Texto: Paulo Tarso Barros
Alcy Araújo Cavalcante, paraense da Vila de Peixe-Boi, município de Igarapé-Açu, nasceu no dia 7 de janeiro de 1924. Morou em Belém durante algum tempo com a sua família e depois viveu em algumas pequenas cidades do interior. Na capital paraense estudou na Escola de Aprendizes Artífices, tornando-se marceneiro, profissão que exerceu durante algum tempo. Mas sua vocação era mesmo para as letras e, a partir de 1941, trabalhou nos jornais Folha do Norte, O Liberal, Imparcial e o Estado do Pará. Chegou a Macapá em 1953 e logo ingressou no serviço público como redator do gabinete do governador Janary Nunes. Em 1956 foi chefe de gabinete do governador Amílcar Pereira. Foi diretor da Imprensa Oficial (1957), oficial de gabinete (1961), chefe de expediente da Secretaria Geral do Governo (1964), trabalhou como assessor administrativo na Câmara Municipal (1971), diretor da Rádio Difusora.
Alcy Araújo foi sobretudo um jornalista que trabalhou em muitos jornais, revistas e no rádio. Ao lado de Álvaro da Cunha - que chegou a Macapá em 1946 e outros funcionários do primeiro escalão, Alcy sempre esteve envolvido com as atividades culturais e intelectuais do Amapá, principalmente a literatura. Em 1957, com a fundação do Clube de Arte Rumo, logo surgiu a revista Rumo e, em 1960, a primeira antologia poética Modernos Poetas do Amapá, da qual foi um dos participantes. Alcy adotou vários pseudônimos para publicar artigos na imprensa visando driblar a vigilância dos governantes militares: Mário Santa Cruz, Nelson Maroin, Sérgio Burocrata, Alcimar Cavalero, Jean Paul e outros. Foi casado com a professora Delzuíte Maria Cavacante, sua primeira esposa, com quem teve os seguintes filhos: Alcione Maria Carvalho Cavalcante, Alcinéa Maria Cavalcante Costa, Alcy Araújo Cavalcante Filho e Alcilene Maria Carvalho Cavalcante Dias. Com a segunda esposa, Maridalva Rodrigues do Santos, casou-se em 1968 e o casal teve cinco filhas: Astrid Maria dos Santos Cavalcante, Aline Maria dos Santos Cavalcante, Aldine Maria dos Santos Cavalcante, Adriane Maria dos Santos Cavalcante e Alice Maria dos Santos Cavalcante. Obras publicadas: Autogeografia (1965), livro de crônicas e poemas e Poemas do Homem do Cais (1983). Participou, em 1988, da Coletânea Amapaense. Em 1997, Alcinéa Cavalcante, em parceria com a Associação Amapaense de Escritores - APES publicou mais uma obra poética: Jardim Clonal. Por iniciativa de Alcinéa (que cedeu as fotos desta matéria), seus poemas são constantemente publicados em antologias, como a Coletânea Contistas do Meio do Mundo (2010) Vale lembrar que em 1960 já se anunciava a publicação de “Poemas do Cais” que só seria publicado 23 anos depois. Deixou ainda várias obras inéditas em prosa e verso. Alcy faleceu no dia 22 de abril de 1989.
Nas palavras de Hélio Pennafort, “Alcy foi um competente boêmio, sagaz jornalista, um incomparável versejador e um carnavalesco de escola, honrando com a malemolência do seu gingado o codinome Nenê da Pedreira, que trouxe de Belém. Titio Alcy foi um dos mais macapaenses de todos os paraenses que ajudaram a desenvolver e animar a cidade”.
Fotografias: arquivos da família
TEXTOS DE ALCY ARAÚJO
FELICIDADE
O poeta hoje está feliz. Está feliz e tem um belo assunto para você. É que neste dia está aniversariando Alcinéa Maria. Não sei se você conhece alguma coisa da minha vida particular e se sabe que eu amo Alcinéa Maria. A que tem cabelos cor de mel e olhos grandes e castanhos, que também me ama, que sente uma necessidade inevitável da minha presença, do meu amor e do meu carinho. Que vai até às lágrimas seu lhe causo qualquer desgosto, mesmo involuntário.
Alcinéa Maria, a que me espera de braços abertos, tendo nos lábios o mais belo sorriso que eu conheço, cada vez que volto para o seu amor, a que vem feliz ao meu encontro, a que pede carinhosamente para que eu não parta, para que eu não a deixe ficar.
Hoje a Bem-Amada está fazendo aniversário e o poeta está imensamente feliz. Confesso que hoje beijei sua face linda, acariciei os seus cabelos cor de mel, sob a luz difusa da aurora e recebi em troca o seu carinho. Confesso que quase não tive forças para deixá-la. Porém, logo mais estarei ao seu lado. Digo mais que só me afastarei para vê-la, mais feliz do que nunca, assistir a minha volta. Você que ama sabe o que é a dor do afastamento e a suprema alegria da volta. Nada é mais belo do que a volta para a Bem-Amada.
Outra confissão que faço a você, aos que não conhecem certos detalhes da minha vida, é que a minha esposa sabe que amo Alcinéa Maria e não sente ciúmes, e fica feliz sabendo que a minha Bem-Amada é feliz ao meu lado.
Como hoje a Bem-Amada está fazendo aniversário, a minha esposa vive comigo os mesmos momentos de felicidade e de alegria.
Um dia magnífico, o de hoje. Alcinéa Maria, a de cabelos cor de mel, de olhos grandes e castanhos, completa quatro anos dentro da sua inocência de anjo.
Deus te abençoe, minha filha.
O poeta no casamento de Alcinéa
POEMA COM DESTINO À NORUEGA
Eu ando com a cabeça baixa e dolorida
tateando na sombra dos guindastes
o corpo flácido das mulheres das docas
dentro das noites do cais.
Por que passam por mim tantos
marinheiros, navios, ondas balouçantes?
Se eu pudesse
descansaria a cabeça dolorida
num saco, num fardo, numa caixa,
depois escreveria um poema simples
e montava-o na onda com destino à Noruega.
E a moça loira que o lesse ao sol da meia-noite
não saberia nunca que sou negro, fumo liamba
e tenho as mãos revoltadas e calosas.
(Autogeografia )
POEMA
Gestos de mãos-violinos
saindo das ondas da tarde.
O adeus das crianças adultas
suicidando-se em massa.
O último pombo branco
fugindo do pensamento pacífico.
O coração fruto boiando no lago
cheio de lama da última noite.
Gestos de mãos-violinos
morrendo nas ondas da tarde.
Já não há música
nem poetas
nem Debussy
nem a moça de tranças
para enxugar as lágrimas de Deus
Nas ondas da tarde
sumiram os gestos.
O PEQUENO JARDIM DO POETA POBRE
Meu jardim é um jardim de poeta pobre.
É um jardim pobre.
Tem apenas uma roseira solitária
e um pouco de verde onde
descanso a vista cansada e míope.
As rosas
às vezes
me comovem
e acendem lágrimas
em meus olhos. Mormente
quando recordo momentos vividos
da infância perdida ou nunca existente.
Também a juventude sofrida
marcada pela vida
abriu feridas
criou impedimentos
que jamais foram transpostos.
As rosas
quase sempre trazem recordações
fazendo doer sofrimentos passados
e a roseira é um espelho da minha solidão.
Talvez por isso fico horas e horas
olhando o jardim
até que o verde enxugue minhas dores.
Certas ocasiões converso
com o meu jardim modesto e feio
mas incrivelmente meu
como minhas têm sido
as mágoas que plantei.
Quando há luar
as sombras do meu jardim
tornam-se mais sombrias
ficam mais nítidas
e desenham pelo chão
arabescos - mensagem indecifrável
das minhas desesperanças coletivas.
Quando é dia
o meu jardim de poeta pobre
fica nu.
Nuzinho de carinho.
Não merece uma olhar de quem passa.
Não acorda nenhuma atenção.
Mas eu sei que ele tem vida
está ali à espera de mim
para receber o meu silêncio.
Somos tristes. Temos sentimentos comuns.
Guardamos segredos só nossos.
Muitas vezes ficamos imóveis
olhando a rua
os carros os casais os homens solitários
povoando de buzinas e de passos
de palavras e de ruídos o espaço adjacente.
Certa manhã minha ternura estava débil.
Então a roseira me ofertou uma rosa vermelha.
Acolhendo-a com emoção de amante.
Depositei-a nas mãos
daquela que haveria de vir.
Meu jardim também serve
para penitências.
Debruço sobre ele os meus singularíssimos pecados
e transponho perdoado
o verde e a roseira.
Encontro sempre com Deus no meu jardim à noite
principalmente se há luar.
Talvez para nutrir a lição de humildade
que Ele e eu oferecemos
inutilmente aos homens.
talvez para acender melhor
o claro amor
que exibimos aos olhos indiferentes
dos que passam sem perceber o pequeno jardim
vivendo no mundo.
E eu que sou terno
bom
e sei rezar um verso.
O POETA ADOTA OUTRO CAIS
Há uma canção permanente em meus ouvidos,
- São as ondas batendo na pedra no cais,
do velho cais natal que abandonei.
Não é saudade não, meu cais antigo.
É esse desejo de fuga, essa inconstância itinerante
de marinheiro, de onda, de verso.
Por isso vim agora, cais natal.
Não é ingratidão, não; é esse desejo de paisagem,
de rever outros portos.
Não bem rever, assistir ao parto de outro cais
- um cais mais novo, mais humano,
mais pesado,
carregado de idealismo e de metais,
com apitos de locomotivas egressas
do ventre da montanha,
- Um navio imenso fecundando as entranhas
de outros navios menores,
na cópula pesada do minério.
Não mais os bares das docas,
- agora o barracão.
Não mais os marinheiros bêbados,
- agora o operário suarento.
não mais o ranger obsoleto dos guindastes,
- agora a sinfonia das modernas britadoras.
Não mais o velho cais natal que abandonei.
Fac-símile de texto publicado no jornal O Amapá - anos 50)
POEMA PARA ALCY
Anjos, Serafins,
Querubins:
as hostes te disputavam mas,
por bondade divina,
te deixaram conosco
por 66 anos.
Invejavam teu imenso amor
e sempre diziam ao Pai:
o que faz esse anjo torto de Peixe-Boi
naquele planeta equatorial escrevendo crônicas,
redigindo ofícios e despachando papéis do governo?
O que faz esse Anjo Bêbado naquele
planeta onde crianças passam fome
e são assassinadas ?
Ele é um de nós, Pai,
mas aprendeu a beber uísque
e a fumar cachimbo.
O Anjo Alcy amava os jardins,
os dias chuvosos e os tantos filhos que teve
com as mulheres que amou.
Apesar de anjo da mais alta hierarquia,
fez questão de pousar na terra e
viver perto do rio-mar
somente para imaginar-se na imensidão
amazônica e navegar até a Noruega.
Sim, o anjo Alcy gostava das caboclas
ribeirinhas, das moças do cais e
sonhava com as deidades nórdicas
que emergiam dos seus poemas
- que sempre contavam com a visita
dos anjos mais puros e loucos do universo.
(Paulo Tarso Barros)