queixo com aquela mãozona imunda!”
- “Ele, quem,
Léa?” Meu corpo enrijecera mais, e em meu íntimo já havia até soltado o grito
de bandolo!, a morte. Eu estava
pronto para fazer picadinho do moleque que tivera a suprema audácia de pegar no
queixo da minha Dulcinéa.
- “Foi o
Tarzan! Ele pegou no meu queixo com aquele dedo gordo sujo de graxa! Ai, que
nojo!”
- “Ah, mas
isso não vai ficar assim! Eu vou pegar o Tarzan! Vou dar tanta pancada nele que
ele vai se arrepender de ter mexido com você!”. Minha cólera era tanta que nem
prestei atenção para o fato de que eu pretendia fazer o impossível. Bater no
Tarzan? Naquela ilha?!? Era morte certa!
Meus desafetos
ouviram-me dizer que ia encher de pancadas o brutamontes da oficina do japonês
Sawada. Era a oportunidade pela qual eles ansiavam. E não deu outra.
Continuei
tentando consolar Léa. Mas eu tinha que manter um olho no padre e outro na
missa. Por isso, deu para ver quando o Tarzan vinha atravessando a rua,
dirigindo-se para onde estávamos minha musa, eu e mais uma porção de gente que
se ajuntara para ver o desfecho da tragédia anunciada. Não dava tempo para eu
correr para casa. O meu eu Tarzan Rei da Floresta buscou refúgio no estoicismo.
Fugir, não seria possível, tanto mais que a Léa dizia, apavorada, que o Tarzan
das bicicletas estava se aproximando. Como o leão que deixa de ser dominante
quando é expulso do bando pelo desafiante mais forte se resigna e se afasta
para uma vida solitária, esperando a morte, assim eu, Rui dos Macacos, seria destronado
pelo descomunal Tarzan das bicicletas.
Meu medo era
tanto que quase podia ouvir as pisadas do gigantesco moleque. Ele era tão
grande que sua sombra parecia abafar a luz do sol.
- “E aí?”,
falou Tarzan com uma voz mortalmente calma. – “Peguei no queixo dela, e daí? Tu
falaste que ias me quebrar na porrada? Tu e mais quantos?”
- “Te prepara
pra apanhar, safado!”, trovejei.
Milagres
acontecem. Não que tenha aparecido a turma do deixa disso. Ao contrário, o
molecório gritava uníssono “porrada, porrada!”
Tarzan zuniu
na minha direção. A mão imensa vinha aberta na direção da minha cabeça. No
último segundo consegui me esquivar. Deu para sentir o vento do tapa que não
chegou ao alvo. Parti para a ofensiva e comecei a esmurrar o Tarzan com a força
do desespero. E aí operou-se o milagre: apesar de enorme, logo descobri que
Tarzan não sabia brigar. Meus murros começaram a atingir a carantonha de meu
adversário, e eu cada vez batia com mais força e precisão. Tarzan baixou a
guarda, ajoelhou-se e começou a choramingar, suplicando para que eu parasse de
bater nele.
- “Quando tu
vieres por um lado da calçada, se a Léa vier na tua direção tu vais atravessar
a rua, tu ouviste, seu safado?”
- “Prometo!
Prometo!”, balbuciava o choramingas.
O sabor da
vitória não tem igual. A derrota do Tarzan rendeu-me gordíssimos lucros. Entre
eles, a reverência do molecório. Da Léa, ganhei um terço de contas azuis.
Aceitei o terço com alegria fingida. O que eu esperava, mesmo, era ganhar o
esperado “sim” ao projeto de fuga para as matas de Mosqueiro, para que Léa se
tornasse minha Jane. Afinal de contas, éramos crianças. Além disso, não havia
gorilas nas matas do Pará. Quando muito, algumas guaribas e macacos-prego.
Havia antas. Treinando-as bem, elas poderiam se transformar em miniaturas de
Tantor, o poderoso elefante aliado do Rei da Selva. Mas o treinamento das antas
não iria dar certo. Muito burras, as antas não eram capazes de entender a
língua dos Grandes Símios.
OUTROS CONTOS
O PRIMEIRO BEIJO
Para a poeta Raquel Braga
Chamava-se
Ameríndio. Por que nome tão inusitado, nenhum dos onze aventureiros sabia. Como
o nome era longo, todos o chamavam Amê. No time de futebol, era ponta esquerda,
e era bom. Goleador. Posição garantida; titular.
Os onze tinham
resolvido passar férias de inverno na Ilha. Era lá que os pais de Amê reuniam
os dois meninos e uma turma de seus amigos de escola no verão, mês de julho.
Não tinham casa própria, alugando por temporada, e sempre na praia.
Os moradores
da Ilha, que a turma de Amê chamava de invernistas, acabaram acolhendo o pedido
do pai de Amê para conseguir um lugar onde o garoto e Charlô, seu irmão mais
velho, e a turma pudessem se instalar e viver seu sonho de aventura. Foi-lhes
cedida uma casa de madeira, muito rudimentar, onde funcionava a agremiação
política do administrador da Ilha, razão pela qual a dita casa era chamada de
Partido.
Foi Waldemar, vinte
anos e o mais velho de todos, craque de bola, canhota potentíssima que quase
chegara a profissional do Paysandu – o Papão da Curuzu -, colega de turma de Charlô,
quem teve a ideia de reunir um time de amigos peladeiros– os Onze Aventureiros,
como iriam chamar-se. O plano era passar uma temporada na Ilha. Temporada fora
das férias de julho, pelo tempo do carnaval, quando chovia a cântaros. Só os
moradores permanentes, que não eram muitos, ficavam por lá. A buliçosa moçada
da capital só estaria no balneário em julho, no tempo de sol forte do verão. Na
Ilha, com chuva ... nem pensar!
Amê, quatorze
anos, era o caçula dos onze aventureiros. O irmão dele, Charlô, tinha dezoito. A
idade média do grupo ficava entre dezessete e vinte. Sendo Amê um pirralho aos
olhos da turma, Charlô só levou o menino porque o pai impusera. – Ou levam o
Amê, ou eu não consigo casa para vocês na Ilha! Que é isso?!? Se ele serve para
levar as botinadas de vocês nas peladas, como é que não vai poder acompanhá-los
nessa temporada que vocês estão inventando de fazer?
Dizia o
Waldemar que sabia cozinhar. Mentira. Nem ele, nem ninguém dos onze, entendia
nada de cozinha. Mesmo assim, partiram âs compras no mercadinho Metralhadora.
Foram solertemente enganados pelo comerciante. O feijão, por exemplo, era tão
velho e tão duro que, quando os rapazes o comiam – e comiam porque não tinha
outro jeito: era o feijão, ou a fome –,os bagos faziam um barulhinho metálico
plinc! plinc! ao cair no estômago.
Todos bebiam
cachaça, inclusive Amê, que não queria ser visto como criança. O fogão
velhíssimo era a querosene, mas momento chegou em que o dinheiro estava no fim.
A opção era: comprar querosene para o fogão, ou a pinga para a inspiração?
Passou-se a
cozinhar em fogueira a céu aberto, sob toldo precário mas que dava para impedir
que a chuva apagasse a lenha. Amê, que
entendia ainda menos que o nada de cozinha que falsamente alegara saber o
Waldemar, só fazia comer a gororoba horrorosa. Puseram-no, então, como
pirotécnico – nome pomposo para o encarregado de acender a fogueira depois que
o fogão a querosene foi posto de lado, em favor da cachaça.
O time acabou
desfalcado depois que Fred foi expulso ao ser flagrado roubando leite
condensado da despensa. Mudaram o nome do time. De Onze Aventureiros, virou
Taurus Esporte Clube.
A fome
rondava, mas os remanescentes insistiam
em ficar até o fim da temporada para não dar o braço a torcer para os mais
velhos. Pais e mães dos aventureiros haviam vaticinado que eles não passariam
nem meio mês, quanto mais janeiro e fevereiro, naquela tolice de quererem ficar
dois meses por conta própria e longe de casa.
Saíam pelo
mato a catar frutos. Tempo de jaca, coma-se jaca. Jaca dura, jaca manteiga,
caroço de jaca cozido na água e sal. Jaca, jaca, jaca. Pesadelos com jaca.
Havia um pacto
de honra quanto à escassa comida guardada na despensa: tudo seria racionado.
Ainda assim, com cega obediência e reduzidas as rações, tudo o que se cozinhava,
comia-se. para não morrer de inanição. Crimes como o do Fred, expulsão para ele
tinha sido pouco. Falava-se em matá-lo se ele tivesse a audácia de reaparecer
no Partido. Enfim, para sobreviver, jaca, jaca e mais jaca.
Cachaça sempre
se dava um jeito de ter. Com a fome crônica, todo mundo estava fraco, de modo
que bastava muito pouco de bebida para logo se ficar tonto.
Falou-se que
haveria festa de carnaval no Pinheirense Social Clube. Para ir lá, era preciso
atravessar o rio. Convites, o administrador municipal da Ilha já os conseguira.
Foram os dez,
zonzos de fome, a cabeça girando com a pinga. Era festa de adulto, mas o Amê lá
estava. Fazia cara de mais velho para não ser barrado.
- Iaiá, cadê o jarro / O jarro em que eu
plantei a flor / Eu vou te contar um caso / Eu quebrei o jarro / E matei a flor
– cantavam os brincantes.
Os
aventureiros do Taurus haviam se espalhado. Cada um buscava uma garota para
pular o carnaval. Os mais velhos do escrete, mais experientes, logo se deram
bem.
Amê, catorze
anos, era tímido. Na verdade, era bom mesmo de bola; brigar, não, que não era
de briga; esportes e aventuras, para isso, sim: estava sempre pronto.
Entretanto, esse negócio de namoro não era com ele. Nem mesmo sabia dançar. Nunca
estivera perto de mulher. Elas até que lhe davam olhares, visto que era bonito
e bem arrumado, mas não sabia como agir com garotas. E de garotas, estava cheio
o salão do Pinheirense. Amê queria colar com uma menina, mas a timidez o
refreava. Contudo, a maldita rodava-lhe na cabeça e o fazia se sentir como um
formidável conquistador. A hora de colar com uma morena chegara. - E a coragem,
meu Deus? De onde é que vou tirar? -, perguntava-se.
O samba
continuava, animado:
- Se você não me queria / Não devia me
procurar / Não devia me iludir / Nem deixar eu me apaixonar...
- “Eu vi um
gatinho, ora se vi! Eu vi, sim!”, dizia-se a morena Nadir. Nadir era uma
predadora. Estava mais para invernista que para veranista, embora não morasse
propriamente na Ilha. Morava na Vila do Pinheiro. Seu pai adotivo era
razoavelmente rico: dono de uma olaria, construíra um casarão para a família à
beira do rio, do lado do continente. Adorava a Vila onde morava, tendo sido
presidente do Pinheirense Social Clube. Viúvo, moravam na olaria ele e a filha,
Nadir.
Fazia pouco
tempo que Nadir terminara o noivado com um piloto de avião. Morena, era o que
se chama de falsa magra: corpo escultural, seios rijos e pequenos, pernas
torneadas, cabelos castanhos levemente ondulados, olhos amarelados, Nadir ficou
interessada quando viu chegarem os Aventureiros no bale do Pinheirense. –
“Carne nova no pedaço...”, pensou ela, ao ver os meninos.
Os rapazes da
Vila pouco lhe interessavam. Com muitos deles já andara dando suas voltinhas,
plantando uma floresta de chifres na testa do noivo. Louco por ela, o aviador
aceitava estoicamente quando vinham lhe denunciar as galinhagens da noiva. –
“É, eu entendo. A pobrezinha fica sozinha quando eu estou viajando, e não é
sempre que eu posso estar com ela. Quando a gente se casar, que eu puder
levá-la comigo para longe de Pinheiro...”
Antes que o
piloto pudesse realizar seu projeto, Nadir se aborreceu de vez da placidez do
noivo. Não quis ouvir o que lhe dizia o pai. O oleiro secretamente nutria a
esperança de fincar os pés do futuro genro em terra, botando-o sócio no negócio
que lhe garantia vida boa e farta.
- Ah, pai! Sem
essa! Ele é corno manso! Sabe que eu chifro ele, é só ele viajar! Não vai dar
certo, pai. Para uma mulher como eu, não vale esse negócio de homem bonzinho,
tolerante... – E Nadir mandou o piloto para o espaço, literalmente
falando.
Amê adorava
cinema, mas só bangue-bangue, filmes de guerra, ação, tiros, peles-vermelhas e
cavalerianos. Não sabia porque, mas sempre torcia pelos índios. Agora, filmes
de amor... argh! Coisa mais enjoativa! Quando sentiu os olhares dardejantes que
lhe endereçava aquela morena fantasiada de odalisca, os seios perfeitos
abrigados meio que a descoberto no sutiã de taça armada, a barriguinha à
mostra, dando sinais claríssimos de estar interessada nele, Amê sentiu o rosto pegar
fogo. Uma onda de calor percorreu-lhe o corpo. Deu-lhe gana de fugir, mas sabia
quanto isso lhe custaria. Charlô, Waldemar e os demais, provavelmente já teriam
visto a odalisca partir com tudo para cima dele. Amê sentiu-se encurralado.
Buscando forças no desespero, devolveu o olhar. Um pouco aterrorizado, viu a
morena vir dançando na direção dele, a mãozinha sinalizando para pularem juntos
o carnaval.
- Escapar deste amor / É impossível / Evitar
esta dor / É muito mais / Você arruinou a minha vida / Ora vai mulher / Me
deixa em paz...
- Oi, gatinho!
De onde você é? -, perguntava a odalisca, se esfregando em Amê. Era a jibóia
pronta para dar o bote e enovelar o trêmulo passarinho.
- Da cidade.
Estamos passando férias na Ilha. Estou treinando para fazer teste no Paysandu.
- Além de
tudo, ainda é jogador do Papão! Papai vai adorar te conhecer! Ele é Paysandu
fanático! – dizia a jibóia, apertando o cerco.
- Eu vou pra Maracangalha, eu vou! / Eu vou de
uniforme branco, eu vou! Eu vou de chapéu de palha, eu vou!
O samba
corria, animado. O suor escorria pelo corpo dos foliões. Foi ali mesmo, no meio
do salão, enquanto a orquestra puxava as músicas cujas letras todo mundo
repetia, que a predadora Nadir deu o bote: puxou decidida o corpo fremente de
Amê. Trouxe o rosto do rapaz para bem junto do dela. A magia dera resultado. Os
olhos de Nadir coruscavam quando ela, antes de cerrá-los, viu triunfante o
gatinho inteiramente dominado. Juntou seus lábios carnudos aos de Amê. O moço
não sabia o que fazer, mas o instinto e a natureza logo se encarregaram de
tudo. Amê entreabriu a boca. Logo sentiu a língua fremente de Nadir enroscar-se
à dele. Os fluidos corporais entraram em ebulição. A sensação era diferente de
tudo quanto o jovem sentira até aquele momento mágico. Nada, nem mesmo o título
de campeão que ganhara no Colégio jogando pelo combinado; nem o êxtase sublime
e o estado de graça que experimentara quando fez sua primeira comunhão; nem o
fervor patriótico que o deixara sem fôlego quando havia sido chamado para ser
porta-bandeira no desfile cívico do Dia da Raça; nem a adrenalina que lhe inundara a circulação
quando pescou o maior peixe que um pescador já fisgara; nada, nada mesmo, nem
de longe se parecia ao que estava sentindo agora. Presa indefesa da sucuri
Nadir, Amê achou que seu coração iria simplesmente explodir. Para ele, a morte
coroaria tudo que pudesse provar de melhor e mais extasiante naquela hora em
que recebia, num sábado de carnaval, o primeiro beijo de amor de sua vida.
Rio, 21 de agosto de 2015
Sob inspiração do maravilhoso conto “Um beijo
roubado”, da poeta Raquel Braga
Benjamim
Deocleciano Pessoa, o tio Bêja, paraibano de família ilustre, primo de João
Pessoa, cujo nome foi dado à capital do estado da Paraíba, e de Epitácio, que
viria a ser presidente do Brasil, nasceu na segunda metade do século dezenove e
durou até a segunda metade do século vinte, chegando ao fim de seus dias de
aventureiro e navegante na cidade de Belém do Pará.
A
irmã gêmea de tio Bêja, minha avó Nina, viúva de Santos Estanislau Pessoa de
Vasconcellos, foi tia, madrasta e madrinha de minha mãe, Violeta.
Como
é isso?, perguntarão. Pois bem. Eu vos direi. São coisas do antigamente. Coisas
do nordeste. Coisas de velhas famílias nordestinas, daquelas em que os laços se
enroscavam uns nos outros, na maior confusão, emaranhando-se nas árvores
genealógicas como gavinhas nos pés de maracujá. Tentemos explicar.
O
desembargador Santos Estanislau, cunhado do tio Bêja, casou três vezes, Em
todas, as mulheres eram irmãs uma da outra, e com boa diferença de idade entre
elas. A primeira chamava-se Maria Blandina, a vovó Iaiá. Cinco anos mais velha
que o marido, dela adveio um casal. O casamento durou uns três para quatro
anos.
Morta
Iaiá, e cumprido o luto, Santos foi à Paraíba buscar uma irmã mais nova da
falecida, chamada Maria Anália. Prendada e muito bonita, vovó Anália deu à luz doze
rebentos, dois quais somente três meninas e um menino vingaram; entre eles, a
mais velha, tia Neném; tia Conceição, nossa mamãe no Rio de Janeiro; tio
Cássio, pianista, magistrado, de quem puxei o amor pela música erudita; e mamãe,
Violeta, que herdou de vovó Anália a beleza e o refinamento. Tio Browne,
americano de Vermont que veio a casar com tia Cecy, irmã de papai, chamava
mamãe de lady Violet.
Anália
era frágil. Como os partos se sucediam com pontualidade anual, Anália
facilmente previu que não duraria muito tempo. Pensando em quem a sucederia
junto ao marido, e com quatro filhos ainda pequenos, mandou que viesse da
Paraíba sua irmã caçula, a adolescente Ana Zaíra, de alcunha Niná, gêmea do tio
Bêja.
Niná
orientava os empregados, zelava pela diversidade do menu, pagava o ordenado dos
preceptores e da professora de piano; cuidava da higiene dos pequenos,
contava-lhes histórias; enfim, zelava para que a rotina doméstica fluísse com harmonia,
poupando a irmã o máximo que lhe era possível. Mesmo contando com a ajuda da
diligente Niná, Maria Anália ia definhando cada vez mais.
Contam
as crônicas familiares que certo dia vovó Anália, com a saúde combalida e
sentindo a morte chegar, chamou Niná para uma conversa.
-
Nina, tu tens sido muito mais que uma irmã, muito mais que uma grande amiga.
Tens sido verdadeiramente uma mãe para meus filhos. Mais do que eu, coitada de
mim que vivo de cama, tu cuidas das crianças, tu as educas, tu as mimas, e elas
te adoram. Cuidas da casa, diriges os criados, atendes com presteza aos pedidos
do senhor meu marido, teu cunhado Santos. Por tudo isso, minha irmã, é que te peço:
depois que Deus me chamar, quero que me prometas que irás te casar com o
desembargador. Não te preocupes com o fato dele ser vinte anos mais velho do
que tu. Santos é um homem bom, bonito, gentil, e até muito vigoroso. Ele saberá
como fazer-te feliz, Teu lugar é aqui nesta casa, com ele e com nossas
crianças; com elas, que tanto te adoram.
-
Ora vamos, senhora minha irmã, pare de dizer bobagens. A senhora vai ficar boa,
com a graça de Nosso Senhor. A senhora e o desembargador vão continuar vivendo
juntos e felizes. Claro que amo meus sobrinhos, inclusive os dois mais velhos,
filhos de nossa saudosa mana Iaiá, que Jesus a tenha. Mas, eu, casada com o seu
Santos?!? Me perdoe, minha irmã, mas só achando graça! Logo eu, tão sem graça,
tão feinha... Seu Santos, casar comigo? Não, minha mana. Seu Santos e a senhora
são um casal perfeito. Deus há de lhe trazer de volta a saúde, dando-lhe muitos
anos de vida!
Anália
morreu. Santos ficou desolado. Botou luto fechado. A casa permanecia em
pesarosa penumbra: portas, janelas, gelosias, tudo trancado. As cortinas,
cerradas. O piano, obstinadamente mudo. Nina zelava para que mesmo os menores
evitassem bulícia quando o pai estivesse em casa, em respeito à dor do viúvo.
Falava-se em sussurro, como se se estivesse o tempo todo na igreja. Um dia,
porém...
Dizia
vovó que naquele momento achou que Santos iria mandá-la de volta para a
Paraíba; que até já estava resignada com a ideia. Nós, os netos, achávamos
graça e dizíamos que vovó saíra pulando de alegria do encontro, pois, no fundo,
o que se passou era aquilo que ela mais queria que acontecesse. Enfim, segundo
ela, o diálogo foi mais ou menos assim:
-
Dona Niná, começou o avô com sua habitual pompa e circunstância. - A senhora
sabe que continuo acabrunhado com a morte da minha amada dona Maria Anália. No
entanto, já se passou quase um ano que Deus a levou. Há de convir que não fica
bem a senhora continuar morando comigo e com meus filhos nesta casa.
Ao
ouvir aquele preâmbulo, o coração de Niná quase parou. O desembargador puxou um
pigarro e prosseguiu: - Pois bem. Embora a senhora seja muito moça, eu, por meu
lado, ainda sou plenamente capaz, graças a Deus. A despeito de nossa diferença
de idade, as pessoas podem não achar respeitável uma senhorita sozinha na casa
de um viúvo, pai de família. Por isso, a melhor maneira de evitar
maledicências, é a senhorita casar-se comigo. Já me comuniquei com a família Pessoa
na Paraíba. Está a caminho do Pará o seu irmão Benjamin. Ele representará os
familiares da senhora na cerimônia do casamento. Iremos casar dentro de três meses.
Confio que a senhora cuidará dos detalhes.
-
Está bem, senhor meu cunhado. Se é este o seu desejo, assim será feito.
Dizíamos
nós, os netos, ao ouvir a recatada resposta de vovó Niná, que ela saíra aos
pulos da entrevista, cantando o Messias de Haendel, a bradar “aleluia, aleluia,
aleluia”! Vovó Niná, com um risinho mal disfarçado, negava nossa leitura da
inusitada proposta de casamento. Insistia que só pensava no bem estar dos
sobrinhos que criava como filhos; que tinha de submeter-se à autoridade do
grave desembargador; que tinha de atender ao pedido que lhe fizera no leito de
morte a mana Maria Anália. Todas essas coisas Niná dizia, mas não tirava do
rosto aquele risinho maroto. Afinal de contas, só boas coisas viriam com o
casamento. Casamento que livraria tio Bêja de ser preso na Paraíba, ele que já
estivera querendo se envolver com o cangaço, e o traria para aventuras e
desventuras na Amazônia. Casamento que daria a Santos e a Niná oito filhos e
filhas. Casamento do qual também resultaria que nossa amada vovó Niná, além de
ter sobrevivido ao velho desembargador Santos Estanislau, dele tornando-se
viúva e c ônjuge supérstite, ela, que era tia pelo lado
materno de minha mãe, da qual veio a ser madrinha de crisma, viesse, ao fim das
contas, a ser, para minha mãe Violeta, tia, madrinha e madrasta. E tudo de uma
só vez...
Violeta
nunca chamou Niná de mãe, nem de tia, nem de madrasta. O tempo todo, minha mãe
chamava Niná de “minha madrinha”. Nós, os aventurados filhos de Violeta, assim
como todos os demais primos e primas – e eram muitos! – sempre a chamamos de
vovó. Vovó Niná. Ou, na molecagem, de Frau Niná. Ou, ainda mais longe na
molecagem, de Major Niná. Ou Frau Major.
Como
antes dito, tio Bêja veio desterrado da Paraíba para o estado do Pará. Oficialmente,
vinha representar a ilustre família Pessoa no casamento de Santos Estanislau
com Ana Zaíra, a vó Nina. Na verdade, os Pessoa queriam evitar um escândalo. O
jovem Bêja andara se metendo com um tio distante, o qual, dizem, formara bando
e entrara no cangaço. Bêja, pé de valsa afamado, desde cedo amante de uma boa
cachaça, arvorara-se a acompanhar o parente transviado em andanças pela
caatinga. Para ganhar reputação de perigoso, Bêja andara se metendo em brigas de
faca, e já tinha a polícia – os “macacos”, como dizia o cangaceiro – em seu
encalço. Quando chega aos Pessoa a alvíssara de que Nina, gêmea de Bêja, arrumara
casamento com um figurão da magistratura no Pará, embriagaram o moço Benjamin; meteram-no
a bordo de um navio com destino a Belém. Foi assim que tio Bêja, mantido sob os
eflúvios do álcool durante a viagem marítima, desembarcou no cais, onde já o
esperava a caleche que o levaria a trote largo para o casarão da Serzedelo
Correa, a tempo de servir de primeira testemunha na cerimônia do enlace de
Santos Estanislau com Ana Zaira, irmã gêmea de Benjamim Deocleciano Pessoa, o
tio Bêja, setentão quando eu o conheci e
de quem passo a falar.
Tio
Bêja... Posso ouvir-lhe a voz mansa e arrastada, com o ainda forte sotaque
nordestino. Posso ver-lhe os olhos levemente azulados, cansados, mas sempre
ávidos por novidades. Posso sentir-lhe a ironia desprovida de maldade com que debicava
de nossas jactâncias juvenis. E imagino como aqueles olhos velhos estariam
olhando este mundo doido de nossos dias... Antes, porém, preciso alongar-me
reproduzindo aventuras e desventuras daquele meu destemido parente quase
cangaceiro, quase bandoleiro, quase arruaceiro. E dele lembro quando Mamãe foi
resgatá-lo num quartinho sórdido aos fundos do boteco Cova da Onça. Ele, o tio
Bêja, puxando briga com Deus e todo mundo quando estava de cara cheia, talvez
por isso renegado por dois filhós bem de vida, veio morar com sua irmã gêmea, a
nossa vovó Niná, a qual se recusava a ficar na casa de qualquer dos filhos
uterinos que tivera com o desembargador para morar com a sua sobrinha/enteada/afilhada-de-crisma
lady Violeta, Papai e nós três, os aventurados filhos de Viola.
Tio
Bêja foi marítimo. Ao chegar no Pará ao tempo do casamento de Santos e Ana
Zaíra Niná, na segunda vintena do século vinte, meteu-se em aventuras mil, a
fazer navegação de pequena cabotagem. Não sendo de muito falar, pouca coisa se
soube das suas peripécias, Soubemos que em suas andanças estivera navegando
pela Amazônia. No Amapá, esteve nas matas de Calçoene, como se referia ao
lugar. Se foi atrás do ouro do garimpo do Lourenço e de outras faiscações, não
posso assegurar. O certo é que conseguiu amealhar algum recurso que lhe
assegurou casar e ter dois filhos. Enviuvou. Os filhos foram criados. Acabaram
seguindo a própria vida, sem dar muita atenção para o pai.
Pelo
tempo da segunda guerra mundial, tio Bêja havia desembarcado. Conseguiu emprego
na Base Aérea de Belém, como funcionário civil, morando no alojamento dos
homens solteiros. Ao fim, foi nomeado para o serviço público federal. Isso lhe
assegurava algumas modestas regalias, como o credenciamento para comprar
mantimentos nos estabelecimentos de subsistência das Forças\Armadas, o que nos
ajudou a conseguir adquirir mantimentos
com preços mais em
conta. Lembro das lata \de biscoito Piraquê que tio Bêja
trazia ao receber seus minguados vencimentos. Essa provisão por ele
esporadicamente feita até rendeu uma boa história, entre nós conhecida como o
bolo do tio Bêja.
O
trigo, como tantos outros gêneros, andava escasso naqueles tempos de
pós-guerra. Mamãe andava querendo fazer um bolo para comemorar um evento
qualquer. Nem na subsistência militar, e muito menos no comércio, se achava
trigo. Sem o trigo, impossível fazer o bolo.
Tio
Bêja já estava morando conosco há algum tempo. Um dia, chegou em casa com um ar
triunfante e fez entrega à Mamãe de um saco de papel:
-
Tome, Violeta. Foi tudo o que consegui. Tem aí dois quilos de trigo.
Mamãe
recebeu o presente com tanta alegria que parecia que, em vez do trigo, Bêja
estava lhe dando dois quilos do ouro de Calçoene. Logo ela e vó Niná se
dispuseram a bater a massa do bolo com o trigo do tio Bêja.
A
massa cresceu. O bolo ficou tufado, uma cara muito bonita. Ao ser levado à mesa
para ser fatiado e comido, quando nós, as crianças, recebemos nossas porções,
com a sinceridade brutal de petizes que éramos, nossa reação foi unânime:
-
Puááá! Eeeecaaa! Tá horrível!!!
Papai,
a quem Mamãe, chamava de Nego Velho, muito cavalheiresco, enternecido ao ver a
cara de tristeza de Violeta, à qual se somavam as expressões interrogativas de
Vó Niná e do irmão dela, tio Bêja, atacou bravamente a fatia do bolo que lhe
dera Mamãe:
-
Meninos! Parem de ser tão mal-agradecidos! O bolo está maravilhoso! Ponha,
Violeta, ponha mais um pedaço para mim, - disse Nego Velho. Foi prontamente
atendido. Sem fazer careta, Papai engoliu o bolo, olhando-nos com reprovação.
Ao
tentar provar o bolo, Mamãe deu-nos razão.
-
Tem alguma coisa errada com esse bolo. Meninos, melhor não comer. – E recolheu
nossos pratos.
Vovó
e tio Bêja prudentemente não comeram suas porções. O resultado da bravura e
cavalheirismo do Nego Velho logo se fez ver com a forte infecção intestinal que
o levou a alguns dias de cama.
Feita
a competente investigação, descobriu-se que tio Bêja havia sido enganado pelo
atravessador. O precioso e raríssimo trigo de que Mamãe se valera com
parcimônia, usando só metade do pó alvo, era, na verdade, um produto usado para
pintar sapatos de branco. O trigo era alvaiade.
Nascido
durante o Império, Bêja viu ser proclamada a República. Veio morar no Pará no
final da era da borracha. Assistiu embates políticos apaixonados. Acompanhou os
tempos de racionamento durante a Segunda Guerra Mundial. Como funcionário civil
da Aeronáutica, nessa situação se manteve durante a ditadura militar. Morreu
antes da redemocratização. Testemunha que foi de dias conturbados da história
do Brasil, da Paraíba, do Pará, nunca se ouviu dele apreciações ou depreciações
das voltas e reviravoltas dos poderosos. Isso não quer dizer que não tivesse
opinião. Devia tê-la, mas a guardava, suspirando filosoficamente quando, em
rodas, falava-se da política e dos políticos. Posso afirmar que, em
solidariedade ao meu Pai, tio Bêja foi ardorosamente antibaratista, mas nunca
engajado, como o fora o Nego Velho. Oriundo dos Pessoa da Paraíba, tio Bêja se
manteve como enfant terrible em relação aos apaixonados primos Epitácio,
João, e outros mais. Preferia os bailaricos do nordeste, uma valsa com a
cabrocha, um trago da cachaça artesanal. Nem mesmo em relação ao cangaço,
embora quase tivesse entrado para o bando daquele parente feroz, tio Bêja se
manifestava abertamente a favor. Nem contra.
Quando
se falava em preços, em inflação, em como a vida estava cara, tio Bêja exalava
o seu famoso suspiro filosófico, contentando-se em ouvir. Era , coitadinho,
forçado a ser extremamente econômico, ele que ganhava tão pouco. Fumante
inveterado, quando subiu o preço dos cigarros Astoria e Aspirante, mata-ratos
que ele consumia guardando as guimbas para reaproveitar o tabaco depois de
lavado e posto para secar, Bêja passou a consumir fedorentas porroncas que
preparava com fumo que ele mesmo migava, enrolado em tirinha de papel de seda
marca Abade. Sua barba estava sempre rapada com aparelho Gilette Tech, aquele
com lâminas que eram trocadas quando ficavam cegas. As de tio Bêja, contudo,
não eram postas fora: ele tinha uma geringonça que, segundo dizia, amolava os
gumes das giletes, de modo que essas duravam muito mais.
Abrira
em Belém a Loja Seta, onde se vendia roupa masculina. A Seta, considerada
chique, era o ponto onde a rapaziada soçaite daqueles anos dourados da década
de cinqüenta, sessenta, ia comprar suas calças e camisas. Meu irmão e eu, já
trabalhando e ganhando nossos reduzidos salários, sentíamo-nos na obrigação de
comprar roupa feita na Loja Seta. Vaidosos, quando exibíamos para a família
camisa da moda comprada à prestação, tio Bêja, para nosso regozijo, fingia
estar maravilhado com a peça de roupa.
-
E quanto foi a camisa, meu filho?
-
Ah, tio Bêja. Baratinho. E o preço tá muito em conta – e dizíamos quanto
havíamos pago pela roupa.
-
Quanto? Mas só isso? Nossa! Tá de graça! Você devia comprar uma dúzia... – era
a resposta do velho tio. Ele mesmo jamais gastaria toda aquela fortuna para
comprar uma camisa da moda: o tio era freguês do armazém de roupas usadas do
turco seu Nacibe. Amigo de tio Bêja, parceiros no jogo de damas, habituais no
consumo do traçado de cachaça com Cinzano no quiosque da rua Marquês de Pombal,
o turco e tio Bêja divertiam-se a discutir o preço – já insignificante – da
roupa de segunda mão. E, seja pela camaradagem que havia entre eles, seja pela
tradição oriental de sempre barganhar seguida à risca pelo turco, fato é que
tio Bêja ainda conseguia ótimos descontos nas raras compras que fazia no
armazém do seu Nacibe.
-
Então, menino. Quanto foi mesmo que você pagou pela camisa na Loja Seta? – Só
isso? Não acredito... Tá muito barato! Devia ter comprado uma dúzia! - A boca
estava séria, mas o riso maroto lá estava no fundo daqueles olhos azuis e
cansados.
Tio
Bêja poupava o máximo que podia. O cigarro Astoria subiu de preço? Elimina-se o
Astoria. Deixar de fumar, nunca. Abaixo o exagero. Mas é imperioso deixar de
comprar o Astoria e o Aspirante. Estão muito caros. Mesmo reaproveitando o fumo
das guimbas, o tabaco migado e enrolado no papel de Abade é mais barato. Então,
vamos a ele.
A
gilete ficou cega, mas ainda dá para umas quantas barbas depois de processada
no amolador. Então, amolemos a lâmina.
-
É, esta camisa já está surrada. Niná, faça um remendo nela, minha mana. Ainda
dá para aproveitar Não vou me deixar
depenar pelo turco Nacibe.
E
assim tio Bêja esticava o pouco dinheirinho do fim do mês, de modo que vez em
quando dava para trazer uns biscoitos Piraquê pela satisfação que lhe dava ao
ver a gratidão estampada nos olhos de lady Violeta.
No
Brasil de hoje, tio Bêja, ninguém quer abrir mão de comprar roupa feita na loja
de grife. A turma que devia controlar os gastos públicos, essa então, meu tio,
nem pensa em trocar o Cohiba, ou o puro Havana, pelo Astoria ou pelo Aspirante,
que há décadas deixaram de ser fabricados. E fumar tabaco de rolo envolto no
papel de seda Abade é renomado absurdo. A barba, os homens fazem com aparelho
de três lâminas afiadas eletronicamente. Acabou, joga fora. A gilete que você amolava
saiu de linha faz tempo. E as madames não raspam pernas, axilas e lugares
pudendos: fazem depilação, pagando honorários elevados para o dono do salão.
Nem
dá para imaginar, tio Bêja, quanto você arregalaria seus olhos claros ao ver
que no Brasil destes tempos não se vive mais à beira do abismo. Nele, nós já
caímos. E enquanto durar a tresloucada farra com o dinheiro coletado da bolsa
do povo, de onde se está não vai dar para sair tão cedo. Talvez nem cedo, nem
tarde.
Rio, 8 de
agosto de 2015
* * * * * *
Sobre seu livro de contos O Velho, Paulo Tarso Barros escreveu:
"Percebe-se,
desde o início, a elegância e o estilo de um escritor perspicaz, talentoso, em
pleno domínio do ofício de escrever, que nos deixa pistas do seu existencial no
mundo das letras – uma experiência bem-sucedida ao lado de nomes consagrados
que lhe outorgaram o manancial imprescindível para quem almeja um lugar no
imponderável círculo literário.
Após sua
aplaudida estréia com o romance Leilani – Retrato de uma Obsessão, uma história
com traços marcantes do realismo fantástico, e depois de lançar os contos de
História de Amor e de ódio, agora o autor organizou seu novo livro batizado de
O Velho. E segue, ainda em alguns destes textos, essa vertente instigante da
prosa de ficção que é cultivada por tantos escritores importantes.
Rui Guilherme
é magistral ao criar situações em que as personagens parecem estar ao lado ou à
frente do leitor. O conto O Velho, por exemplo, nos transporta para o
imaginário de saudades de um ancião aguardando resignadamente a morte, que
parece o ter esquecido, pois a saudade “É, sobretudo, a falta que se sente de
si mesmo”. Nostálgico e hilário, o conto é um relato sobre a solidão humana e a
passagem do tempo na vida de cada um de nós, quando certos acontecimentos,
mesmo aparentemente triviais, assumem amplitudes de afetar o destino.
Em O Diabo e
Machado de Assis em Visita a Belém do Pará e Shangô, contos que nos transportam
a mundos não materiais, onde as personagens transitam além da percepção humana,
sem que falte a dose certa de humorismo e sarcasmo, que dão às narrativas
aquela sensação prazerosa que tanto encanta os leitores de bom gosto, o
escritor consegue dois inesquecíveis momentos ficcionais – fato primordial para
o êxito de qualquer autor.
Numa
combinação de lembranças, imaginação e talento, visitamos, prazerosamente, cada
cena das histórias – interatividade que nos faz cúmplices, co-partícipes do seu
imaginário, invadindo os porões onde os seres ficcionais vivem num mundo à
parte, mas tão próximos de nós. Às vezes somos surpreendidos com a citação de
personalidades do mundo real que também se movem nos cenários montados por Rui
Guilherme, como fazia, por exemplo, Nelson Rodrigues, ao incluir seus amigos em
algumas obras. Que o dissesse Otto Lara Resende, vez por outra povoando os
textos rodrigueanos.
Em
Souzafilhíadas, o autor nos adverte, bem-humorado, que seus relatos podem ou
não ser verídicos – e deixa-se levar, ora liricamente, ora com ironia, pelas
inolvidáveis reminiscências familiares, e parece se divertir com aquele
instrumento de tortura tão utilizado na educação nacional de outrora: a
famigerada palmatória, na sua família batizada solenemente de Chico. E por aqui
eu paro, deixando ao leitor apenas indícios do que o espera ao folhear as
páginas desta deliciosa obra literária". (Paulo Tarso Barros)
.....................................................................................................
Contatos com o autor:
ruigui43@gmail.com
Publicamos abaixo uma entrevista, autorizada pelo entrevistado, realizada em junho/2016, por uma aluna de jornalismo de Blumenau com o nosso autor Rui Guilherme.
ENTREVISTA COM JÚLIA SCHAEFFER
1)
POR QUE VOCÊ ESCREVE?
Não
existe uma reposta única. Desde criança, sou leitor compulsivo. O ambiente familiar
em que me criei concorreu decisivamente para o amor pelas letras. Minha
formação como profissional do Direito, de um lado; de outro, como professor de
língua inglesa e literatura anglo-americana, também concorreram para cultivar o
hábito de escrever. Nada obstante, confesso que, no que tange à literatura,
sobretudo à prosa de ficção e poesia, escrever me surge como ato de momento,
como impulso, mesmo. Sem disciplina, até sem muita organização.
2)
DESDE QUANDO SURGIU SUA PAIXÃO PELA LITERATURA?
Desde
a mais tenra infância. Meu pai foi professor, jornalista, poeta inspirado;
político daqueles que, nos comícios, empolgavam massas com sua oratória idealista. Foi dono de um parque
gráfico, onde editou a revista A SEMANA, periódico que revelou vários
escritores paraenses, o qual circulou enquanto não se viu abatido pela escassez
do papel e das tintas com o advento da Segunda Guerra Mundial. Foi jornalista
de A FOLHA DO NORTE e PROVÍNCIA DO PARÁ, sem nunca descurar do magistério – sua
grande paixão – e da advocacia, com incursões pela política, da qual saiu mais
pobre e desiludido. Como Papai, irmãos e irmãs dele sempre se dedicaram às
letras. Pelo lado materno, não foi diferente, apenas que mais centrados para o
campo do Direito, aí pontificando juízes, desembargadores, advogados, músicos
eruditos.
Uma
de minhas mais caras lembranças da infância é o conjunto de enormes estantes de
carvalho, com portas e vidraças com monogramas estampados contendo opulentas
coleções de obras de Direito, História, Filosofia e de Literatura, que formavam
a biblioteca do casarão de onze quartos em que nasci e vivi até os dezoito
anos. Tenho ainda hoje nítida recordação de uma espetacular coleção (ou colecção...) editada em fins do século
dezenove, intitulada “Bibliotheca Internacional de Obras Céllebres”. Com mais
de vinte polpudos volumes encadernados em capa de couro e gravação a ouro. a
“Bibliotheca” trazia longos excertos , em português na ortografia antiga e no
idioma original (inclusive grego, veja só!), com trechos de Ovídio, Heródoto,
Sêneca, Virgílio, Dante Alighieri, Shakespeare, Cervantes, Camões, Milton,
Flaubert, Mallarmé, e muitos outros, além, é claro, de clássicos lusitanos e
brasileiros. A Commedia de Dante,
lembro bem, trazia nas páginas ímpares os versos em italiano do florentino (“lasciate ogni speranza, ó voi ch’intrate...”);
e, nas páginas pares, a tradução em português castiço. Juntem-se a isso as
ilustrações artísticas de Gustave Dorè com as horripilantes cenas do Inferno e
o abraço sensual de Cupido e Psyché, e logo se pode imaginar o fascínio
hipnótico que a “Bibliotheca” exercia sobre minha imaginação deslumbrada de
menino de cinco para seis anos...
Por
favor, não lance o que até aqui relatei à conta de pedantismo, ou de tola
tentativa de demonstrar erudição. Na verdade, o que quis dizer é que li, e li desde
pequeno, vorazmente e sem censura de ninguém, tudo que me caía às mãos. Sem
esquecer a paixão pelos heróis dos “gibis” (as HQ’s do meu tempo...); pelos
personagens dos quadrinhos infantis do Disney e assemelhados; da leitura e
releitura da extraordinária obra infantil de Monteiro Lobato e das divertidas
aventuras de Tarzan, o Rei dos Macacos, absolvendo com leniência os absurdos
perpetrados pelo Edgar Rice Burroughs. Mr. Burroughs, americano que morreu sem
jamais ter posto os pés na África, mas mesmo assim concebeu Tarzan, chegou ao
cúmulo de botar gorilas das montanhas
para pular de galho em galho; não satisfeito em ver os silver backs grimpando as árvores, misturou-os com orangotangos
asiáticos e, de quebra, ainda enfiou enormes ursos do Alaska nas tórridas matas
do Congo...
3)
VOCÊ É CONTISTA, CRONISTA, ROMANCISTA E POETA. A SUA PRIMEIRA PUBLICAÇÃO FOI O
ROMANCE “LEILANI – RELATO DE UMA OBSESSÃO”, QUE RECEBEU DA ACADEMIA PARAENSE DE
LETRAS O PRÊMIO “INGLÊS DE SOUSA”. DEPOIS, VOCÊ LANÇOU DUAS COLETÂNEAS DE CONTOS, “CARTA DE AMOR E DE ÓDIO” E “O
VELHO”. ENTRE OS GÊNEROS QUE EXPLORA EM SEUS TEXTOS ,, EXISTE
ALGUM EM QUE VOCÊ TENHA
MAIS FACILIDADE EM ESCREVER, OU DE QUE
GOSTE MAIS?
Verdade.
Minha primeira publicação foi o romance “Leilani – Relato de uma Obsessão”. Lá
se contém, no prólogo, o primeiro registro
em português do gênese na visão do nativo polinésio Maori. “Leilani”, uma história
de paixão louca e desenfreada, contendo diálogos (traduzidos em português) na
língua maori, falada ainda hoje pelos nativos polinésios da Nova Zelândia – uma
gente encantadora e mágica -, é, para mim, minha melhor obra.
Dos
gêneros literários que exploro, arrisco dizer que transito, sem ficar ofegante
e sempre com prazer pessoal, na prosa em geral. Diz um amigo meu que tem predileção pelos
meus contos. Outros, dizem gostar das crônicas. Há – incrível! - até quem diga
que gosta de minha poesia! Eu... ora! O que eu posso dizer dessa gente tão
gentil é que o mau gosto é todo deles...
4)
COMO É A SUA ROTINA PARA ESCREVER? QUAL O LOCAL E HORÁRIO EM QUE COSTUMA TRABALHAR ?
EXISTE ALGO QUE FUNCIONA COMO UM “RITUAL” PARA O INÍCIO DA PRODUÇÃO LITERÁRIA?
Sempre
fui extremamente disciplinado e ferrenhamente autocrítico nos meus escritos
profissionais como advogado, como consultor jurídico, como procurador municipal, assim como nos votos que proferi
nos Tribunais em que atuei, nas sentenças e despachos que prolatei, nas
apostilas das disciplinas que ministrei e que fiz chegar aos meus alunos.
Contudo, logo no início desta entrevista afirmei que, no que tange à literatura
de ficção, nunca me submeti a uma rotina para escrever. Quem sabe se, nesse
último estágio de vida, nesse tempo que me pode restar, acabo me convencendo
que devo mudar de postura e começo a encarar com seriedade e profissionalismo o
ofício de escrever?
5)
VOCÊ SE APOSENTOU COMO JUIZ DE DIREITO NO ESTADO DO AMAPÁ AO COMPLETAR 70 ANOS.
COMO OS SEUS MAIS DE 20 ANOS DE MAGISTRATURA INTERFERIRAM NA SUA FORMAÇÃO COMO
ESCRITOR?
Aposentei-me
como juiz de direito e como professor do Curso de Direito da Universidade
Federal do Amapá. Antes de meu ingresso relativamente tardio na magistratura –
cheguei aos 48 anos de idade -, minha primeira vivência profissional foi como
professor de língua inglesa e de literatura angloamericana. Imagine você o que
é um pirralho que mal completara dezesseis anos enfiado em austero paletó e
gravata a ministrar aulas de inglês, inclusive técnico-comercial, em escolas
noturnas onde a maioria dos alunos e alunas era bem mais velha do que eu!
Prosseguindo no magistério de nível médio, fui diretor de renomados colégios da
capital paraense; fundei e dirigi concorridos cursos preparatórios para o
vestibular e de exames chamados de supletivos, ou, como também eram conhecidos, cursos de artigo
99. Após graduado bacharel em Direito, com 23 anos, atuei no segundo escalão
dos órgãos de planejamento público do governo do Pará. Daí, passei a atuar
intensamente como advogado trabalhista e cível, com prática no comércio
internacional, atendendo clientela nos Estados Unidos e na Europa. Para isso,
foi-me muito útil o domínio em alguns idiomas, tais como inglês, espanhol,
italiano e francês. Fiz numerosas viagens
para diferentes lugares no Brasil e no exterior, tanto a trabalho, como em
viagens culturais e de recreio. Morro sem ter ido à África, mas confesso não
sentir falta, uma vez que minhas viagens me levaram a conhecer lugares
maravilhosos nas Américas, na Europa, na Ásia e na Oceania. Muito jovem ainda,
incursionei como industrial, comerciante e pecuarista no Marajó. É evidente que
uma vida tão rica em experiências como a minha teve reflexo na minha obra
literária. “Leilani”, por exemplo, resultou de uma viagem que fiz a Nova
Zelândia, onde pude privar por três meses
com os polinésios Maori – gente maravilhosa, eles!
Outro
exemplo: o conto, “A Mobília da Casa de Bonecas”, do qual gosto particularmente
e que está na coletânea “Carta de Amor e de Ódio”, inspira-se na enorme e
belísima casa de bonecas de uma senhora holandesa do século XVIII chamada
Petronella Oortmann. Conheci a casa de bonecas de Frau Oortmann no Rijsksmuseum de Amsterdam. Já “O Legado de Zefa” e
“Hilael” foram inspirados na malandragem carioca; “O Faz-Pe”, recebi a bordo de
um avião. “Ferra grande no retiro do Açacu d’Onça” é um retrato da aristocracia
rural na Ilha de Marajó. E por aí vai.
6)
O EXERCÍCIO DA ADVOCACIA, CERTAS VEZES, SERVIU DE INSPIRAÇÃO PARA VOCÊ FAZER UM
CONTO, UMA POESIA, UM ROMANCE?
Digo,
no prólogo de “Leilani”, que, embora não seja aquela uma autobiografia, é
inegável que muito da obra de alguém vem carregado com traços genéticos de seu
criador. Disso pode resultar que, ao escrever, como o fizeram grandiosos
novelistas, sua obra venha de experiências vividas e por vezes fielmente
relatadas, ou transformadas por um processo de sublimação, como na “Divina Commedia” o fez Dante ao falar
de sua Beatriz. E, aproveitando o ensejo, o genial florentino sapecou muitos de
seus desafetos nos diferentes círculos de Malebolges, submetendo-os a
diabólicas torturas. Em um de meus contos, intitulado “Seu Vossa”, narro uma
experiência que vivi como juiz ao presidir uma audiência em Vara de Família.
A
prática da advocacia é um experimento caleidoscópico. Logo, como não me servir
de tantas e tão diversificadas oportunidades para escrever obras de ficção?
Tenho
uma idéia de escrever, a quatro mãos com um colega meu que integrou o primeiro
colégio de desembargadores de nosso Tribunal de Justiça do Amapá, uma espécie
de coleção de histórias sobre o Poder Judiciário por nós implantado neste
setentrião do Brasil. Eis aí mais um exemplo de como os fatos da vida permeiam
nossa produção literária. Não indispensavelmente, mas, pelo menos,
ocasionalmente. Digo que não indispensavelmente porque, ao que sei, Dante
Alighieri nunca conheceu pessoalmente o Diabo, nem passeou com Virgílio no
Paraíso.
Naquilo
que me diz respeito, escrevi recentemente um conto chamado “Tempos Difíceis”.
Passa-se todo no faroeste, com as clássicas presenças do caubói, do
pele-vermelha, da mocinha sonhadora, do jogador profissional de pôquer, do
pistoleiro. Para escrever esse conto, tudo começou quando, surgida do nada, mentalmente
me veio a letra de uma velha canção de caubói (“Times are gettin’ hard, boys / Money’s gettiin’ scarce / An’ if times don’t get no better, boys / Gonna leave
this place” ). Daí, saiu-me uma historieta do velho e selvagem oeste
norteamericano. E tudo aconteceu sem que eu jamais tivesse comido pemmican, a carne seca de bisão, ou sem
que eu tivesse sido, jamais em minha vida, um Texas Kid, ou coisa que o
valha...
7)
QUANDO ESCREVE, VOCÊ IMAGINA UM LEITOR EM ESPECIAL? EXISTE ALGUM PERFIL QUE
VOCÊ QUEIRA ATINGIR?
Para
ser sincero, sincero e sucinto, a resposta é uma só: não.
Grande
parte do que escrevi, ainda não publiquei. Poesia, por exemplo, tenho o maior
escrúpulo de divulgar, tanto mais que, como disse antes, eu, na prosa, navego à
vontade. Na poesia, quando leio mestres como Fernando Pessoa, Cora Coralina,
Cecília Meireles, Quintana, Drummond, Bandeira, João Cabral, Vinícius, Chico
Buarque e outros vates tão inspirados, inclusive aqui do extremo norte, como E.
Souza Filho, Ruy Barata, Alcinéa Cavalcante, Manoel Bispo, Fernando Canto,
Paulo Tarso, vejo que tenho muito que aprender na poesia. Consola-me saber que
os excelsos prosadores Machado de Assis e Eça de Queiroz – até hoje, os melhores em língua portuguesa – também nunca
se deram bem nas suas tímidas tentativas como versejadores.
O
poeta pra valer é um bravo que nenhum receio tem de desnudar sua alma em público. Eu nunca
cheguei lá, e acho que, nesta encarnação, nunca chegarei. Já o prosador... ah,
quando se cria obra de ficção a gente quase que vira Deus, de tanta liberdade
que se tem para criar, destruir, reconstruir, matar, fazer nascer, tornar feliz
ou infeliz!
8)
COMO É SUA BUSCA SOBRE O MOTE DE SUAS
OBRAS? DE ONDE VOCÊ OS COSTUMA EXTRAIR?
Grande
parte vem de minha própria vivência, Deus tem sido muito legal comigo, pois, a
despeito de conhecer meus muitos pecados, propiciou-me uma vida aventureira,
cheia de frutuosas experiências. Conheci gente em quatro continentes. Com
muitos, pude comunicar-me no idioma deles próprios. Li, e viajei muito lendo. Como dizia a poeta Emily
Dickinson, “There is no frigate like a
book”. Nem fragata, nem
transatlântico, nem avião a jato, nem foguete, nada é capaz de o fazer viajar
tanto quanto um livro... É assim que, com R. L. Stevenson, fui para a Polinésia
e aprendi com ele a virar Tusitala, ou Story Teller, ou contador
de histórias. Muito criança, desci aos infernos e subi ao purgatório e paraíso
com o Florentino; amei Julieta e chorei em seu túmulo em Verona; participei dos
doze trabalhos de Heracles; roubei o Tarnhelm e debochei do lamento das moças
do Reno, tendo sido recepcionado por Wotan e Freia no Valhalla; cavalguei pela
terras de Espanha com o Cavaleiro da Triste Figura; preguei peças na tia
Nastácia com Emília e Pedrinho; balancei-me nos cipós africanos com Tarzan e os
Manganis; tripulei navios de altos
mastros e enfrentei os ventos cortantes do Cabo Horn; dândi, entreguei-me,
inteiramente blazé e enfiado em
fraque e cartola, a escorrupichar vinho
em meu pichel e a pitar honestos Havana com Eça, na velha Lisboa, e na
sociedade fluminense com o mordaz criador de Don Casmurro. Daí, acho, é que me
vem essa gana de escrever.
9)
HOJE EM DIA, VOCÊ VIVE DE DIREITOS AUTORAIS?
Nem
hoje em dia, nem ontem, nem amanhã. Não sou escritor profissional. Não ganhei
nada com os livros que publiquei. Nada ganhei além da imensa satisfação de
poder conversar com alguém - como com você, Julia – sobre aquilo que escrevi e
que sempre me deu a incomensurável alegria de saber que alguém se interessou
sobre meus escritos.
10)
EXISTE AINDA ALGUMA META PESSOAL E PROFISSIONAL QUE VOCÊ VISA A ALCANÇAR?
Não
sei quanto tempo de vida me resta. Tudo o que fiz, fiz com muita intensidade,
com dedicação, procurando fazer o melhor de mim. Se deu certo, só o poderão
dizer os que me conheceram, os que me conhecerem, ou que me conhecerão pela
conjunto de minha obra. Embora chavão, devo dizer que só me arrependo daquilo
de bom que podia ter feito e que deixei de fazer. Pelos meus erros, pelas dores
que possa ter causado a pessoas – e isso deve ter acontecido – o que posso
pedir é que tenham compaixão de mim e procurem, se assim o puderem fazer, me
perdoar.
11)
SE VOCÊ PUDESSE DAR UMA DICA A ALGUÉM QUE GOSTARIA DE COMEÇAR A ESCREVER, O QUE
VOCÊ DIRIA SER IMPRESCINDÍVEL?
O
Brasil ainda está muito distante de se tornar um grande mercado editorial para
a poesia e para a literatura de ficção. As grandes editoras trabalham mais com best sellers produzidos sobretudo em inglês e suas
traduções para o português do Brasil e europeu. Há obras literariamente
medíocres e que se tornam grandes sucessos de venda.
Que
eu me lembre agora, sucessos de venda no Brasil têm sido Jorge Amado (excelente
em algumas de suas obras, mas não em todas) e Paulo Coelho. Este último soube
cercar-se de uma estrutura de comercialização que lhe garantiu viver como
escritor. Dicas para sobreviver do que escrever, se eu o fizesse, seria pura
contrafação...
Contatos com o autor:
ruigui43@gmail.com
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