Conto de Fernando Canto
1.
Caía uma chuva fina e chata. Era a
véspera do dia primeiro de janeiro de 2015.
Perto da meia-noite eu e meus
elegantes parentes fizemos a ceia e desejamos um ano próspero e saudável recíproco,
nos cumprimentando e nos abraçando uns aos outros, registrando nossa felicidade
em fotos e filmes, mostrando sorrisos lindos em selfies maravilhosos nas redes sociais, até que minha irmã não se
conteve e falou sobre a ausência de nossa mãe que havia morrido entalada na
ceia de natal com um naco de peru assado. Foi uma choradeira geral que acabou
com a festa. Eles se despediram e eu fiquei em casa com a mulher a olhar pela
janela de vidro os carros se afastando na chuva. Ninguém quis esperar as doze badaladas do
velho relógio de parede que antigamente encantava os olhos dos meus sobrinhos.
Abri o Chandon sem escutar o barulho
da rolha estourando, pois lá longe, na frente da cidade, belíssimos fogos de
artifício explodiam em cores, desenhando novas estrelas sob um céu escuro e
chuvoso. Eu nem reparei no tempo passando. A chuva aumentava de intensidade
jogando grossos pingos na vidraça. Bebi a última taça do champanhe e fui
dormir.
2.
Ao acordar,
ainda cedo, chamei Norya para caminharmos como fazíamos todos os dias. O dia
amanhecera calorento, mas com indícios que não choveria mais. De fato, o sol
surgiu nos dando a luz que a esperança traz nesses momentos ritualísticos de
transição para um tempo bom que todos querem. No percurso as pessoas se
cumprimentavam desejando sorte, saúde e prosperidade, o que, aliás, é uma coisa
que gosto nesse período porque elas mal falam com a gente e nem sequer nos dão um
bom dia no resto do ano, mas agora são educadas e comunicativas. Agem com
cortesia e educação como se fossem sempre assim. Nessa época muitas delas
parecem mesmo felizes, e eu reitero que acho bacana. Estou convicto de que não
faço parte da plateia que as aplaudem em suas atuações anuais. E ademais todos
vestem suas máscaras para se dar bem. Inclusive eu no meu trabalho, onde tenho
que lidar com hipócritas todos os dias.
3.
Caminhamos
cerca de sete quilômetros em uma hora, como sempre. Falamos do cotidiano, dos
filhos que mandamos estudar nos Estados Unidos e que por lá ficaram pelas oportunidades
de emprego e segurança; da nossa saudade deles e dos netos; dos nossos
trabalhos e da nossa solidão. Às vezes falávamos em viajar, mas sempre aparecia
algo que nos fazia adiar o projeto. Era bom falar sobre isso porque já
sentíamos o peso da idade e tínhamos que ser sempre companheiros para o que
viesse. Eu já tinha uma doença crônica que controlava com remédios, e em Norya
foi detectado, mas felizmente depois extirpado um câncer no cérebro, após uma
delicada e bem sucedida cirurgia. Mesmo assim ela se submeteu a um doloroso
processo terapêutico que a deixou quase irreconhecível por muito tempo.
1.
À noite
Norya e eu nos vestimos a caráter como no dia anterior e arrumamos a mesa nos
preparando para a ceia familiar. Lá fora caía uma chuva fina que parecia não
querer parar mais. Antes da meia-noite fizemos a ceia familiar, nos
cumprimentamos e registramos nossos momentos particulares. De repente, minha
irmã, tão sensível que era, começou a chorar falando o nome de mamãe que há
poucos dias havia se engasgado com um pedaço de peru assado em plena ceia de
natal. Consternados pela lembrança da matriarca em sua tragédia, meus parentes
foram embora nos deixando tristes. Choravam muito sob a chuva que caía até
entrarem em seus carros e tomarem o caminho de suas casas. Eu abri uma garrafa
de champanhe e fiquei olhando o céu estrelado das cores dos foguetes que
explodiam no céu escuro para as bandas da Beira-Rio. A chuva engrossara e batia
com força nos vidros da janela. Tomei a última taça e fui dormir.
2.
De manhã bem
cedo acordei Norya e fomos caminhar como sempre o fazíamos. E o sol surgiu
trazendo novas esperanças. Os passantes nos cumprimentavam felizes porque era o
início de um ano que prometia ser melhor que o anterior. Eu comentava com minha
esposa sobre como nossos colegas de caminhada eram corteses neste dia, já que
eles nunca nos cumprimentavam, o que me fazia sorrir de contente e dizer a ela que
gostava daquilo porque cada um põe a sua máscara no seu dia-a-dia para
sobreviver, igualzinho a mim no meu trabalho.
3.
Caminhamos
como de costume aproximadamente sete quilômetros em uma hora. Falamos de tudo:
dos filhos e netos no estrangeiro, da imensa saudade deles, das nossas
ocupações profissionais e da nossa força para continuar vivendo sós, sempre
colados, afinal estávamos ficando velhos e já havíamos passado por momentos
terríveis de doenças graves. E Norya passou por momentos críticos durante o processo
de cura de um câncer no cérebro.
Certa noite,
quando preparava a ceia de ano novo para a família em casa, me dei conta que
aquilo vinha se repetindo como uma liturgia todos os dias do ano. E fiz um
esforço supremo para lembrar algo que não fosse a nossa vivência dentro dos
acontecimentos dessa noite e os do dia seguinte. Não consegui.
Antes dos
parentes elegantes chegarem reparei no relógio que antigamente encantava as
crianças da família: batia nove horas. E seus ponteiros continuavam girando em
sentido horário. Olhei-me no espelho da antiga cristaleira da sala e enxerguei
minhas barbas tão brancas quanto a de Papai Noel. Também constatei uma espécie
de vulto de Norya e a ausência de alguns dos meus parentes. Era uma constatação
angustiante e sofrida como um paradoxo de tempo em minha memória, assim como se
fosse um ferro em brasa penetrando na cabeça sem queimar, algo que quer fazer a
lembrança fluir, mas encontra um paredão inacessível. Pessoas e carros viravam
sombras embaixo da minha janela sob a chuva contumaz e os brilhos dos fogos de
artifício coloridos caíam lentos no espaço escuro da noite. Eu começava a me
embriagar com a última taça de champanhe e já não conseguia dormir.
De manhã bem
cedo em um desses dias de chuva fina quando as notícias dos jornais se repetiam,
acordei a sombra de Norya para a caminhada matinal. O sol já se abria e as
pessoas se cumprimentavam e nos desejavam saúde e prosperidade, embora não
tivessem mais o entusiasmo e os mesmos sorrisos de antes. Ao chegar em casa
encontrei o celular da minha mulher em cima do sofá, e ao manuseá-lo vi um
calendário do ano de 2015. Certamente ela havia tentado sair desse ritual que
nos prendia a um tempo pesado e mórbido que se derramara sobre a vida de todas
as pessoas da cidade. Comecei a lembrar dos acontecimentos repetidos e num esforço
sem precedentes não bebi mais champanhe e abri a janela de vidro para a chuva
entrar em casa até amanhecer o dia.
Foi Norya
que me acordou desta vez, não a sua sombra. Caminhamos entre carrancudos
passantes e uma chuva torrencial lavou a calçada enquanto o rio Amazonas
dançava espocando suas águas no muro de contenção. Norya me olhava assustada e
cúmplice, porque sabia que o ritual que participamos tantas vezes era
imprescindível para vivermos. Imperioso era não morrer com nossos históricos
apagados pelos cumprimentos, desejos e lembranças num mundo moderno que
comprimia uma soturna solidão estampada no rosto dos caminhantes, os mesmos que
punham suas máscaras demoníacas nas festas de fim de ano.
À noite
vesti meu velho terno branco e Norya o seu melhor vestido. Ninguém veio nos
visitar. Jantamos à luz de velas e adormecemos felizes ouvindo o barulho da
chuva na vidraça.
*******
De manhã
cedo foi Norya que me acordou e não a sua sombra. Então caminhamos sorrindo
entre o vai-e-vem dos passantes, embaixo de um novo temporal que nos lavou a
alma. O ano novo se aproximava novamente, pois o grande relógio digital da
Beira-Rio o saudava em seu letreiro. Era a véspera do dia primeiro de janeiro
de 2035.
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Fernando Pimentel Canto, paraense de Óbidos, radicado em Macapá, nasceu no dia 29/05/1954. É sociólogo, poeta, escritor e compositor (atuando no Grupo Pilão), servidor da Universidade Federal do Amapá - Unifap, onde implantou a Editora e Rádio Universitária e já publicou, dentre outros, os seguintes livros: Os
Periquitos Comem Manga na Avenida (poemas, 1984); São José de
Macapá - Roteiro Poético (1985); Telas & Quintais
(artigos e crônicas, 1987); Fedeu, morreu! (poemas, 1992); O
Bálsamo e outros Contos Insanos (Editora da UFPA,1995); A Água Benta e o Diabo (ensaio
sociológico, 1998); Equino Cio – Textuário do Meio do Mundo
(poemas, 2004); Adoradores do Sol (crônicas e artigos, Scortecci, 2010). Em
2002, lançou o CD A Música em Fernando Canto – 30 anos,
onde reúne composições tendo como parceiros Osmar Júnior, Zé Miguel e Naldo
Maranhão.
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