C O N T O S
RAIZ DE ANO-NOVO
“A vida é crua. Faminta como o bico dos corvos.
E pode ser tão generosa e mítica: arroio, lágrima.
Oljo d’água, bebida. A vida é líquida.”
(Hilda Hilst)
Caminhando a poucos metros das laterais dos muros baixos, observo nas plantas o viço, fruto do incipiente inverno; o cheiro da terra lavada esfrega-se em minhas narinas. Natal é passado, graças a Chrónos. Avesso à bondade dezembrina dos homens e ao mercantilismo vestido de papai-noel, sou menos um na estatística dos que cultuam esse folclore. Em mim, a melancolia plantada na alma produz sua flor inexplicável. Um jasmineiro enche a tarde de odores brancos, eu exalo amargura.
Mudará o ano: seis dias faltam para atravessar-nos a esperança por dias melhores, a despeito do caos visível. Lembro de nós dois. Do meu desejo de passarmos juntos — e unidos — o fim do ano. O receio de término é um fel no cerne da minha língua. Por mais que eu o cuspa, não logro livrar-me dele. À frente, rodas apressadas transportam metade da poça à saia da senhora a caminho da missa vespertina. O seu susto desperta-me das divagações lamentosas. Deixo o sol de inverno arder-me no rosto e sigo, pisando em falso na estreiteza da perplexidade.
Empurro a porta da sala. Rangem as malcuidadas dobradiças avisando-a de que estou em casa. Ouço um "olá" pálido, saído do escritório. Vejo suas costas aprumadas, imóveis se não chegassem ao braço destro os ziguezagues da caneta. De um lado da escrivaninha, ruma de provas a corrigir, do outro, a garrafa com chocolate — forte e meio amargo — provavelmente pela metade. O cabelo suspenso por um grampo de metal expõe o pescoço claro, lisinho, como se estivesse à espera de meu toque. Não me aproximo. Seus afazeres de mestra diligente recusar-me-iam, com provas de exaustão, exercícios de desculpas, como de fato já o fizeram em inúmeras tentativas. O rechaço torna-se-me mais agressivo dado ao seu distanciamento cortês, em nossa relação de oito anos. Uma polidez de unhas perfeitas e afiadas, enfiadas em meu rosto.
Os móveis negros, revestidos pelo descaso, têm nódoas e pontos mofados. Esgueiro-me pelo espaço da sala, circunscrito a cinco metros quadrados ocupados. Tudo muito pequeno e farto de livros, de discos antigos e silêncio. Ando farto de tudo. A foto dela sem sorriso, exposta no bar, também me revela isso. Inversamente aos primeiros anos, quando as aquisições iniciais provocavam-nos comemorações efusivas. O apartamento ficou do jeito que a encantava. Olhava-a com enternecimento, e feliz com sua vivacidade e bom humor — contrastantes ao meu jeito introspectivo de ser. Naquela época, absorvido por um sentimento desmesurado, desisti de todos meus casos, antigos e futuros, sob protestos dos amigos. Nem de amigos precisei mais.
Em volta, as paredes abafam-me; espalham-me seu escuro, sufocam-me. Pastas empilhadas em cima da mesa, das cadeiras, empurram-me para fora, competem comigo por espaço. Hesito em afastá-las do caminho. São austeras, têm corpos musculosos de papéis. Condenam minha presença e o meu olhar enviesado a elas. No canto, a rede de sisal. Parada. Será o segundo fim de ano sem celebração a dois, sem festa particular. E houve muitas.
Não sei precisar em qual data amarrotou-se a lisura do seu encanto por mim. Ocorrera na época em que ela entupiu as parcas horas de folga com aulas extras? Ou quando minhas conversas, sem liames com as suas, desataram no desentendimento? Conseqüências, puras conseqüências. Evidenciou-se quando eu, ao procurar carinho, achara sua pele fria, esquiva. Creio que levitava a alma ao menor contato do meu corpo. O que a conduzira à estação dos toques repelentes? Suspeitava de qual seria a resposta, por isso nunca lhe perguntara. Casais com mais de cinco anos de teto agarram-se, como caramujos, no limo do companheirismo, nas paredes do patrimônio construído. A muito custo aturam-se, dizem. O amor esmaece a partir do quarto... O desastroso é quando o desamor é unilateral.
Como efeito da maré de desprezo, ancorou-me um barco de despeito e ira. Ao pretender que visse minha importância, ofendia-a desbragadamente e mais agravava a agonia do sentimento moribundo. O revide chegava-me em forma de olhares de repulsa, apatia pelo meu desatino, e abandono da discussão. O mutismo contrastava com seu cantarolar, o chalrar de outrora. As olheiras, acentuadas, se justificariam pela estafa do excessivo trabalho, se não fossem um disfarce para ocultar o incômodo de minha companhia. O lugar que ocupava na cama estava invariavelmente frio. Flagelava-se: conservava-se atarefada até alta madrugada, esperando que o sono me vencesse o desejo. Minha insistência fingia não entender que a cama não compartilhada era o seu manifesto ao amor repelido.
A rejeição, gradual, espicaçava meu desespero. Suspeitava de amores clandestinos a exaurirem sua paixão por mim. Quis me vingar. Retornei aos bares, às conversas frugais dos velhos amigos e novas amigas. Demorava a voltar do trabalho e, ao retornar, enunciava desculpas inverossímeis, por mais que ela não perguntasse. Deixava souvenir de motéis em lugares óbvios; afastava-me para atender às chamadas telefônicas. Ansiava por uma reação vulcânica. Qual nada. Tampouco eu discutia. Questionar, para quê? Desconcertante, extremamente desconfortável, seria escutar não gosto mais de ti, tenho-te asco, e ter ásperas verdades friccionadas no rosto.
Esquadrinhando seus papéis, deparei-me com um poema escrito à mão: não serve às paixões imperiosas o sal que entornamos dos olhos quando a ausência tem a mesma temporalidade das bolhas de sabão. Primeiro, lamentei a inata incapacidade poética que jamais me possibilitou, sequer, de preencher um cartão com dizeres originais. Interpretando a mensagem, porém, invadiu-me o ciúme cabal, homocêntrico. Atingiu-me o âmago e se propagou às pontas dos dedos. Fiquei impassível. Retirei o papel dentre os demais e o coloquei visível, amparado numa das divisórias da escrivaninha. Quis que ela visse que eu o havia lido. Não o retirou da posição, nem se manifestou a respeito.
O ruído das folhas e o vai-e-vem da esferográfica são os únicos sinais de vida que me chegam aos ouvidos. Impelido pela nostalgia, vou ao quarto. Agacho-me, encosto-me à parede e as suas ranhuras. A tinta deixa-me marcas na camisa, que sairão. O que me mancha por dentro, talvez. A cama, inóspita, encara-me como a um estranho (ou por que lhe sou bastante conhecido?). Fora nela que eu, tantas vezes, desorientado pelas nossas discussões, abafava as lágrimas, desmentindo a antinatural — e propalada — aridez dos homens.
A bandeja sobre o criado-mudo, a tesoura de podadura sobre a penteadeira e a filmadora abandonada no assoalho até denotariam desleixo na arrumação se fosse outra mulher que morasse nesta casa. Eu as interpreto como provas declaradas de seu desânimo para com nossa vida. De cima da cômoda apanho a tesoura, comprada para servir ao jardim de inverno, que não vingou. Empunho-a com vigor (estremece-me sabê-la ter o poder de vivificar plantas por meio de talhos profundos). O mal cortado pela raiz penso no adágio. Raiz, semanticamente, pode significar final e também começo.
Os pensamentos sobem-me efervescentes e energizam meus membros. O fim e o recomeço pesam alguns gramas em minhas mãos. Aproximo a tesoura de meu rosto. À frente dos olhos, instantaneamente, surge-me o escritório. Ela inerte. O pescoço oferecendo-se à poda. Um golpe azul, lâmina sobre a alvura... A tinta vermelha das correções escorrendo pelos meus dedos. O espírito, dilatado, libertando-me das frustrações dos últimos anos. Minha face estremece ao encosto do metal frio. Arregalo os olhos, desperto. Sobre a cômoda, largo a tesoura e o fardo anoso. Escancaro a janela para o início da noite. O vento, encorpado, que agora carrega a chuva, instiga-me necessidades verdes, arbóreas - espaço sem vasos. E sem raízes. Desse esmaecido jardim conjugal preciso, tão-só, de algumas mudas de roupas.
................
O conto Raiz de Ano-novo que obteve a 3ª colocação no XII Concurso de Contos da Região Norte, promovido pela UFPA e publicado na coletânea 15 Contistas da Amazônia (Belém, 2005).
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INSÍDIAS DA
CURIOSIDADE
Maria,
A dor agora me é imanente, indissociável. Cá estou eu,
entre meus dentes, mastigando angústias no prato do sol que aos poucos janta
esta madrugada. Angústia tem vários sinônimos: é secura de escuro, é rachadura
fresca, é esgoto famélico que nos engole repentinamente. Tem sabor de terra
azeda, cozida ao sol. Vazio no estômago, quando a fome de respostas, embora
saciada, não nos satisfaz. Quase não tenho chão, te digo. Estou etérea, aérea,
porém impotente para voar. Na cabeça somente pensamentos de chumbo.
Quando as dúvidas afligiram-me, meu grande desejo foi que as imagens
tivessem ficado retidas no espelho, Maria, para eu analisar os fatos. Assim,
poderia obter provas da suspeita de que outra pessoa esteve no interior do
nosso carro – assumindo meu lugar, ou protagonizando o papel de namorada,
perdido por mim no teatro dos anos. Que se utilizara, sim, do espelho no
protetor de sol do carona, o qual encontrei abaixado, fora da posição em que eu
o deixara. Sentada ao volante, ficava imaginando-o cumprir um ritual de meses
ou anos... São esses pontapés primeiros, intrigantes, que nos desencadeiam a
dor da ansiedade, a curiosidade de querer saber mais e mais.
Antes da celeuma total dos meus nervos, eu filosofava:
todos têm o direito de se envolver com alguém, sem compromisso. Isto é mais do
que permitido pelas leis naturais – é quase exigido. Foi a sociedade, com
preceitos moralizadores, que forjou uma estrada de relacionamentos
indissolúveis e retos, instigando, assim, o exercício dos desvios. Desvios
masculinos, tão-somente. E quanto aos meus desejos? Porque mulher também tem,
Maria, vontades iguais e, às vezes, até maiores. As instituições é que não lhe
são condescendentes. Teorizei muito, amiga, antes de deparar-me com o óbvio: quando
fome, medo, traição, berram na nossa pele, a razão cicia, fala pouco.
Certa tarde, um céu cinzento jogava seu hálito frio de
encontro à vidraça da janela, embaçando-a. O som do telefone dele aqueceu o
ambiente. Com desculpas improvisadas, avisou que iria sair. A vontade que tive
foi impedir-lhe a partida jogando no seu rosto, de chofre, minha desconfiança.
“- Minha intuição não falha! Mentiroso! “- Intuição é falta de inteligência, de
siso”, ele teria devolvido e dado de ombros. Eu estaria a partir de então com o
passional cinqüentão prevenido e sem remorsos. Se é que estes existem. Natural
foi posar de crédula em sua mise en scène
de marido atarefado para evitar suspeitas. Retornou após três horas e quinze
minutos – exatas. Recebi-o com um beijo arreliado, na intenção de provar o
gosto dela. Meu pensamento encheu-se de imagens sensuais, distorcidas, e eu a
odiei intensamente. Transferir a irascibilidade à terceira pessoa é praxe em
infidelidade conjugal, Maria. A tendência é abonar as faltas do parceiro.
Nas tardes seguintes isolava-me num porto, observando
borboletas empurradas por espirros de ar, a passear seus cios em busca do
acasalamento. Só os insetos são criaturas alegres. Não constroem lares e nem
têm tempo de vida suficiente para envelhecer e serem substituídos. A juventude
ninfal de minha adversária implicava uma querela desleal com meus quarenta e
cinco anos de vida – e vinte de casulo nupcial. Imaginava-a possuir o biótipo
longilíneo de quem ainda nem parira. Como, Maria? Como matar a crueldade desses
amores que se crisalidam nas carcaças da relação antiga?
Numa manhã, decidida pela certeza, não fui ao
escritório. Na ausência dele escavei gavetas, bolsos de paletó e pastas
comerciais aparentemente estéreis desses assuntos. A sofreguidão dos dedos
contrastava com a cautela; esmiuçar sem desarrumar; concentrar-me na procura,
atenta a quaisquer ruídos estranhos interferentes na cumplicidade do silêncio.
Foi quando as indicações chegaram-me às mãos. Entre notas fiscais achei cartões
de mau gosto, com frases imbecis “Você é a pessoa mais importante do mundo. Eu
te amo. A. D. 23.04.96”. Muitos outros... 97, 98... Anos! E, atualíssimo, um
bilhete em papel decorado dizendo “a aula termina mais cedo na sexta, às nove,
nove e meia. No pátio do colégio, vai ter uma exposição de fotos. Me apanha?
Beijo. 25.02.99”. Coraçõezinhos, nuvens e citações de Paulo Coelho arrematavam
o recado. Exposição... Colégio Vicentino.
É estranho o que te vou revelar, mas naquele instante
senti pena da garota. Não sei bem explicar. Muita amabilidade existia onde eu
esperava sensualidade, argúcia. Senti-me menos infeliz por perceber falta de
ladinice à criatura – uma grande falha, caso ela tencionasse tê-lo
definitivamente. Aumentou-me a curiosidade aquele gostar do tipo amor-adolescente-infantilóide. A
competição pareceu-me menos difícil.
Noite da véspera, extensa e incômoda. Posso jurar-te
que dormindo ele sorria. Fui à sacada. Em pouco mais de três horas, dezoito
cigarros ajudaram-me a traçar o plano da descoberta.
Saí do velho cais rumo à conclusão dos meus projetos.
Desapareci a tarde inteira. Nem passei em casa para evitar que ele pedisse o
carro. Assumi o seu lugar a poucos metros da porta do colégio, num trecho
semi-iluminado onde poderia ter o automóvel visto sem, no entanto, ser
identificada. Minha expectativa era de que, vendo o chevrollet familiar, a
garota se aproximasse. Queria muitíssimo ver, perto dos meus, os olhos que não
encontrara no espelho retrovisor; fazê-los sentir a força de viver que se
concentra num ser ameaçado por uma doença letal.
Muitos alunos agrupavam-se na escada à hora da saída.
Leva deles, como pássaros soltos de gaiolas, arrulhavam conversas
ininteligíveis. Duas moças foram se aproximando do carro. Meu peito disparou ao
reparar que a menina de 14 ou 15 anos observava-me atentamente (ou tentava
adivinhar-me pelo pára-brisa) vindo em direção ao veículo. Era, meu Deus, uma
ninfeta com idade de nossa filha! Andar chamativo numa calça justa, caminhar
seguro. Sorriu. Passou sem fazer menção de parar. Expirei longamente o
desconforto.
Nada mais parecia mover-se no tempo, exceto as
esponjas escuras no céu, sugando estrelas e criando tônus. Muitos caminhavam em
sentido oposto ao meu, porque a parada de ônibus estava adiante. Quase dez
horas. Iniciou um chuvisco e os ajuntamentos começaram a se dispersar. Um grupo
deslocou-se em minha direção, Maria. Duas moças, que me pareciam familiares,
uma senhora e uma criança vinham na frente de um garoto que, ainda lento,
seguia atrás. A chuva desceu em negritude. Os cinco correram. O moço
retardatário, por causa do aguaceiro, também acelerou. Veloz. Com a cabeça
baixa, abriu rapidamente a porta do carro jogando-se ao meu lado. Respirava
ofegantemente, mas sorria.
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Chico Terra, Graça Penafort, Paulo Tarso, Eliude Viana e Ana Viana na Confraria Tucuju - 2012 (Arquivo: Paulo Tarso Barros) |
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P O E M A S
Oi, Paulo, escolhi estes 22 para que faças tua seleção. Só te peço que avises a
quem for transferi-los ao livro para manter as formas e o estilo de cada um
(alguns não levam letras maiúsculas nem no início, outros não tem título e a
maioria tem versos recuados na margem esquerda). Abraços. Elíude.
(1)
Jamais olha
a quem queres bem
apenas
por olhar.
Sente-o.
Percebe-o.
Perscruta-o
Observa o que te mostram
os outros prismas
o por enquanto
o ao redor
o por sempre
o por dentro
para que o absorvas
de espírito
e carne
até à medula
das palavras.
E quando ele,
num dia absurdo,
se for
perdido
mutilado
afastado
roubado
te for,
poderás reconstituir
na alma tua
o seu pleno significado.
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(2)
Pousas-me
como outrora se punham
passarinhos no asfalto
ou desciam libélulas fora do mato
- libentes, sem ter porquês,
desafetadamente.
Chegas-me por e-mail.
Modifica a sala a tarde amarela
como se, por estar a tua espera,
pintasse-a da cor dos teus olhos.
O ar se purifica
com tua notícia
umedecida.
Até as dores veladas
no meu ser escalavrado,
no lenitivo da tua voz
(imaginada)
na maciez do teu tato
(subentendido)
são-me saradas...
.....................................
(3)
anagrama
coloco teu nome
no centro da
página
e o leio
de trás pra frente
de cima pra baixo
do centro para os
lados
imitando o modo
diferente
com o qual me
desmontavas...
e vou
descrevendo-o
letra por letra
dissolvendo sílaba
por sílaba
unindo
abecedários, cartilhas,
no desvelo com que
me remontavas...
amasso-o, estico-o,
refaço-o
até me virem
formatos
inominados, não
repetíveis,
de teu corpo
humorado, recreado,
recriado em
neologismos
que meu corpo, por
tantas releituras, soube decifrar...
..............................
(4)
Tateio esta cidade
como ao teu dorso
e a beijo
e a contemplo
com as mãos.
Descubro
que ela me acontece
melhor em agosto
pois que me renasces.
Se me disponho a esquecê-la
fecho o álbum da memória.
Ela, imagem móvel,
me salta
aos olhos.
Símile tua.
Namoro esta cidade
pelo olfato
pelo palato
e a diluo, amolgando-me
as suas casas e reentrâncias.
A cada contato
descubro seus segredos:
nos relatos de histórias,
verdadeiras ou inventadas ,
também estão meus fatos.
................
(5)
(ao Júnior – in memorian)
Ficou a lembrança da roupa
com cheiro do teu corpo,
na gaveta da minha alma puída.
Tuas camisas, distribuídas,
eram-nos teus últimos contatos.
O teu retrato, nem precisava,
mas o colocamos à parede.
O fim, de fato, é triste.
Mas quem pode assegurar que não existes?
Se todo fim de tarde
ouvimos teus passos,
e o cheiro do pão que trazias
irrompe nossa sala
reinventando tua alegria, tua voz,
e a poesia da tua vida tão célere...
..........................
(6)
O Poema
Quando com verbo
o papel acaricio
em mim algo silencia.
Não vejo, mastigo imagens.
Não pego, reparo com as digitais.
Onde fito
miro o infinito.
Onde toco
sinto sentimentos.
Silhuetas, amores estranhos,
palavras soltas, dores presas,
circunscrevem-me.
No espaço, meu eu percuciente
espalha–se,
reiventa-se
descrevendo-se em poesia.
..........................
(7)
Jamais, dama de porcelana,
haverá amores alinhados.
Casas exatas,
que somadas no final
não possuam saldo devedor;
cujos parceiros
permaneçam inteiros...
Sobram resíduos,
restos de perjúrios.
Matemática inexata
é a união de um mais um.
Um casal nunca são dois.
............................
(8)
Toque-me com cuidado
mas sem racionamento;
Use de todas as artimanhas
sem fingimento, porém.
Simule que vem
como quem vai passar
porém dá um jeito de entrar...
Na minha vida, brevemente,
se adentre
feito kamikase –
por fé e pátria causa;
seja devasso, fatal,
ou simplesmente
homem real – que eu dispenso
quaisquer homéricas façanhas.
............................
(9)
Os ignorantes pedantes
desafiando as leis naturais
nascem surdos,
mas não mudos.
..........
(10)
Atrativos
Se estou inverno
escorres em mim
feito chuva...
Se estou lua
cresces em mim
feito maré...
.....................
(11)
Pela sala...
O silêncio do
calor
é
interrompido
pelo
riso umedecido
do
teu perfume.
........................
(12)
Atraso
A demora
fraqueja-me:
confiro,
exasperada,
as horas;
juro abandonar
a sentinela;
desforrar no outro
encontro
a espera.
Embora saiba,
no fundo da mente,
que a namorada em
mim é masoquista
descumpre
promessas
sofre de amnésia
e gosta de ti
perdidamente.
..................
(13)
Atalhos
Não tenho direito
nem
torto
de, amando,
te andar absorto;
Errar os passos,
em certos caminhos
passar...
Não há laços
-
há Nós, e
Não estamos a sós
nesta
trajetória.
....................
(14)
Oásis
Fosse
tua boca
um cacto
e eu
um tuaregue
perdido
em desérticas areias
sugar-te-ia
avidamente
até os espinhos.
............................
(15)
Córrego de quintal
O rio que
escorrega
valeta abaixo,
sob a janela,
parece com ela
quando desce
o tobogã do meu
desejo
formatada
em barro airoso
e
inverno.
.......................
(16)
Sob os abajures
Teu olhar,
por trás da míope
retina,
vê-me silhueta de
menina,
a
despir-se no embaçado quarto.
Na mímica dos
abajures, de fato,
a projeção é feminina
– mulher ora
profana, ora sutil,
à
sombra de teu desejo
nada
pueril.
.........................
(17)
Corsários
Se fixo meu olhar
no teu mais do que móvel olhar
vejo
em teu peito transparente
um Mar inquieto.
Meu olhar fugidio diz
ao teu olhar premeditado
“meu barco não alcança tua enseada...”
Não podendo pisar às areias de tua praia,
a mente seguirá tua rota
até um porto
imaginário
...ouviremos, a sós,
o Corsário cruzar as ondas do som...
distantes
das vagas enfurecidas do destino
que deram a cada
um de nós
outros rios,
outros caminhos.
...........................
(18)
questão marítima:
em qual porto haverá de chegar
o desejo de apaixonar
que me navega?
....................................
(19)
quando tiveres no corpo
a vontade cobra
de andar de rastreio
como a paixão manda/exige
para crescer, evoluir,
eu te subirei no altar dos olhos,
dir-te-ei SIM
hipnotizada, perdida,
feito pássara em alçapão.
.............................
(20)
anonimato
ter voz, audição, visão
e tato
sem o dever de sentir, ver, falar, ouvir.
estar como um porta-retratos
em cômoda antiga
ou em alta prateleira,
isento da curiosidade alheia.
estar como vegetal
árvore brutal e singela
- raiz, seiva, sombra, vida pulsante -
que, extraída e morta, volta
mouca que nem uma porta.
.....................
(21)
cerrando
guardar,
para lembrar repetidas vezes
- até acostumar-se -
é outra forma
de esquecer
a existência das coisas.
......................
(22)
a tarde nubla:
acende-se a cicatriz da chuva.
entre lampejos eu te revejo
atravessando o quarto.
para molhar meus ouvidos
com palavras d’água...
para beber do meu amor
a quentura...
.......
Informações sobre a autora:
Foto: jornal Diário do Amapá
Seus textos são curtos, objetivos e desprovidos de adjetivos supérfluos ou palavras acessórias. Elíude é uma poeta que possui senso crítico bastante acentuado, cuida pacientemente de cada texto, tornando-o enxuto, cristalino e cheio de beleza. Por cultivar o haicai, uma de suas características marcantes é concentrar num mínimo de palavras toda a força expressiva de sua poesia, que vem crescendo em qualidade e obtendo o reconhecimento dos leitores e estudiosos, como já declarou a jornalista Vânia Beatriz, de Rondônia, no jornal Alto Madeira: “É no momento um dos grandes nomes da poesia amapaense, destacando-se inclusive fora de seu Estado. Detentora de versos dinâmicos, Elíude tece o lirismo em meio a um belo jogo de palavras e já foi premiada em Minas e no Rio de Janeiro”.
Elíude publicou alguns poemas na Revista da Literatura Brasileira nº 9, de São Paulo (1998) – e contos na Revista de Literatura Brasileira nº 29 (2003). Também está presente na Internet em vários sites de poesia. Junto com a professora Zila Patrícia, pesquisou o universo das narrativas orais sobre o folclore amapaense e produziram o livro “Era uma Vez... Historinhas do Amapá”, totalmente em versos e que ainda permanece inédito. Obras publicadas: Novos Poetas (antologia); Vestes da Alma (poemas, 1997) e Das Páginas Arrancadas (livro de bolso, 1988).Livros infantis com temática folclórica regional: A pescada e o tralhoto; A cachoeira que geme; O trono tarumã; O cipó-de-fogo e A pedra do rio. Livros didáticos com temática ambiental: O pescado que nos sustenta: como garantir sua defesa; O lado cinza das queimadas; Água, seiva da terra: por que conservar os rios; Meio ambiente: as mudanças que fazem a diferença. Livros institucionais: Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) e sua aplicabilidade no sul do Amapá e PEGA: Programa Estadual de Gestão Ambiental.
Contatos com a autora: eliudeviana@gmail.com
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Elíude Viana considera-se paraense e amapaense, pois entregou e recebeu
de Macapá quase a metade de sua existência. Atualmente, seu nome é um dos mais
importantes da nova geração de poetas.
Formou-se em Letras pela Universidade
Federal do Amapá. Tem dois livros de poesia publicados – Vestes da Alma e Das páginas arrancadas –; cinco livros infantis
com temática folclórica regional – A
pescada e o tralhoto, A cachoeira que geme, O trono tarumã; O cipó-de-fogo e A
pedra do rio -; quatro livros didáticos com temática ambiental – O pescado que nos sustenta: como garantir sua defesa, O lado cinza das
queimadas, Água, seiva da terra: por que conservar os rios, Meio ambiente: as
mudanças que fazem a diferença –; e dois livros institucionais – Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) e sua
aplicabilidade no sul do Amapá, PEGA: Programa Estadual de Gestão Ambiental.
Um comentário:
cultura amapaense é isso.
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